DISCURSOS DE SATANIZAÇÃO, MECANISMOS DE EXTERMÍNIO1:
Estigma, apagamento histórico e etnocídio das religiões afro-brasileiras
Bárbara Altivo2
RESUMO
É alarmante o quadro contemporâneo de crimes de ódio contra os adeptos das religiões afro-brasileiras, os seus espaços sagrados e símbolos de devoção. A proposta do artigo é pensar as práticas discursivas de satanização das religiões de matriz afro, sondando as suas eficácias de estigmatização e estereotipia, apagamento histórico e etnocídio, o extermínio cultural dos sujeitos “diferentes”, e o genocídio, seu aniquilamento racial. Para isso, nos detemos a um acontecimento recente pouco visibilizado pela grande mídia. A Ialorixá baiana Mãe Dedé de Iansã, sacerdotisa de candomblé há 45 anos, morreu de infarto ao ter o seu terreiro hostilizado por religiosos fundamentalistas de orientação evangélica. O caso nos diz acerca dos processos atuais de deslegitimação, agressão e rancor coletivo contra as religões de matriz africana através das práticas discursivas demonizadoras que atuam nos níveis da representação hegemônica, do achatamento histórico e da aniquilação ou englobamento da alteridade.
Palavras-chave: Discurso de satanização 1. Religiões afro-brasileiras 2. Estereótipo 3. Apagamento histórico 4. Etnocídio 5. Genocídio
DEMONIZING SPEECHES, MECHANISMS OF EXTERMINATION:
Stigma, historical erasure ans ethnocide os african-brazilian religions
ABSTRACT
It is alarming the contemporary context of hate crimes against the african-Brazilian religions, their sacred and devotional symbols. The purpose of the article is to think the discursive practices of demonization of african based religions, probing their efficacy of stigmatization and stereotyping, historical erasure and ethnocide (cultural extermination of the 'different' subjects), and genocide, its racial annihilation. For this, we stop at a recent event little visualized by the mainstream media. The Bahian Ialorixá Mother Dede of Iansa, Candomblé priestess for 45 years, died of a heart attack while having her yard harassed by religious fundamentalist. This case tells us about the current processes of delegitimization, aggression and collective grudge against african roots religions through discursive practices that operate in the levels of hegemonic representation, historical flattening and annihilation or supperation of otherness.
Palavras-chave: Demonization Speech 1. African-brazilian religions 2. Stereotype 3. Historical erasure 4. Ethnocide 5. Genocide
Introdução
Em diferentes instâncias de interação social, midiatizadas ou em co-presença, mobiliza-se atualmente diversas manobras de condenação pública, desqualificação e ataque frontal de cunho simbólico e físico às religiosidades afro-brasileiras. Múltiplas e diversificadas práticas de intolerância religiosa vicejam nas convivências cotidianas, constituindo sociabilidades impregnadas de ódio. A presença de pessoas, símbolos e rituais vinculados à umbanda e ao candomblé nos espaços públicos – e mesmo privados, como pode ocorrer na vida doméstica - é cerceada por diferentes mecanismos de exclusão, sustentados por ameaças explícitas ou implícitas de violência simbólica e física. Como explica Vagner Gonçalves da Silva (2007), há diferentes entradas de vilipêndio às devoções afro-brasileiras no cenário contemporâneo:
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ataques feitos no âmbito dos cultos das igrejas neopentecostais e em seus meios de divulgação e proselitismo; 2) agressões físicas in loco contra terreiros e seus membros; 3) ataques às cerimônias religiosas afro-brasileiras realizadas em locais públicos ou aos símbolos dessas religiões existentes em tais espaços; 4) ataques a outros símbolos da herança africana no Brasil que tenham alguma relação com as religiões afro-brasileiras; 5) ataques decorrentes das alianças entre igrejas e políticos evangélicos. (SILVA, 2007, p. 10).
Episódios de afronta direta às essas expressões religiosas, como incêndios e depredações de terreiros, além das cada vez mais recorrentes ofensivas de grupos criminosos do tráfico – associados a lideranças neopentecostais de comunidades periféricas - contra as casas e adeptos da umbanda e dos candomblés, têm se proliferado em todo o Brasil3. Segundo pesquisa do IBGE, o preconceito e as conversões religiosas fizeram com que o número absoluto de praticantes declarados das religiões de matriz africana caísse no país, saindo de um total de 575 mil, para 407 mil, em 2010. Nos últimos nove anos, vinte e dois sacerdotes de matriz afro-brasileira foram assassinados, mais de 600% no total de denúncias de intolerância religiosa no país aumentaram4. Tais agressões preconceituosas muitas vezes vêm acompanhadas por gestos homofóbicos, racistas e machistas, o que configura um quadro preocupante de afronta aos direitos humanos no país5.
Neste espectro, crescem os ataques forjados por estratégias evangélicas proselitistas, cuja produção de discursos sobre outrem corresponde a processos maniqueístas de demonização (SILVA, 2007). Compreendemos que a expansão dos discursos religiosos de hostilização da alteridade é hoje inegável, sendo que as instituições religiosas incitadoras do ódio apoderam-se cada vez mais dos espaços públicos e políticos, o que entra em atrito com as premissas de laicidade do Estado democrático brasileiro6. São ideias fundamentalistas que ganham cada vez mais visibilidade nos meios de comunicação, ocasionando sérios conflitos danosos à diversidade de modos de vida e religiosidade que constituem o compósito cenário cultural brasileiro.
O diagnóstico do qual parte este artigo diz respeito, assim, à urgência do campo problemático referente à intolerância religiosa no Brasil. Campo atualizado por uma série de eventos de violência que geram debates localizados e, na maioria das vezes, não ganham visibilidade nas agendas midiáticas de ampla circulação pública. Neste campo entrecruzam-se assimetricamente forças, sentidos e sujeitos, com destaque para as ações de agressão simbólica contra os saberes vinculados às culturas afro-brasileiras através de discursos globalizantes de vocação colonial (BHABHA, 1998; FANON, 1980).
Ao mesmo tempo, no embate com o regime de verdade e visibilidade historicamente formulado (FOUCAULT, 1987), articulam-se respostas inventivas, produções discursivas elaboradas no seio das próprias cosmologias afro-brasileiras, que incitam reconfigurações nos debates constituidores do campo problemático da intolerância (GOLDMAN, 2009). Leva-se aqui em consideração tal panorama comunicacional controverso que resvala na continuidade direta com processos históricos de marginalização das culturas de matriz africana no Brasil, e que, simultaneamente, faz-se produzir por vozes heterogêneas e dizeres subversivos, desestabilizadores, que geram estranhamentos e problematizações. Neste sentido, a fé e os rituais afro-brasileiros foram fonte de resistência e criatividade ao longo dos séculos de escravidão e ainda o são hoje, após a abolição, quando persistem e se transformam as formas de racismo e desigualdade social. Preservando e produzindo conhecimentos diretamente vinculados à natureza, elaborando suas próprias filosofias, narrativas e práticas de cura e manutenção da vida, as religiões afro-brasileiras hoje existem e resistem vigorosamente (ibidem).
Temos em vista que tal campo de forças da intolerância contra religiões de matriz africana no Brasil não se constitui apenas através das ações preconceituosas, mas também mobiliza uma série de agenciamentos subversivos de ordem política e cultural que escapam aos discursos de ódio. Contudo, estamos lidando com relações de poder historicamente produzidas e reiteradas, nas quais as práticas hegemônicas de aniquilação ou englobamento da alteridade deflagram um cenário de violência, exclusão e exploração dos povos negros no Brasil. No presente âmbito, nos voltaremos para as operações discursivas que demonizam as religiões afro-brasileiras, buscando compreender alguns de seus mecanismos à luz de um caso de intolerância.
A proposta do artigo é pensar as práticas discursivas de satanização das religiões de matriz afro, sondando as suas eficácias históricas de estigmatização e estereotipia (BHABHA, 1998; FANON, 1980), apagamento histórico (CHAKRABARTY, 1997; FABIAN, 2013; PIERUCCI, 2006); etnocídio e genocídio, extermínio dos sujeitos “diferentes”, demarcados cultural e racialmente (CLASTRES, 1982; COX, 2006). Para isso, nos detemos a um acontecimento recente pouco visibilizado pela grande mídia. A Ialorixá baiana Mãe Dedé de Iansã, sacerdotisa de candomblé há 45 anos, morreu de infarto ao ter o seu terreiro hostilizado por religiosos de orientação evangélica. O grupo de fanáticos promoveu uma madrugada de insultos à mãe-de-santo de 90 anos, exigindo o ‘exorcismo’ dos demônios que estariam presentes na sua tradicional casa de candomblé. O artigo se debruça sobre duas reportagens acerca do acontecimento, as únicas produzidas em grandes portais de notícias (Terra e O Globo), e os comentários dos leitores.
Após apresentar o enquadramento jornalístico majoritário elaborado pelos referidos textos, analisaremos o discurso de satanização que transpassa boa parte das falas a respeito da morte de Mãe Dedé a partir de três eixos analíticos: 1) o imaginário sobre as religiões de matriz africana dentro de um quadro de valores (atentando para os estigmas e estereótipos historicamente elaborados que caracterizam tais arcabouços simbólicos sobre o mal e o maligno); 2) o apagamento da temporalidade dos povos de santo (como são negligenciados e suprimidos as memórias, narrativas e vínculos ancestrais que conformam a religiosidade afro); 3) o etnocídio, quando não se aceita a existência do diferente e parte-se para a sua execução cosmológica, ontológica e mesmo física, no caso das práticas de genocídio. Notaremos, assim, como o caso de Mãe Dedé pode nos dizer acerca dos processos atuais de deslegitimação, agressão e rancor coletivo contra a umbanda e o candomblé através das práticas discursivas demonizadoras, que atuam nos níveis da representação hegemônica, do achatamento histórico e da aniquilação ou englobamento da alteridade.
A construção histórica do Inimigo: forjando imaginários
Entendemos que o panorama contemporâneo de intolerância religiosa no Brasil não surge espontaneamente das interações sociais, mas atualiza uma série de investidas históricas sistemáticas de controle da diferença, cujas operações de satanização dos antagonistas políticos mostra-se presente em diferentes momentos históricos, encontrando raízes na própria constituição do cristianismo no mundo ocidental. O historiador Alfredo dos Santos Oliva (2007), em seu livro A História do Diabo no Brasil, associa o perfil bélico contemporâneo de grupos cistãos fundamentalistas a processos históricos formadores de conflitos sociais, políticos e religiosos. No cristianismo antigo, tomando como referência o olhar cristão da época, o embate social era pensado em proporções cósmicas de uma luta acirrada entre o Bem (cristianismo) e o Mal (judaísmo, império romano e paganismos), sendo muito comum dentre os cristão “a prática de associar adversidade social, política e doutrinária a adesão ao Diabo” (OLIVA, 2007, p. 33).
Já no período medieval, evidenciou-se a apropriação católica de elementos das religiões politeístas na construção iconográfica do Diabo: tudo o que o cristianismo considerou “demasiadamente pagão, como contrário a seus dogmas, como impuro e ímpio, refugiou-se no reino do Mal” (NOGUEIRA apud OLIVA, 2007, p. 51). A assimilação entre deuses pagãos com demônios marca o cristianismo e caracteriza a sua política relacional para com as religiões que com ele concorrem. Tal postura é marcante nas articulações que a poderosa igreja medieval operou para perseguir os seus inimigos dissidentes através dos processos inquisitoriais de caça às bruxas. Esta experiência, por sua vez, “treinou o olhar demonológico sobre a América”, demonizando as populações autóctones e outras que lá foram escravizadas (OLIVA, 2007, p. 70). Assim, o historiador considera, através de seu apanhado das diferentes noções do Diabo no Brasil, que a intolerância religiosa
quanto à sua visão demonizante da cultura religiosa do “outro”, pertence a uma tradição que remete ao cristianismo antigo, passa pela “caça às bruxas” no período medieval e desemboca em uma concepção que finca as suas raízes no Brasil Colonial, ocasião em que as culturas indígena e africana foram identificadas pelos conquistadores, religiosos e seculares, como expressão demoníaca inferior à sua. (ibidem, p. 76-77).
A elaboração de um imaginário europeu sobre os povos negros e indígenas ao longo da colonização foi marcada pela afirmação da boa religiosidade cristã por meio de uma “Pedagogia do Medo”, que “consolidou no discurso teológico uma demonologia sistemática” calcada no dualismo Bem versus Mal (NOGUEIRA, 1984, p. 90). A ortodoxia oficial pôde então determinar comportamentos desviantes e incitar o reconhecimento e repúdio coletivo pelos mesmos. Em uma progressiva “infernalização da colônia” (SOUZA, 1986), as consideradas humanidades monstruosas das terras americanas foram demarcadas como obscenas, ligadas ao mundo do sexo - em contraposição virtual a uma moral divina correta -, e bestificadas, animalizadas. Os poderes femininos, relacionados à vida e à morte, à fertilidade e ao erotismo, empregados em manipulações mágicas altamente subversivas, foram satanizados pelo cristianismo, “marginalizados e expurgados para os territórios do que se entendia por demoníaco e prostituição” (BARROS, 2013, p. 530). Os estereótipos dos negros demoníacos e da feiticeira, mulher perigosa, são forjados então numa arena de controle político.
Certamente, as forças de condenação da herança africana no Brasil remontam à escravidão dos povos negros e a todas as vertentes perversas desta exploração, como a catequização forçada, o controle punitivo dos corpos escravizados e a consequente segregação social das pessoas afrodescendentes
O escravismo contribuíra decisivamente para conferir ao Novo Mundo o seu caráter negativo, danado, infernal: não só pela má consciência do europeu que vivia às expensas da exploração ultramarina (...), como pelo perigo iminente que o número superior de escravos negros acarretava à ordem estabelecida, à continuidade da dominação colonial (SOUZA, 1986, p. 373).
O potencial insurgente dos negros escravizados era considerado, assim, eminentemente demoníaco.
Tempo e poder
As operações de controle se inscrevem nos mais diferentes níveis, desde as subjetividades, as práticas de si que conformam os sujeitos, até a dimensão mais alargada da vida coletiva e das instituições (FOUCAULT, 1987). Assim, além de incidir sobre as subjetividades “colonizadas”, para demonizar o Outro, desumanizá-lo e docilizar seu corpo, é fundamental planificar a sua própria historicidade7, o tempo, e apagar as memórias coletivas e vínculos ancestrais que são os pilares da cosmovisão afro-brasileira. Neste sentido, destacam-se três gestos estratégicos de achatamento da temporalidade com vistas à negação da alteridade, no caso das religiões de matriz afro. Podemos entrever nessas investidas como os mecanismos temporais têm sido ideologicamente mediados (FABIAN, 2013).
De um lado, observamos a subsunção de uma temporalidade pagã, circular, que faz conviver entes vivos e ancestrais, por uma temporalidade cristã com vistas à salvação, que quer transformar o diferente em si mesmo pelo processo de conversão (ibidem, p. 62). Este Tempo da Salvação, frequentemente acionado por missionários e grupos proselitistas em suas empreitadas evangelizadoras, funciona como um grande referencial que se quer universal, englobando todas as experiências religiosas em uma mesma narrativa. Associadas a essa temporalidade estão as acusações demonizadoras que classificam uma miríade de cultos, com destaque para aqueles de descendência africana, dentro do registro do mal, do maligno, que deve ser combatido a todo custo. Afinal, a intenção de converter os outros seria a benevolência de salvar as suas almas.
Em outro sentido, o tempo das vivências religiosas afro-brasileiras é subordinado a uma temporalidade desencantada, a cronologia histórica naturalista que torna o tempo uma categoria objetiva, supostamente neutra e vazia de divindades (FABIAN, 2013; CHAKRABARTY, 1997). A tradução do tempo encantado – povoado de espíritos, deuses e forças da natureza – pelo tempo secular, vazio de agências não-humanas, segundo Chakrabarty, é um dos mecanismos de produção da subalternidade, de exploração e opressão (ibidem, p. 37). A História ocidental se constitui ao passo que ignora essas presenças, faz calar a sua agência e a compreende em termos de “superstição”, “primitivismo” e “selvageria”, noções que fazem parte de um “quadro categórico do tempo naturalizado” (FABIAN, 2013, p. 54). As narrativas historiográficas participam desse regime de saber-poder como instância legitimada que pode dizer sobre o encadeamento universal dos grandes acontecimentos (FOUCALT, 1987). No caso das religiões afro, fortemente incorporadas na religiosidade popular brasileira, são muitas vezes consideradas crendices incivilizadas e barbarismos vinculados a uma inferioridade intelectual e moral.
Ambas as temporalidades de salvação e naturalista atuam produzindo desligamentos, rupturas com as tradicionais “linhagens de fé” que sustentam os cultos afro e a religiosidade popular brasileira (PIERUCCI, 2006). No primeiro caso, ao considerar os ancestrais como demoníacos, uma vez que ligados a matrizes pagãs indígenas e/ou africanas, o Tempo da Salvação afrouxa laços de parentesco e apaga memórias dessas ancestralidades, os seus conhecimentos e práticas sociais. Tal seara deve ser esquecida, pois representa um passado anterior à conversão cristã, tempo ahistórico repleto de monstruosidades, como vimos com a infernalização da colônia (SOUZA, 1986). Já o tempo naturalizado, apropriado pelo conhecimento científico, rejeita o passado enquanto estágio atrasado, numa forte ligação com as premissas evolucionistas que linearizam hierarquicamente o tempo (FABIAN, 2013). “Crendices”, “superstições” e “curandeirismos”, as religiões de matriz africana (bem como indígenas e populares), são relegadas a um estágio anterior de ignorância, a ser aperfeiçoado pelo conhecimento científico.
Vemos, portanto, um duplo mecanismo de subordinação temporal sobre as religiões afro-brasileiras: pela via cristã da salvação e pela via secular da naturalização, podendo esta última ser operacionalizada também contra as próprias religiões cristãs nos contextos contemporâneos de disputa religiosa, como veremos mais à frente.
Culturas e corpos eliminados
A demonização da outridade, como dissemos, funciona através de processos históricos de estereotipia, estigma e subordinação temporal. De forma mais ampla, no que se refere a sua atuação no nível cultural, podemos pensar em um etnocídio das tradições de matriz africana no Brasil, assim como das culturas ameríndias. Segundo Pierre Clastres, “o etnocídio é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição” (CLASTRES, 1982, p. 56). Ele explica que o conceito advém da experiência de etnólogos com o massacre indígena nas Américas, em sua dimensão cultural. Como prática colonial por excelência, o etnocídio – opressão cultural com efeitos ao longo da história - é muitas vezes acompanhado do genocídio, a eliminação física imediata de grupos raciais. “Em suma, o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em espírito” (idem, ibidem).
Ambos, o etnocídio e o genocídio, pensam o Outro como uma má diferença, mas atuam de formas diferentes. O genocida simplesmente nega a diferença e parte para a sua aniquilação física. São exemplos, além dos assassinados de indígenas em grande escala nos períodos de colonização, o nazismo, guerras étnicas e demais práticas violentas cuja raiz está no racismo. O etnocídio, por sua vez, compreende a relatividade do mal na diferença, ou seja, entende que os outros são maus, mas podem ser melhorados, tornados idênticos ao modelo imposto. É o caso, como já vimos, dos missionários, etnocidas atrelados ao processo de colonização cuja atividade implica duas certezas: 1) a de que a diferença do paganismo é inaceitável e deve ser recusada, e 2) de que o mal que está na diferença pode ser atenuado ou mesmo abolido pela conversão, o que remete ao mencionado Tempo da Salvação. Assim, são axiomas do etnocídio a hierarquia das culturas e a convicção na superioridade absoluta da cultura ocidental. O otimismo do etnocida, segundo Clastres, acredita que pode salvar o outro, ajudá-lo a superar a sua condição inferior. O que aponta para a compreensão de que “a espiritualidade do etnocídio é a ética do humanismo” (CLASTRES, 1982, p. 57).
A prática etnocida é entendida por Clastres como modo de operação do Estado de dissolver o múltiplo no um. O funcionamento da máquina estatal revela a “vontade de redução da diferença e da alteridade, o sentido e o gosto do idêntico do Um”, acionando “uma força centrípeta que tende a esmagar as forças centrífugas inversas, quando as circunstâncias o exigem”. O Estado “se quer e se proclama o centro da sociedade, o todo do corpo social, o mestre absoluto dos diversos órgãos desse corpo.” (ibidem, p. 60). A especificidade etnocida do Ocidente está não só em sua afeição pelo modelo político do Estado-Nação, o que ocorre em outras sociedades não-ocidentais, mas advém também e principalmente de seu regime de produção capitalista, que torna tudo útil e produtivo. “Produzi ou morrer, é a divisa do Ocidente” (ibidem, p. 63).
Para os propósitos deste texto, não vamos adentrar mais no pensamento de Clastres sobre as sociedades contra o Estado. Queremos apenas deter as suas reflexões em torno das práticas genocidas e etnocidas, isto é, os processos de aniquilamento físico e englobamento/conversão cultural que historicamente se entrecruzam nas investidas de intolerância contra as religiões de matriz africana.
O caso Mãe Dedé de Iansã
De modo geral, vamos apresentar as principais informações sobre o acontecimento noticiado nos portais Terra8, “Família de ialorixá atribui morte a intolerância religiosa”, e no O Globo9, “Parentes de ialorixá morta dizem que ela teve infarto causado por perseguição religiosa”, os únicos portais de grande visibilidade que publicaram sobre o fato.
A Ialorixá Mildreles Dias Ferreira de 90 anos, conhecida como Mãe Dedé de Iansã, morreu no dia 1º de junho de 2015 vítima de um infarto. Ela comandava o terreiro de candomblé Oyá Denã há 45 anos na cidade baiana de Camaçuri e passou mal quando um grupo de evangélicos ligados à denominação Casa de Oração Ministério de Cristo fazia uma vigília noturna na porta de seu terreiro. Os conflitos com o grupo aconteciam há cerca de um ano e a comunidade de Santo já havia feito queixas na polícia denunciando a perseguição religiosa que vinha sofrendo.
Em ambas as notícias publicadas, vemos que a família de Mãe Dedé é identificada como a porta voz da denúncia de intolerância, a fonte que associa diretamente a morte da Ialorixá à madrugada de vigília em frente ao terreiro. Além de familiares, aparecem como fontes algumas lideranças do movimento negro e autoridades políticas da cidade e do âmbito nacional vinculadas às questões raciais, lamentando a morte da célebre Mãe de Santo e apontando para o perigo da intolerância religiosa (entidades como o Coletivo de Entidades Negras, Coordenadoria de Promoção da Igualdade Racial de Camaçari, Centro de Referência de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa Nelson Mandela e a A Comissão de Combate à Intolerância do Rio). A reportagem do OGlobo foi a única a consultar um representante das religiões evangélicas, o diretor da Associação dos Pastores e Ministros Evangélicos do Brasil. Para ele, tratata-se de um caso isolado, sendo raros os ataques de intolerância executados por grupos evangélicos.
O enquadramento majoritário do acontecimento apresentado nas duas reportagens prima por classificá-lo enquanto uma questão de intolerância religiosa, tendo como centro descritivo do fato a fala dos familiares de Mãe Dedé 10. Somente o portal Terra abriu espaço para comentários. A seguir, vamos apresentar a ambiência do debate que se formou na página da notícia, destacando os principais argumentos que surgiram. Descreveremos e examinaremos o discurso de demonização que atravessa os comentários a partir de três eixos de análise mencionados anteriormente: a estereotipia pelo mal, a subordinação temporal e as investidas de etnocídio das religiões de matriz africana. Observaremos, por fim, os argumentos que condenam a ação do grupo fundamentalista.
Do total de 148 comentários, 83 são abertamente críticos ao candomblé, à Mãe Dedé de Iansã, e discordam de que o seu infarto teve como causa a noite de ofensas. Além desses, 48 comentários consideram que a Ialorixá foi vítima de uma agressão criminosa causada pelo preconceito do grupo evangélico da Casa de Oração Ministério de Cristo de Camaçuru. Os demais comentários, por serem muito breves ou vagos, não se enquadram em nenhuma dessas duas posições.
Limpando o mundo de “macumbeiros sujos”
O tom que predomina nos comentários contra o candomblé, que figuram como a maioria na página, veem a morte de Mãe Dedé como algo natural, pela idade da sacerdotisa, e determinado por Deus. Muitos elogiam a atitude do grupo fundamentalista, que teria feito uma “limpeza”, ao exorcizar os espíritos demoníacos que seriam cultuados na casa de candomblé. O tema da sujeira pagã versus a pureza cristã é recorrente, e se relaciona ao estereótipo do negro como fonte de impureza, que se associa à concepção do demoníaco como força que “contamina” e deve ser “expurgada” e “purificada”.
“Quem se envolve com a feitiçaria se contamina.”
“Tu és um macumbeiro sujo demais... só isso que tu tens a dar, é? Deve levar uma vida miserável debaixo do jugo das entidades, né? Sabe porque tu não vais a uma Igreja? Porque lá tu vais cair, junto com as entidades que usam teu corpo.”
“‘limpa esse território do satanás e das forças malignas’. eu acho que deu certo o objetivo deles”
“quem vive borrado não aceita os limpos kkkk”
Conjuntamente à premissa de higienização, vemos comentários que vinculam a figura da Mãe de Santo a práticas consideradas monstruosas e cruéis, como o sacrifício humano e de animais, incesto, canibalismo e exumação de corpos nos cemitérios, repertório que integra o imaginário popular sobre a “magia negra” – cujo adjetivo deixa evidente o comprometimento com o racismo – e se atualiza nas acusações de teor moralizador que se multiplicam pela página.
“Mais dinheiro que estes feiticeiros cobram p/matar cabrito e galinha, mexer em tumba e arranjar papa pro tinhosos IMPOSSIVEL!”
“E por que essa gente não acusa as entidades, que os criam feito galinhas para matar nas festas? Ora, os que escolhem o Mal devem se responsabilizar por seus atos e não ficar culpando os demais... E a pergunta que não quer calar: quantas pessoas já foram prejudicadas pelos "trabalhos" da falecida? Quantos lares não foram desfeitos? Quantas criancinhas sacrificadas, para que "famosos" tenham mais fama e dinheiro? Pura hipocrisia, gente!”
“Essa não sacrifica mais animais pra enganar os otários”
“Considerando:
1. de onde veio as feitiçarias de candomblé, nego de mina, quimbanda, Vodu e Batuque até hoje mutilam menina e matam filho que fizeram nas próprias filhas
2.estão sempre em guerras de gangues, entre eles mesmos
3.além de que de lá é que veio o EI e o Boko HAran dá pra afirmar sem erro que a Africa é o berço da morte e da violência.”
Como vemos no último comentário mencionado acima, as referências à origem africana do mal se repetem, sendo incorporadas ainda à figura emblemática da velha feiticeira negra que fez pacto com Satã, esterótipo acionado no senso comum em relação às Mães de Santo. Observamos então o aspecto de gênero que perpassa a construção estereotípica da feitiçaria, que remete ao poder maligno das bruxas, mulheres perigosas que promovem a “destruição de lares”, “matam criancinhas” e tem uma conduta sexual considerada impura e obsena.
“Esta gente se aproveita da maldade que outros tem dentro de si e o culpam outros de seus azares. Abaixo de muito dinheiro o e mortes eles pagam espiritos negros - as mesmas pessoas criminosas que um dia morrem por e outros errantes humanos e não humanos, p/ prejudicar outras pessoas. Mas o dia de acertar as contas chega para até p/velhas feiticeiras, muito crentes que Satã as salvará. Bastou chamarem Deus na porta do covil que FEDEU LÁ DENTRO!” (Grifos nossos).
Os estereótipo e estigmas construídos no seio dos embates culturais marcados pelas investidas coloniais, como apontam autores dos chamados estudos pós-coloniais como Homi Bhabha (1998) e Fraz Fanon (1980), são muito presentes no discurso de satanização das religiões afro-brasileiras, o que nos mostra o caso em questão. Nessa perspectiva, são traços marcantes da malignidade de Mãe Dedé, como velha feiticeira negra, e do candomblé, como o culto dos demônios, o seu aspecto sujo, nauseabundo, animalesco, africano, obseno e monstruoso.
“De volta aos braços do cão”
No quesito temporal, notamos a presença daqueles três operadores contra-relacionais: o Tempo da Salvação (FABIAN, 2013), o tempo naturalizado (CHAKRABARTY, 1997; FABIAN, 2013), e o apagamento dos ancestrais e da memória coletiva (PIERUCCI, 2006). São vários os comentários que abordam a condenação de Mãe Dedé ao inferno. Sua vida de pecado e abominações a levaria “de volta aos braços do pai da mentira”, onde “há de pagar” por todos os seus erros. Seu destino é passar a eternidade junto ao Diabo, uma vez que seu envolvimento com a feitiçaria impossibilita a sua salvação. Nesses termos, estamos lidando com uma temporalidade avassaladora, que homogeniza a experiência religiosa de Mãe Dedé sob o chave do mal e a condena a integrar um destino dual para toda a humanidade: a salvação ou o inferno.
“a mulher já era 90 anos ta bom de mais . ninguem é culpado se serviu a Deus ele receberá se serviu ao cão ele a receberá é simples assim.”
“A véia morreu porque chegou a hora dela. E como passou a vida entregando sua alma a entidades malignas, vai ver agora onde escolheu para passar a eternidade.”
“A mulher era uma anciã de 90 anos, 90 anos, o que a família vindo de uma crença e prática profana, diz, a julgar pela mentira da crença, não tem credibilidade alguma. É palavra de gente que usa a imagem de "guias" invocações de demônios mesmo, porque estes espíritos nada mais são que demônios (anjos ruins) se passando por quem querem para enganar estes trouxas que eles fazem de trouxas outros trouxas e tem uma vida miserável, pois todos os êxitos são momentâneos e logo logrados. Em nome do Senhor que vive, vocês hão de pagar. A senhora, de quase um século um dia iria morrer como todo mundo, e não ficar pra semente.”
“Agora eles que querem perseguir a igreja... Deus acima de tudo e eles adorando o inimigo. Quem sou eu para julgar, mas será que sua alma está salva? Será que está descansando nos braços do Senhor? Ai a igreja faz a sua parte em pregar a palavra, salvar almas, é culpada pelo infarto de uma pessoa de 90 anos. Fala serio né!”
Por outro lado, temos comentários que deslegitimam a denúncia de intolerância por um viés que se coloca como não-crente, racional e desvinculado a “imbelicidades da religião”, e chegam a equiparar a “burrice” e a “bagunça” das religiosidades cristãs e afro-brasileiras. A cronologia figura então como grande referencial do tempo.
“Pra quem gosta de bagunça tanto o terreiro como essas vigílias é um bom prato, niguem merece! A diferença é muito pouca, o terreiro é um batuque infernal as vigílias um som q sacode até as panelas e sempre um quer gritar mas q o outro terrível”
“Isso é uma lenda amigo, não posso acreditar que hoje em dia haja imbecis que acreditem em religiões”
Essas leituras consideram a idade biológica de Mãe Dedé a verdadeira causa do infarto que sofreu. A “véia”, que estaria fazendo “hora extra na terra”, é inserida numa temporalidade naturalizada, cronológica, inescapável. A velhice aparece então como fase doentia da vida, inútil e indigna de respeito, em contraste com o alto reconhecimento que a figura dos anciões ocupam no candomblé, como grandes líderes, fonte de poder espiritual (axé) e orientadores dos mais novos. Ao banalizar a morte da sacerdotiza, a temporalidade secular planifica uma série de relações ancestrais, sem se preocupar com os registros da memória tradicional difundida pelos mais velhos. A sucessão do tempo funciona, nesta perspectiva, através da superação progressiva dos fatores primitivos, das ignorâncias de um pensamento mágico que deve ser substituído pelo verdadeiro conhecimento. Apagar o passado - e com ele as pessoas mais velhas, as histórias e tradições – é a própria operação do tempo naturalizado.
“Caramba... Será que não perceberam que dona tinha 90 ANOS!!! Já tava fazendo hora extra aqui. Morreu pq tava na hora poxa... kkk”
“conversa para boi dormir já estava fazendo hora extra na terra caramba !”
“gente, vcs estão falando de uma véia de 90 anos!!! Mais que normal morrer de infarto, afinal ela já estava muito velha!!! Pare de implicar com essa ou aquela religião!”
A derrota da velha feiticeira negra
Já vimos como a tônica higienista integra boa parte dos comentários demonizadores. Pelas várias menções aos “espíritos negros”, “à magia negra”, à África como “berço do mal”, não fica difícil perceber o teor racista que emana desses dizeres. Neste sentido, compreendendo o genocídio como prática de aniquilamento físico de corpos a partir de sua demarcação racial (CLASTRES, 1982), podemos perceber um tom discursivo apologético às ações genocidas movidas contra grupos negros considerados satânicos. A morte de Mãe Dedé é entendida, por vezes, como a própria derrota do demônio, que teria saído do seu corpo. “O Diabo não aguentou a pressão e a abandonou”. O infarto é interpretado em alguns momentos como “a vitória do povo de Deus”, e celebrado: “tudo que pedires em oração crendo recebereis eita povo abençoado”. O corpo de Mãe Dedé, desumanizado, é rebaixado à condição de matéria inerte e inútil: “Minhocas terão pouca coisa pra se alimentar.” Eis o ápice da inspiração genocida.
Sendo o genocídio a aniquilação corporal do Outro, observamos que no caso de Mãe Dedé ele se alterna com uma investida etnocida (ibidem), de cunho cultural, que visa eliminar ou converter a devoção do candomblé, transformando a diferença em identidade. O etnocídio lida com a má diferença de modo apaziguador: não é necessário matar fisicamente os Outros, basta transformar “eles” em “nós” culturalmente, “ensinar a palavra de amor”. Esse otimismo aparece em diversos comentários que se posicionam contrários à violência física, mas que apoiam a evangelização como forma de “salvar as almas” pecadoras. Trata-se de um processo que engendra, ao mesmo tempo, uma série de ações embranquecedoras, purificadoras e moralizadoras, referentes a uma adequação de conduta que se estende às práticas sexuais e afetivas.
“João 8:32 e conhecerei a verdade e a verdade vos libertara,vamos orar por eles e pelo mundo e contra a violência,de nada adianta se não tiver amor ao próximo irmãos”
“Quem vai até terreiro de macumba, xingar, brigar por esses motivos tb será penalizado, agora não venham generalizar que evangélico é louco, agressivo ou sei lá o que!! Quem generaliza é gente sem conhecimento, gente ignorante!! Seria primordial que deixassem seus Pré conceitos de lado e aprendem um pouco sobre o que a BIBLIA, palavra de Deus ensina!!! Jamais dentro da palavra de Deus diz para agredirmos, xingar, quem está fazendo isso faz, contra a palavra, contra a vontade de Deus, quanto ao que dizem que evangélico é homofóbico! Isso não é verdade, pelo menos não no sentido que se expõe a palavra! Deus é bem claro em um dos seus mandamentos, amai a teu próximo como a tí mesmo! Ou seja, Deus não manda que xinguemos os gays ou que os ataquemos, mas sim, se possível ensinar da palavra de Deus e se assim o consentir, que mude seus atos por amor a Deus!”
A maioria dos comentários que criticam a intolerância religiosa se enquadram dentro da premissa cristã de “amor ao próximo”, demarcando uma postura de benevolência que contorna a aspereza da relação na medida em que sustenta que “todos somos irmãos… mas eu não concordo com o candomblé”. Não há sequer um único comentário que se identifique abertamente vinculado às religiões afro-brasileiras. Citações bíblicas acompanhadas de reflexões teológicas aparecem como lócus privilegiado de acolhida da alteridade, um posicionamento que relativiza as práticas religiosas sem sair do lugar de fala cristão.
E se a religião dela estiver correta e a sua errada? Os cristãos perseguiam e sacrificavam humanos sendo chamados de bruxos. Não justifico o candomblé e também não concordo com ele. Mas admitir uma religião como verdadeira absoluta a ponto de as outras serem práticas demoníacas?
Além da crítica cristã à violência, o outro principal argumento apresentado contra a ação do grupo de fundamentalistas tem como base um discurso de ódio voltado contra os evangélicos, os “crentes burros” que pagam dízimo e são enganados por pastores ladrões. Figuram, dessa forma, considerações também intolerantes e movidas por ódio e preconceito voltadas contra alguns segmentos desse grupo religiosos.
Que me desculpem os evangélicos sérios, que são das igrejas Batista, Luterana e talvez mais uma ou duas que me falha a memória agora, mas os bispos, pastores e as pragas dos crentes das comedoras de dinheiro são um câncer, pior que qualquer outra praga existente. Se metem na vida de todo mundo e querem que todos engulam suas verdades. Quem acredita muito bem, mas quem não, muito bem também. E o pior é que como 90% da nossa população só tem cabeça para separar as orelhas, estas pragas estão cada vez mais na política e em breve todos os principais cargos do país serão destas pragas. Crentes são impossíveis. Ninguém gosta deles. Nem eles. Um morre de inveja do outro.
Apresentam-se, portanto, como principais linhas de sentido que animam os comentários contra a vigília noturna em frente ao terreiro de Mãe Dede: a) dentro das premissas cristãs, é preciso amar e respeitar o outro, e b) os evangélicos são todos fundamentalistas, ignorantes e representam um perigo para a sociedade democrática brasileira.
Considerações finais
Ao analisar o discurso de satanização que nutre os comentários a respeito da morte de Mãe Dedé, pudemos delinear três mecanismos nele engendrados: 1) a representação do Outro – a Mãe de Santo e o candomblé - como algo maligno (sujo, desumano, bestial, obseno); 2) a predominância de temporalidades homogeneizadoras da experiência religiosa (o Tempo da Salvação que condena Mãe Dedé ao inferno e o tempo cronológico desencantado que a vê como uma velha que morreria de qualquer modo), bem como o consequente apagamento dos vínculos de ancestralidade e memórias da tradição afro-brasileira; e 3) considerações ora genocidas (a favor da eliminação física da sacerdotiza), ora etnocidas (englobamento da diferença em prol da conversão).
Os comentários que defendem a comunidade de terreiro lançam mão de argumentos retirados da Bíblia, por um lado, afirmando o compromisso cristão em acolher o próximo para então salvá-lo, imputando um processo de evangelização com vistas à ensinar as condutas corretas. Por outro, há comentários que atacam as religiões evangélicas e seus adeptos, invertendo o alvo do discurso de ódio a partir de uma inclinação livre da “burrice religiosa”. No debate não encontramos abertura para trocas, ruptura com estereótipos ou deslocamentos de lugar de fala.
Satanizar o outro nos parece, então, um gesto contra-relacional de fechamento à diferença, de incomunicabilidade, que bloqueia processos de mútua-afetação e parasita narrativas, cosmologias e modos de vida para submetê-los à categoria do maligno. Fica evidente, no caso da Mãe Dedé de Iansã, como os discursos de ódio são práticas concretas de violência que, atravessando subjetividades e corpos, têm o poder de matar.
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VIII Encontro dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação de Minas Gerais
https://ecomig2015.wordpress.com/ | ecomig2015@gmail.com
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