Interdisciplinaridade
Conversando com a Biologia
Determinismo biológico: a ciência a favor do preconceito
Lana Fonseca
Com o avanço da Biologia e, mais precisamente, da Genética - área da Biologia que estuda os genes, a hereditariedade e a diversidade dos seres - muitos estudos e pesquisas passaram a querer comprovar que todos os fenômenos ligados aos seres vivos poderiam ser determinados biologicamente, ou seja, já estariam determinados pelo nosso material genético.
Há, ainda, muita controvérsia sobre esse tema, mas desde a descrição da molécula de DNA (ácido desoxirribonucleico) em 1953, pelos cientistas James Watson e Francis Crick, inúmeros cientistas, ao redor do mundo, têm tentado determinar geneticamente as características humanas.
Entretanto, antes da descoberta da estrutura do DNA, a Biologia já contribuía com inúmeras facetas do preconceito, do racismo e da discriminação. A Teoria da Evolução, elaborada por Charles Darwin e publicada em 1859, revolucionou a Biologia e foi usada como base para inúmeras atrocidades cometidas na História da Humanidade. Um dos conceitos fundamentais dessa teoria, a Seleção Natural, afirma que os indivíduos com características favoráveis à sobrevivência no ambiente são selecionados e transmitem aos seus descendentes essas características favoráveis. Esse conceito darwinista criou a base para a ideia de que "só os mais fortes e mais aptos sobrevivem" e que essa "força" e essa "aptidão" são determinadas geneticamente.
O cientista britânico Francis Galton, primo de Darwin, se utilizou da Teoria da Evolução e de seus conceitos para criar as bases do que ele denominou uma nova "ciência", a Eugenia, em 1883. Essa nova área tinha como principal objetivo o aperfeiçoamento da espécie humana, através de casamentos entre os "bemnascidos", ou seja, aqueles que possuíam características consideradas superiores, os homens, brancos, com olhos e cabelos claros. Além desses cruzamentos entre os "bem-dotados biologicamente", os cientistas eugênicos também propunham a esterilização em massa daqueles humanos considerados inferiores.
A Eugenia forneceu as bases "científicas" para o nazismo e suas ideias de superioridade ariana que culminaram no Holocausto.
Além desses exemplos, a Biologia também vem sendo usada para "comprovar" a superioridade de homens sobre as mulheres, de brancos sobre negros e para discriminar homossexuais.
A ideia de que tudo pode ser determinado biologicamente vem servindo de base para discriminação de todas as formas e o avanço das pesquisas em Genética traz muitas implicações éticas, pois poderemos chegar ao ponto de mapearmos o código genético de uma pessoa antes mesmo dela nascer! Algumas polêmicas já têm surgido, como o pedido de testes genéticos para admissão em empresas e o mapeamento genético na vida intrauterina, o que poderia gerar a discriminação de bebês com necessidades especiais antes mesmo do nascimento.
A Biologia é uma ciência que tem crescido muito nos últimos anos, mas acompanhando esse desenvolvimento científico, temos que realizar um grande debate sobre as questões éticas que implicam nesse avanço.
É importante nos questionarmos se todas as características dos seres humanos podem ser determinadas biologicamente. Qual o papel do ambiente na expressão dessas características? Somos o resultado exclusivo da combinação de genes? Qual a influência da cultura em nossa vida biológica? Essas são questões que devem acompanhar o desenvolvimento da Biologia e da Genética.
Lana Claudia de Souza Fonseca é professora da UFRRJ. Graduada em Biologia pela UFRRJ e Doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense.
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Interatividade
Revendo o capítulo
1 - Defina preconceito, discriminação e racismo.
2 - De que maneira podemos identificar o que intitulamos como "formas sutis" de racismo presentes no cotidiano?
3 - Comente o resultado da pesquisa realizada pelo PNAD/IBGE de 1976 a respeito das cores do povo brasileiro.
Dialogando com a turma
1 - Pesquise na internet notícias de discriminação racial que ocorreram recentemente no Brasil e em outros países. Comente as matérias encontradas.
2 - Discuta com seus colegas as manifestações de racismo existentes no cotidiano escolar e, a partir das conclusões obtidas, organize um trabalho, em equipe, para ser apresentado à escola como um todo e que possa contribuir para o fim da discriminação racial.
Verificando o seu conhecimento
1 - (ENEM, 2010)
Ó sublime pergaminho
Libertação geral
A princesa chorou ao receber
A rosa de ouro papal
Uma chuva de flores cobriu o chão
E o negro jornalista
De joelhos beijou sua mão
Uma voz na varanda do paço ecoou:
"Meu Deus, meu Deus
Está extinta a escravidão".
O samba-enredo de 1968 reflete e reforça uma concepção acerca do fim da escravidão ainda viva em nossa memória, mas que não encontra respaldo nos estudos históricos mais recentes. Nessa concepção ultrapassada, a Abolição é apresentada como:
(A) conquista dos trabalhadores urbanos livres, que demandavam a redução da jornada de trabalho.
(B) concessão do governo, que ofereceu benefícios aos negros, sem consideração pelas lutas de escravos e abolicionistas.
(C) ruptura na estrutura socioeconômica do país, sendo responsável pela otimização da inclusão social dos libertos.
(D) fruto de um pacto social, uma vez que agradaria os agentes históricos envolvidos na questão; fazendeiros, governos e escravos.
(E) forma de inclusão social, uma vez que a Abolição possibilitaria a concretização de direitos civis e sociais para os negros.
2 - (ENEM, 2011)
Que aspecto histórico da escravidão no Brasil do Séc. XIX pode ser identificado a partir da análise do vestuário do casal retratado na foto a seguir?
LEGENDA: Foto de Militão, São Paulo, 1879. In: ALENCASTRO, L. F. (Org). História da vida privada no Brasil Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Cia. das Letras, 1997.
FONTE: Reprodução
(A) O uso de trajes simples indica a rápida incorporação dos ex-escravos ao mundo do trabalho urbano.
(B) A presença de acessórios como chapéu e sombrinha aponta para a manutenção de elementos culturais de origem africana.
(C) O uso de sapatos um importante elemento de diferenciação social entre negros libertos ou em melhores condições na ordem escravocrata.
(D) A utilização do paletó e do vestido demonstra a tentativa de assimilação de um estilo europeu como forma de distinção em relação aos brasileiros.
(E) A adoção de roupas próprias para o trabalho doméstico tinha como finalidade demarcar fronteiras da exclusão social naquele contexto.
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Pesquisando e refletindo
LIVROS
SOUZA, Marina de Mello. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2006.
Livro didático que traz a História da África e dos negros que vieram sequestrados para o nosso país, com uma abordagem bastante ampla sobre o continente, a escravidão no Brasil e as manifestações culturais afro-brasileiras.
GOMES, Nilma Lino; MUNANGA, Kabengele. Para entender o negro no Brasil de hoje: histórias, realidades, problemas e caminhos. São Paulo: Global/Ação Educativa, 2004.
Este livro procura entender a importância de se estudar a história do negro e seus descendentes no Brasil de hoje.
FILMES
VISTA A MINHA PELE (Brasil, 2003). Direção: Joel Zito Araújo. Duração: 15 min.
Divertida paródia da realidade brasileira: numa história invertida, os negros são a classe dominante e os brancos foram escravizados.
ALGUÉM FALOU DE RACISMO? (Brasil, 2003). Direção: Claudius Ceccon e Daniel Caetano. Duração: 23 min.
A partir de uma discussão em sala de aula, um grupo de jovens começa a descobrir as origens de um racismo do qual eles são vítimas.
INTERNET
Pesquisa MAPA DA VIOLÊNCIA 2012 - A COR DOS HOMICÍDIOS NO BRASIL: http://bit.ly/1eujT7Q
Resultado da pesquisa sobre violência no Brasil, efetuada anualmente sob a coordenação do professor Julio Jacobo Waiselfisz. Nessa edição de 2012, publicada também em PDF (Rio de Janeiro: CEBELA, FLACSO; Brasília: SEPPIR/PR, 2012), houve uma atenção especial ao quesito cor da pele em relação aos homicídios, fazendo com que essas informações assumam um caráter de denúncia do genocídio em curso contra a população negra, atingindo geralmente jovens do sexo masculino. Os dados apresentados pelo relatório anual mostram que esse quadro vem se agravando nos últimos anos. Acesso: janeiro/2016.
FUNDAÇÃO CULTURAL PALMARES: http://www.palmares.gov.br/
No ano em que completou 100 anos da Abolição da escravatura no Brasil, o Governo Federal criou a Fundação Cultural Palmares, vinculada ao Ministério da Cultura. Como se afirma na apresentação do site, a fundação foi fruto das lutas do Movimento Negro brasileiro, criado para promover a preservação, a proteção e a disseminação da cultura negra. Acesso: janeiro/2016.
MÚSICAS
A CARNE. Autores: Seu Jorge, Marcelo Yuka e Wilson Capellette. Intérprete: Elza Soares.
Uma denúncia da situação social do negro e das consequências do racismo no Brasil, refletindo sobre as alternativas que se apresentam para se lutar contra essa condição.
TODO CAMBURÃO TEM UM POUCO DE NAVIO NEGREIRO. Autor: Marcelo Yuka. Intérpretes: O RAPPA.
O título da música já diz tudo. Uma pergunta: quem está segurando hoje a chibata?
FILME DESTAQUE
PIERRE VERGER: MENSAGEIRO ENTRE DOIS MUNDOS
FICHA TÉCNICA:
Direção: Lula Buarque de Hollanda
Duração: 82 min.
(Brasil, 2000)
FONTE: Conspiração Filmes/Lula Buarque de Holanda
SINOPSE:
Documentário sobre a vida do fotógrafo e etnógrafo francês Pierre Verger. Após viajar ao redor do mundo como fotógrafo, Verger radicou-se em Salvador, BA, em 1946, onde passou a estudar as relações e as influências culturais mútuas entre o Brasil e o Golfo de Benin, na África.
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Aprendendo com jogos
Capoeira Legends: Path to Freedom
(Donsoft Entertainment/ Escola de Capoeira Água de Beber, 2009)
PORQUE A IGUALDADE NÃO PODE SER UMA PALAVRA VAZIA
FONTE: Divulgação: Donsoft Entertainment/
Você controla Gunga Za, protetor do Mucambo das Estrelas durante o ano de 1828. Gunga precisa proteger seu povo contra fazendeiros e governantes escravagistas. Eles dizem que os negros são objetos de sua propriedade e Gunga protagoniza a luta do povo negro pela sua própria liberdade.
Como jogar:
1. Baixe a versão gratuita do jogo em http://goo.gl/dHX7rB Jogue e reflita sobre a resistência dos negros em torno das organizações quilombolas.
2. O game Capoeira Legends utiliza a capoeira para combater o racismo. Com base na experiência do game, utilize a história de Gunga e o conhecimento aprendido na disciplina para comparar as relações raciais no Brasil do século XIX e do século XXI. Comente com os seus colegas de sala a sua experiência com o jogo.
3. Entreviste adeptos do esporte Capoeira em seu formato atual e colete relatos, histórias e letras de músicas para socializar com os seus colegas em sala de aula.
4. Após o jogo, assista o documentário Preto contra Branco em https://youtu.be/dfRlplv7oxY (Doc TV, 2011). A partir desse vídeo, questione como a relação de um indivíduo com a sua cor pode ser diferente de outros. Relacione em no máximo 2 minutos o que sentiu vendo o vídeo.
5. Faça uma exposição em sua escola exclusivamente por imagens sobre o racismo atual na sociedade brasileira - sem textos, só imagens.
6. Escreva uma redação sobre o tema Racismo na sociedade brasileira: origens, manifestações e como superar.
7. Organize-se com todos os seus colegas de turma para criarem uma adaptação de um jogo de tabuleiro ou de cartas sobre o racismo no Brasil. Para isso, utilize como base de sua criação alguns jogos ou adaptações apresentadas em capítulos anteriores, como os jogos Conhecendo a África e a história de nossos ancestrais (capítulo 4), Detetive por um dia (capítulo 5) ou Lutas simbólicas (capítulo 11). Jogue novamente esses jogos para retomar as experiências. Pense em suas experiências com os outros jogos sugeridos ao longo deste livro, como Búzios, Ecos da liberdade e Contos de Ifá. Apresente o jogo às outras classes do mesmo ano e realize algumas rodadas de jogo.
8. Se não for possível o acesso ao jogo sugerido aqui, organize-se com os colegas de sala de modo a analisarem quais dos games experimentados podem servir a uma reflexão sobre o tema deste capítulo. Pensem nos jogos sugeridos nesse livro ou em outros que sejam do conhecimento de vocês. Pode ser interessante organizar um dia de jogos na sala de aula para que todos conheçam e experimentem os jogos comentados, desde que mantenham o foco no tema do racismo.
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Capítulo 22 - "Lugar de mulher é onde ela quiser?" Relações de gênero e dominação masculina no mundo de hoje
Boxe complementar:
É MENINA
É menina, que coisa mais fofa, parece com o pai, parece com a mãe, parece um joelho, upa, upa, não chora, isso é choro de fome, isso é choro de sono, isso é choro de chata, choro de menina, igualzinha à mãe, achou, sumiu, achou, não faz pirraça, coitada, tem que deixar chorar, vocês fazem tudo o que ela quer, isso vai crescer mimada, eu queria essa vida pra mim, dormir e mamar, aproveita enquanto ela ainda não engatinha, isso daí quando começa a andar é um inferno, daqui a pouco começa a falar, daí não para mais, ela precisa é de um irmão, foi só falar, olha só quem vai ganhar um irmãozinho, tomara que seja menino pra formar um casal, ela tá até mais quieta depois que ele nasceu, parece que ela cuida dele, esses dois vão ser inseparáveis, ela deve morrer de ciúmes, ele já nasceu falante, menino é outra coisa, desde que ele nasceu parece que ela cresceu, já tá uma menina, quando é que vai pra creche, ela não larga dessa boneca por nada, já podia ser mãe, já sabe escrever o nomezinho, quantos dedos têm aqui, qual é a sua princesa da Disney preferida, quem você prefere, o papai ou a mamãe, quem é o seu namoradinho, quem é o seu príncipe da Disney preferido, já se maquia dessa idade, é apaixonada pelo pai, cadê o Ken, daqui a pouco vira mocinha, eu te peguei no colo, só falta ficar mais alta que eu, finalmente largou a boneca, já tava na hora, agora deve tá pensando besteira, soube que virou mocinha, ganhou corpo, tenho uma dieta boa pra você, a dieta do ovo, a dieta do tipo sanguíneo, a dieta da água gelada, essa barriga só resolve com cinta, que corpão, essa menina é um perigo, vai ter que voltar antes de meia-noite, o seu irmão é diferente, menino é outra coisa, vai pela sombra, não sorri pro porteiro, não sorri pro pedreiro, quem é esse menino, se o seu pai descobrir, ele te mata, esse menino é filho de quem, cuidado que homem não presta, não pode dar confiança, não vai pra casa dele, homem gosta é de mulher difícil, tem que se dar valor, homem é tudo igual, segura esse homem, não fuxica, não mexe nas coisas dele, tem coisa que é melhor a gente não saber, não pergunta demais que ele te abandona, o que os olhos não veem o coração não sente, quando é que vão casar, ele tá te enrolando, morar junto é casar, quando é que vão ter filho, ele tá te enrolando, barriga pontuda deve ser menina, é menina.
Gregório Duvivier - Folha de São Paulo, 16/09/2013
Fim do complemento.
Por que será que "ser menina" em uma sociedade como a nossa apresenta características tão distintas e desiguais quando comparadas com as ideias e as atitudes que se reproduzem em relação ao "ser menino"?
Tentando responder a essas e outras questões, este capítulo fará uma reflexão sociológica acerca das relações entre homens e mulheres no mundo atual. Relações, essas, marcadas por tensões, preconceitos, discriminações e poder.
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LEGENDA: A luta organizada das mulheres determinou uma revolução sociocultural no século XX. Faixa movimento"Marcha Mundial das Mulheres", Rio de Janeiro, 2010.
FONTE: Augusto Tadeu Alves
O que nos torna homens ou mulheres? O gênero de uma pessoa depende exclusivamente se ela nasce com genitais e características físicas de homem ou de mulher? Perguntas simples parecem ter respostas também simples. No entanto, veremos que não é bem assim.
Sexo, gênero e poder
Antes de começarmos estritamente no assunto, será necessário definir alguns conceitos de fundamental importância para compreendermos de forma científica e aprofundada a temática desse capítulo. E aqui é necessário diferenciar sexo e gênero.
O sexo biológico pode ser definido como o conjunto das características fisiológicas e biológicas (órgão genital, hormônios, genes, sistema nervoso e morfologia). O gênero tem relação com a cultura, com o aprendizado vivido desde o nascimento, pois toda cultura elabora, de algum modo, os papéis relacionados à identidade de gênero, inclusive, os papéis do "ser homem" e do "ser mulher". A identidade de gênero é uma influência de convenções, estereótipos, e expectativas construídas na socialização das pessoas (com possibilidade de adaptação ou não aos padrões estabelecidos). Porém, veja você que essa influência em nossa socialização não é absoluta e que os sujeitos se apropriam e atualizam os elementos culturais e representações que servem à construção de sua própria identidade. É importante compreender que as identidades de gênero não estão pré-estabelecidas como se fossem roupas que vestimos, nem são fixas e imutáveis.
Uma das estudiosas sobre o tema de gênero, a socióloga norte-americana Deborah Blum (1997), nos mostra como os sentimentos, as atitudes e os comportamentos dos seres humanos podem condicionar as orientações pelo masculino ou pelo feminino. É nesse sentido que podemos falar sobre gênero.
De acordo com outra socióloga norte-americana, Joan Scott (1989) - considerada uma das maiores especialistas sobre o assunto - gênero é um termo importado da Gramática pelas feministas norte-americanas, nos anos 1960, exatamente com o objetivo de se contrapor às definições presas à Biologia. Dessa forma, a ideia de gênero passou a significar as relações de caráter cultural que estão sempre presentes - mesmo sem percebermos - nas definições e nas distinções sobre o que é "masculino" ou "feminino".
Quando você se comporta, com gestos ou atitudes, de acordo com as expectativas de outros indivíduos, para agir como homem ou mulher, você está adotando um papel de gênero. O gênero é a construção social que demarca identidades, como de homens, mulheres e de outros gêneros, como elaborações do contexto histórico e social, e não decorrentes simplesmente da diferença anatômica dos corpos. A constituição biológica não deve tornar, portanto, indiscutível a divisão dos humanos em dois blocos distintos (homens e mulheres).
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A essa visão de dois gêneros distintos denominamos visão binária (dividida em dois) e ela própria é objeto da investigação científica de áreas como Sociologia e Antropologia. Porque é uma contradição nós afirmarmos que gênero é uma elaboração social e apontarmos exclusivamente duas únicas identidades de gênero, masculino e feminino, como se apenas essas duas identidades fossem possíveis. Na verdade, o gênero não é algo que aprendemos somente, mas que elaboramos em nossas trajetórias de vida.
Essa distinção hierárquica entre o masculino e o feminino foi marcada historicamente desde, pelo menos, o estabelecimento do poder pátrio, instituído pelo Código Romano no século VIII a. C., que influenciou a produção jurídica das Leis ocidentais. Com o poder pátrio e a instauração da sociedade patriarcal, o homem tornou-se proprietário da mulher e esta foi colocada sob tutela e desprovida de capacidade jurídica. Sua única função era reproduzir, gerando herdeiros, e cuidar do lar.
De acordo com a filósofa Judith Butler (2015), foi produzida e estruturada de forma arbitrária uma oposição binária entre o masculino e o feminino, um pensamento dicotômico e polarizado sobre os gêneros: homem e mulher como polos opostos dentro de uma lógica invariável de dominação-subordinação. As relações de gênero são estabelecidas como relações de poder por causa da assimetria construída ao longo da História. Essas oposições foram construídas por meio das instituições de controle, tais como religião, Estado, Justiça, escola, que formaram e idealizaram hierarquias fixas e imutáveis entre os gêneros. Portanto, falar de gêneros (no plural!) também é falar de dominação. E aqui está uma lição importante para todos nós.
E aí, o que você está achando até agora desta nossa conversa sobre sexo e gênero? Muito complicada? Muitas novidades? Bem, você verá que a Sociologia ainda tem muito mais a dizer a respeito desse tema.
Gêneros e transgêneros: o que mudou e o que não mudou no século XX
Historicamente, vimos que o capitalismo apresenta um grande conflito: a luta entre as classes sociais. Entretanto, a História apresenta outros conflitos de interesses que vão além da divisão da sociedade em classes e que percorrem toda a estrutura social, se relacionando ou não à divisão de classes da sociedade capitalista: conflitos entre homens e mulheres, entre heterossexuais e homossexuais e entre brancos e não brancos e/ou grupos étnicos diferentes. As mulheres, a partir do século XIX - de acordo com um determinado ponto de vista da história -, passaram a demonstrar sua revolta à "dominação masculina" de forma coletiva.
LEGENDA: Passeata pelo voto feminino, Nova York (EUA), 1912.
FONTE: Wikimedia Commons
Foram os movimentos sociais voltados para a discussão das questões de gênero que iniciaram uma grande mudança nas ideias que preconizavam haver uma diferença natural entre o feminino e o masculino e, a partir daí, uma predisposição natural para os comportamentos e para as relações sociais que constituem papéis de homens e papéis de mulheres, rigidamente naturalizados. Assim como hoje, são os movimentos sociais que nos fazem ver que não podemos falar somente de "masculino" e "feminino" quando tratamos de gênero, porque essa visão binária faz parecer que gênero apenas se define como "masculino" e "feminino", como se existissem "por natureza", como se existisse uma essência do que é o masculino e do que é o feminino, e como se as representações do masculino e do feminino fossem identidades fixas e não construídas socialmente.
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A visão do domínio masculino quer nos fazer crer que segundo uma predisposição biológica, da mulher e do homem, de forma universal, elas são dóceis e eles, agressivos. Elas centram suas vidas nos cuidados com os filhos e eles, como provedores da sobrevivência da família. Essas características foram bastante reforçadas por uma teoria sociológica do século XX denominada Sociobiologia. Esta afirma que a estrutura dos genes e do cérebro humano explica também os comportamentos e práticas sociais, e não somente as características físicas. Mas, a influência dos movimentos feministas mudou muita coisa em relação a essa forma de pensar, com o auxílio teórico de novas reflexões elaboradas pela Sociologia e pela Filosofia.
Vamos pensar um pouco a respeito da reação organizada das mulheres à "dominação masculina". Esta última foi oficializada com a sociedade patriarcal. Isso significa que as relações sociais de gênero existentes nas sociedades são marcadas por relações de poder, como afirmamos acima, onde, em quase todos os exemplos históricos conhecidos, o "masculino" se sobrepõe à ideia e às representações sobre o que é "feminino" e sobre outras identidades de gênero.
Pierre Bourdieu foi um dos sociólogos que se debruçou sobre esse tema, inclusive publicando em 1998 um estudo específico intitulado exatamente A dominação masculina (2014). Nesse livro, Bourdieu apresenta a condição feminina, "no modo como é imposta e vivenciada", como o maior exemplo da chamada violência simbólica, ou seja, aquela que se caracteriza por se apresentar c omo uma
Boxe complementar:
(...) violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento. Essa relação social (...) oferece (...) uma ocasião única de apreender a lógica da dominação, exercida em nome de um princípio simbólico conhecido e reconhecido tanto pelo dominante quanto pelo dominado (...)
(BOURDIEU, 2014, p. 12)
Fim do complemento.
De acordo com Bourdieu, a violência simbólica faz parte da experiência feminina de forma cotidiana. Como não se trata de uma violência física e visível, ela torna-se quase imperceptível, pois atua no âmbito psicológico, causando danos emocionais. E para além do âmbito psicológico, esse tipo de violência se impõe sobre as consciências individuais, negando ao sujeito a sua autonomia e a sua racionalidade. Por exemplo, a relação que a mulher possui com seu corpo está sempre relacionada ao olhar e ao discurso dos outros. É como se ela precisasse de um retorno externo, que geralmente lhe causa um mal-estar e um estado de insegurança corporal permanente, devido à distância entre o seu "corpo real" e o "corpo ideal", ou socialmente exigido. O ideal de beleza pode ter efeitos concretos na saúde e no psicológico das mulheres, ocasionando baixa autoestima, dietas, cirurgias plásticas, bulimia, anorexia, causadas pela busca excessiva pela magreza e pela aparência jovem. As expectativas sociais são dirigidas muito mais às mulheres do que aos homens. Por isso, elas sofrem de forma mais acentuada e mais diretamente com a violência simbólica, com formas sutis ou até mais explícitas de humilhação, chantagem emocional, culpabilização, invisibilização. A violência simbólica, portanto, também se impõe ao corpo, disciplinando-o e controlando-o, como se alguns sujeitos não tivessem autoridade sobre o seu próprio corpo biológico.
Voltemos à socióloga Joan Scott que, em seus estudos, nos mostra exatamente o apresentado aqui. A definição de gênero, além de ter origem e trajetória históricas, é importante para se entender como as relações sociais construídas pelos seres humanos se vinculam às relações de poder presentes em cada sociedade.
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Assim, Scott chama a nossa atenção para diversos aspectos históricos e culturais relacionados às diferenças de gêneros. Um exemplo bem claro disso diz respeito às contradições existentes na representação do "feminino" na tradição cristã ocidental, em personagens bíblicos como Eva e Maria, por exemplo, que se relacionam com definições como "mitos da luz e da escuridão, da purificação e da poluição, da inocência e da corrupção" (SCOTT, 1989, p. 21).
Essas representações bíblicas foram amplamente utilizadas na literatura. Concepções como as citadas não são desvinculadas de qualquer interesse, pois estão diretamente ligadas ao papel que se deseja (dependendo do caso) que a mulher assuma na sociedade. A literatura falhou em produzir e criar uma mulher misteriosa. Esses personagens funcionam como mitos, projeções e temores sobre um "feminino" único e cristalizado, que não se conhecia.
Cada um dos mitos pretende resumir a mulher inteiramente: Maria, neste caso, enquanto mãe de Jesus Cristo, somente poderia representar "luz, purificação e inocência". Eva, ao contrário, teria provocado a "perdição" do primeiro homem, Adão. Como se à mulher fossem atribuídos somente dois papéis sociais: ou ela é boa, santa, dócil, passiva, resignada (a mãe é cercada de manifestações de respeito, é apresentada como doce e virtuosa) ou ela é má, pecadora, mentirosa, pervertida, feiticeira e sedutora que fascina o homem, que o submete a seus encantos.
Praticamente todas as representações da mulher entre os filósofos, escritores, cientistas, a mitificam dessa forma. Não se debateu, abordou ou explorou a mulher real - até porque, esses escritores, homens, nunca souberam quem é a mulher, não se conheciam as mulheres "de verdade". Escreveram sobre imagens fictícias, pois não reconheciam na mulher um ser humano, um sujeito, uma semelhante, uma igual.
LEGENDA: Comemoração do Dia Internacional de Luta das Mulheres, nas ruas de São Paulo, em 08 de março de 2005.
FONTE: Marlene Bergamo/Folhapress
O papel das mulheres nas sociedades modernas é discutido desde a Revolução Francesa (cf. SCHMIDT, 2012), apesar de uma visão histórica eurocêntrica, que entende a Europa como centro de referência e "modelo" de sociedade. Entre as dezenas de participações políticas femininas durante a Revolução, se destacou Marie Gouze, que adotou o nome Olympe de Gouges (1748-1793). Como resposta ao conteúdo universalista presente na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que excluía as mulheres dos direitos, Olympe de Gouges escreveu e apresentou à Assembleia Nacional, em 1791, a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. De origem proletária, mas opositora de Robespierre, acabou guilhotinada em 1793, acusada de "contrarrevolucionária" e de mulher "desnaturada" (cf. a sua história na graphic novel de autoria de BOCQUET e MULLER, 2014). Veja, a título de exemplo, dois artigos da Declaração elaborada por Gouges:
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Boxe complementar:
Artigo 1º: A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. As distinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum.
Artigo 6º: A lei deve ser a expressão da vontade geral. Todas as cidadãs e cidadãos devem concorrer pessoalmente ou com seus representantes para sua formação; ela deve ser igual para todos. Todas as cidadãs e cidadãos, sendo iguais aos olhos da lei, devem ser igualmente admitidos a todas as dignidades, postos e empregos públicos, segundo as suas capacidades e sem outra distinção a não ser suas virtudes e seus talentos.
Fim do complemento.
Apesar de Olympe de Gouges e de outras mulheres revolucionárias, parte da história do feminismo considera o surgimento de uma primeira onda do movimento somente nas últimas décadas do século XIX. Nesse período, a primeira bandeira de luta das mulheres se deu em torno da luta pelo direito ao voto. Esse movimento pioneiro teve início na Inglaterra. Lá, as chamadas "suffragettes" promoveram grandes manifestações, sendo reprimidas e presas por diversas vezes, reagindo com a organização de greves de fome. O movimento acabou sendo vitorioso em 1918, com a conquista do direito ao voto no Reino Unido. Para alcançar esse fim, no entanto, as suffragettes tiveram como mártir a militante Emily Davison, que se atirou à frente do cavalo do rei inglês durante uma famosa corrida hípica (PINTO, 2010, p. 15).
Ainda segundo a historiadora e cientista política Céli Regina Jardim Pinto (2010), no Brasil "a primeira onda do feminismo também se manifestou mais publicamente por meio da luta pelo voto" (p. 15-16). As suffragettes brasileiras foram lideradas pela cientista e bióloga Bertha Lutz, uma das fundadoras da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Ela estudou na França, retornando ao país no final da década de 1910. O movimento encabeçado por ela organizou uma campanha pública e um abaixo-assinado, apresentado ao Senado em 1927, "pedindo a aprovação do Projeto de Lei, de autoria do Senador Juvenal Lamartine, que dava o direito de voto às mulheres. Este direito foi conquistado em 1932, quando foi promulgado o Novo Código Eleitoral brasileiro" (PINTO, 2010, p. 16).
LEGENDA: Bertha Lutz, uma das pioneiras do movimento feminista no Brasil.
FONTE: UN Photo/Mili
Na metade do século XX, podemos afirmar que é a partir da publicação do livro O Segundo Sexo, escrito pela filósofa francesa Simone de Beauvoir e lançado em 1949, que o debate sobre a condição das mulheres e a relação entre os sexos ganha uma outra conotação, que vai influenciar a análise sociológica de forma marcante.
Simone de Beauvoir procurou mostrar que o termo feminilidade foi inventado pelos homens e tinha como intenção limitar o papel social das mulheres. E como você sabe, uma palavra não é somente uma representação de fonemas, mas carrega consigo valores, modos de pensar e visões de mundo. A filósofa questionava a ideia de que as mulheres são inferiores e também questionava a sua posição de subordinação. Para Beauvoir, as mulheres tinham que superar o "eterno feminino", que as amarrava e formava seu próprio ser, além de escolher seu próprio destino, libertando-se das ideias pré-concebidas e dos mitos pré-estabelecidos. Você deve observar que a palavra "eterno" supõe algo universal, natural e imutável. Essa crença na ideia de "eterno feminino" condicionou a mulher a aceitar resignada e sem discussão as verdades e leis que os homens lhe propunham, a ser sempre o Outro, o Objeto, perante o homem, Sujeito e Absoluto.
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Isto fez com que os dois sexos não partilhassem o mundo em igualdade de condições.
Dessa forma, Beauvoir afirmou: "não se nasce mulher, torna-se mulher" (V. II, p. 361, 2009). Isto é, ela era contra qualquer tipo de determinismo que prendesse a mulher em apenas um aspecto. Definir a mulher unicamente em virtude da sua estrutura fisiológica e pela sua condição natural é uma forma muito simplista e equivocada, pois a mulher não é somente um corpo com útero, vagina, óvulos, hormônios. Para a filósofa, a mulher deve escolher afirmar e reivindicar sua liberdade e não alienar-se como objeto, não ficar limitada a um papel biológico, mas sim, possuir projetos pessoais, trabalhar, ter direito à remuneração equivalente a do homem e poder exercer as mesmas funções que eles. "Cumpre-lhes recusar os limites de sua situação e procurar abrir para si os caminhos do futuro; [...] trabalhar pela sua libertação. Essa libertação só pode ser coletiva e exige, antes de tudo, que se acabe a evolução econômica da condição feminina" (V. II, p. 814). O que Simone de Beauvoir defendia é que a mulher é um ser em permanente construção que deve caminhar em direção à sua individualidade e autonomia. Tornar-se mulher é não depender do homem intelectual, financeira, nem emocionalmente.
LEGENDA: A escritora Simone de Beauvoir em conferência sobre "A condição da mulher no mundo moderno", em São Paulo, em 1960.
FONTE: Folhapress
O que você acha sobre isso? Por que será que a frase escrita pela filósofa na década de 1940 ainda provoca tanta polêmica neste século XXI? (Estamos nos referindo, à questão que constou da Prova do ENEM de 2015).
Os movimentos feministas, inspirados em várias intelectuais como Simone de Beauvoir, Betty Friedan, Kate Millet, Shulamith Firestone, Bell Hooks e Juliet Mitchell, a partir da década de 1960 organizaram aquela que é considerada a sua segunda onda, na qual se aprofundam as lutas por direitos iguais perante os homens. Fazendo uma crítica à sociedade patriarcal, ou seja, a um modelo de família que dá privilégios aos homens, as feministas reivindicam igualdade de condições de trabalho e salário, direito ao aborto e ao controle do corpo, autonomia intelectual e punição aos homens pela violência doméstica e sexual, entre outras questões. Pode-se dizer que outros fatores vinculados aos avanços da Ciência, como é o caso da invenção da pílula anticoncepcional, na década de 1950, desempenharam um papel importante no processo de emancipação feminina.
Segundo Céli Pinto, foi no contexto de revolução comportamental que marcou essa década que Betty Friedan lançou, em 1963, a obra que passou a ser considerada como "uma espécie de 'bíblia' do novo feminismo: A mística feminina":
Boxe complementar:
Durante a década, na Europa e nos Estados Unidos, o movimento feminista surge com toda a força, e as mulheres pela primeira vez falam diretamente sobre a questão das relações de poder entre homens e mulheres. O feminismo aparece como um movimento libertário, que não quer só espaço para a mulher - no trabalho, na vida pública, na educação -, mas que luta, sim, por uma nova forma de relacionamento entre homens e mulheres, em que estas últimas tenham liberdade e autonomia para decidir sobre suas vidas e seus corpos. Aponta, e isto é o que há de mais original no movimento, que existe uma outra forma de dominação - além da clássica dominação de classe -, a dominação do homem sobre a mulher - e que uma não pode ser representada pela outra, já que cada uma tem suas características próprias.
( PINTO, 2010, p. 16)
Fim do complemento.
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Boxe complementar:
A questão do aborto. A luta pela garantia dos direitos sexuais e reprodutivos e pela descriminalização do aborto teve como consequência, a partir da década de 1970, a legalização da prática sem restrições em diversos países, principalmente na América do Norte e Europa. Em 2014 foi legalizada no Uruguai.
A descriminalização do aborto está relacionada ao direito de autonomia reprodutiva, necessário para que a maternidade não seja compulsória. O direito reprodutivo é o direito das mulheres decidirem, de forma livre e responsável, se querem ou não ter filhos, quantos filhos desejam ter e em que momento de suas vidas querem tê-los. Direito de exercer a sexualidade e a reprodução, livre de discriminação, imposição e violência. Direito da mulher, que vive com AIDS, de ter filhos. O direito sexual está relacionado a viver e expressar livremente a sexualidade, sem violência, discriminações e imposições, sem medo, vergonha, culpa. Direito de escolher se quer ou não ter relação sexual, independentemente da reprodução. Direito a serviços de saúde que garantam privacidade, sigilo e atendimento de qualidade e sem discriminação.
A pauta ainda é uma reivindicação importante no Brasil, pois em nosso país uma das maiores causas de morte materna é o abortamento inseguro. Muitas mulheres, principalmente pobres, morrem sem atendimento adequado, pois não podem pagar por um aborto sem riscos. A lei brasileira não considera nesse caso a laicidade do Estado, que deve garantir a liberdade de ser, de crer e de não crer. Ser contra o aborto é uma opinião pessoal - ou determinada por visões religiosas -, mas a criminalização das mulheres que pensam diferente é uma questão política, coletiva e de saúde pública. Fato é que a criminalização dessas mulheres e a ilegalidade do abortamento não impedem que, por diferentes motivos, essas mulheres interrompam sua gravidez. Afinal, você não entende que um país que se pretende livre, laico, democrático e plural não pode reproduzir apenas a visão pessoal e moral de alguns, nem de instituições religiosas? Pense a respeito. Você acha que cabe usar um julgamento pessoal para medir a experiência de todas as mulheres, o que cada uma deveria ter feito para se prevenir de uma gravidez indesejada? É papel do Estado garantir a saúde e a vida dessas mulheres, o direito a métodos contraceptivos nas unidades públicas de saúde e a autonomia das que optarem por interromper sua gestação de forma segura, sem risco de morte.
Fim do complemento.
A revolução cultural vivida pelas mulheres na década de 1960 teve repercussões também na sociedade brasileira, com a intensa participação feminina na luta contra a ditadura civil-militar instaurada em 1964, inclusive com a opção de militância através da luta armada, como foi o caso de nomes como Maria do Carmo Brito - primeira mulher a comandar uma organização de guerrilha na América Latina -, Sônia Lafoz, Vera Silvia Magalhães, Lúcia Murat, Renata Guerra de Andrade, Dulce Maia, dentre outras (CARVALHO, 1998). Mesmo não tendo participado da luta armada, há de se registrar a luta travada pela estilista de moda Zuzu Angel, morta enquanto buscava notícias de seu filho, Stuart Jones, e sua nora, Sonia Maria, desaparecidos nos porões da ditadura.
Um dos marcos teóricos da luta feminista brasileira nesse período foi o trabalho da socióloga Heleieth Saffioti (1934-2010), A mulher na sociedade de classes, lançado em 1969. Esta obra foi considerada "como o primeiro grande avanço teórico do feminismo dos anos 1960-70, em termos mundiais, e é descrito como uma teorização sofisticada sobre as formas em que o sexo está presente na estratificação social" (cf. o Prefácio de Marília Pinto de Carvalho para CONNELL e PEARSE, 2015, p. 11).
Durante o processo de redemocratização da sociedade brasileira, uma das lideranças feministas de maior relevância foi a historiadora, filósofa e antropóloga Lélia Gonzalez (1935- 1994).
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Sua intervenção acadêmica e sua militância feminista se pautaram por um caráter de denúncia sistemática não somente do machismo, mas também do racismo, em especial aquele que atinge e exclui de forma bastante violenta as mulheres negras e indígenas na sociedade brasileira. Lélia Gonzalez se contrapôs ao feminismo branco e elitista que se impunha como hegemônico em nosso país, destacando a necessidade de se repensar as reivindicações das mulheres e a luta contra as opressões existentes, tendo como ponto de partida as diferentes trajetórias vividas, demarcadas pela sua classe social e pela cor da sua pele (CARDOSO, 2014).
LEGENDA: Lélia Gonzalez (1935-1994).
FONTE: Acervo JG / Januário Garcia
A militância de Lélia Gonzalez em torno do que ficou conhecido como o feminismo negro marcou a década de 1990, no Brasil. O feminismo negro já não era novidade nos Estados Unidos desde a década de 1960, em especial com a visibilidade alcançada pela ativista Angela Davis, que se notabilizou por se afirmar não somente como mulher negra, mas também como comunista, candidatando-se por duas vezes à vice-presidência da maior potência capitalista do planeta. Mas as ideias levantadas por essa terceira onda tinham como principal referência as formulações da filósofa Judith Butler. Segundo a filósofa feminista Djamila Ribeiro:
Boxe complementar:
As críticas trazidas por algumas feministas dessa terceira onda [...] vêm no sentido de mostrar que o discurso universal é excludente; excludente porque as opressões atingem as mulheres de modos diferentes, seria necessário discutir gênero com recorte de classe e raça, levar em conta as especificidades das mulheres. Por exemplo, trabalhar fora sem a autorização do marido jamais foi uma reivindicação das mulheres negras/pobres, assim como a universalização da categoria "mulheres" tendo em vista a representação política, foi feita tendo como base a mulher branca, de classe média. Além disso, propõe, como era feito até então, a desconstrução das teorias feministas e representações que pensam a categoria de gênero de modo binário, masculino/ feminino.
(RIBEIRO, 2014)
Fim do complemento.
Trata-se, portanto, da desconstrução de paradigmas existentes no próprio movimento feminista, apresentando questões que se propunham a repensar as definições de gênero, de sexualidade e de identidade até então inexistentes ou não problematizadas. Ainda segundo Djamila Ribeiro, assim como O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, se tornou o marco da segunda onda feminista, a obra Problemas de Gênero, de Judith Butler, se torna a principal referência teórica do feminismo em sua terceira onda (cf. BUTLER, 2015).
É importante ressaltar que a divisão da história do feminismo em três ondas coloca as mulheres brancas de classe média como os agentes centrais da história da luta pelos direitos das mulheres, numa análise em que mulheres não brancas tornam-se agentes secundários, somente aceitas no decorrer da História. De um momento para o outro, durante a terceira onda, mulheres não brancas aparecem para transformar o feminismo em um movimento multicultural.
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Como escrito anteriormente, essa perspectiva histórica estabelece o início do movimento feminista com o movimento das sufragistas e está relacionada a um ponto de vista eurocêntrico que ignora iniciativas, organizações e associações de outras mulheres, de outros continentes e etnias.
A perspectiva feminista clássica, que tem o seu paradigma na mulher branca ocidental, encobrindo as contradições intragênero e entre os gêneros em uma sociedade racializada, tendeu a apresentar as experiências desse grupo específico como sendo a experiência de todas as mulheres. O movimento feminista "oficial" não levou em consideração as sobreposições das desigualdades, pois gênero, raça e classe social se combinam de um modo muito cruel na vida de algumas mulheres.
É preciso desmistificar, portanto, a visão universalizante do feminino, pois não há apenas um tipo de mulher e uma experiência em comum para todas. São diversos tipos de mulheres que têm lutado ao longo do tempo por um mundo com maior igualdade e pelos mesmos acessos e oportunidades a todas as pessoas. É claro que não se deve negar as contribuições feitas por feministas brancas, mas é importante não centrar a historicização e as análises somente nelas e no surgimento do feminismo nas sociedades branco-ocidentais.
Sendo assim, o feminismo negro pretende mostrar que a mulher negra sofre formas de opressão que não se reduzem às sofridas por mulheres brancas ou pelos homens. A África possui as civilizações mais antigas no mundo, e por mais que a palavra feminismo não seja de origem africana, o seu conceito de oposição ao patriarcado e a razão de ser do feminismo sempre estiveram presentes nesse continente.
No Brasil pós-Abolição, apenas o estatuto jurídico de homens e mulheres livres não garantiu aos negros acesso aos bens sociais e o direto à cidadania. Atualmente ainda permanecem substanciais diferenças entre os sexos, agravadas pela questão racial, fazendo com que a pobreza brasileira seja em sua maioria sofrida por mulheres negras. Essas são aquelas que, acumulando desvantagens e vulnerabilidades, encontram-se na base da pirâmide social. Existem reivindicações muito mais urgentes, como, por exemplo, poder alimentar seus filhos e colocá-los em uma creche pública enquanto trabalham.
LEGENDA: Marcha das Mulheres Negras. Brasília, 18 de novembro de 2015.
FONTE: Jaqueline Oliveira
Como você aprendeu, o movimento feminista trouxe uma grande contribuição à autonomia e à luta das mulheres pelos seus direitos, dando voz às mudanças que já vinham ocorrendo nas sociedades ocidentais a partir da metade do século XX, como foi o caso do crescimento da participação das mulheres no mercado de trabalho. O trabalho feminino havia sido uma exigência dos esforços empreendidos nas Grandes Guerras, em especial entre 1939 e 1945. Essa experiência, no entanto, aliada à luta pelo direito ao voto, empoderou ainda mais as mulheres daquela época.
Mas, apesar dessas mudanças, atualmente ainda, presenciamos em nossa sociedade aquelas ideias sobre a predisposição natural de mulheres e homens. Uma forma de se pensar que as feministas chamam de ideologia machista. Vejamos de um modo bem sintético - e reiterando algumas questões apresentadas neste capítulo - como as teorias feministas criticam essa ideologia.
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Boxe complementar:
Para o movimento feminista as relações entre homens e mulheres acontecem da seguinte forma, em determinadas situações:
- A maioria dos homens tenta demonstrar que a opressão sobre as mulheres não existe e que a relação entre eles é paritária. Muitos homens e mulheres sustentam que hoje há entre os gêneros uma igualdade e que "as coisas não são mais como em tempos atrás".
- Os homens tendem a desestimular e a desvalorizar os momentos de encontro autônomo das mulheres. Muitos homens gostam de passar horas a fio entre eles, mas reclamam quando as mulheres fazem a mesma coisa.
- Os homens não suportam que as mulheres se divirtam de maneira autônoma e fora das regras estabelecidas por eles. Para muitas mulheres é impensável que, casadas e com filhos, saiam de casa para se divertir sem os maridos.
- Os homens mantêm o próprio domínio com a coerção e a persuasão. A coerção se dá com a violência. O uso da violência por parte dos maridos ainda é tolerado, fazendo com que a violência doméstica se constitua como o principal problema das mulheres em todo o mundo.
- Em diversas partes do mundo as violências contra as mulheres também são justificadas ideologicamente por religiões, com destaque para as discriminações e agressões praticadas, por exemplo, por seguidores do islamismo, do hinduísmo e do cristianismo contra aquelas que, de alguma forma, não seguem rigidamente seus preceitos, ou pertencem a determinadas minorias étnico-religiosas.
- Uma violência recorrente em regiões de conflitos armados é o estupro de mulheres que pertençam a nações ou etnias consideradas como inimigas. O estupro, nesses casos, é praticado por militares e milícias armadas como mais uma forma de subjugar os adversários também sob o ponto de vista moral.
- A persuasão sempre se deu através de sistemas de ideias que têm como características básicas preconceitos não provados cientificamente. Hoje a persuasão mais eficaz se efetiva com a produção cultural da mídia. Este recurso tende a fazer parecer normal a divisão dos papéis e permite maior fôlego aos homens. Apesar de a maioria da população mundial ser constituída por trabalhadores - principalmente operários, camponeses, comerciários etc. - cujas vidas são ricas, interessantes e variadas, a grande maioria dos filmes, novelas e romances tem como protagonistas homens brancos, burgueses e intelectuais.
- A maioria das mulheres é chantageada economicamente pelos homens. Muitas dependem economicamente dos maridos na maior parte do mundo.
- As formas de dominação podem ser mais ou menos intensas. Entre mulheres não há diferença somente entre a burguesa e a trabalhadora, mas também entre uma médica e uma dona de casa da periferia das grandes cidades. Outra diferença notória também se dá em relação à cor da pele: a realidade enfrentada por uma mulher negra não é a mesma que a vivenciada por uma mulher branca.
- Entre as mulheres há muita concorrência, sobretudo naquilo que os homens as avaliam com maior destaque: a beleza (o que é, em determinadas épocas, considerado padrão de beleza feminina). Do sucesso desta característica pode depender a sua posição social. O capitalismo estimula tal competição.
- A dominação é introjetada pelas mulheres. Por isso é difícil para elas o reconhecimento da dominação da qual são vítimas. A maioria não se dá conta e não se considera incluída nesse contexto. Uma jovem educada pela ideologia machista - convencida de que é sedutora e adequada à imagem esperada pelos rapazes - dificilmente se reconhecerá como dominada. Ao contrário, terá a impressão de ser "natural" e de dispor de um terrível poder (de sedução) sobre os homens.
- Da parte de algumas mulheres há a tendência equivocada de tirar proveito dos mais fracos. Algumas descontam nos filhos o não enfrentamento do marido violento.
- Uma outra tendência das mulheres que impede a tomada de consciência é aquela de não generalizar a própria condição. Assim, grande parte das esposas tende a pensar que o problema que ela está enfrentando se refere somente ao "seu" marido, à sua condição de opressão específica.
Fim do complemento.
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Você concorda com cada uma destas análises? Discorda de alguma? Por quê? Discuta com os seus colegas e com os professores.
Aproveite também para pesquisar a respeito da existência de "escravas sexuais" em determinadas partes do planeta (como é o caso das mulheres de etnia yazidi, no Iraque); sobre a situação de abandono vivido pelas mulheres que cumprem penas em penitenciárias brasileiras ; sobre o porquê de que somente em 2015 as mulheres puderam votar em eleições na Arábia Saudita; sobre o assédio sexual e as represálias que meninas estudantes brasileiras de Ensino Fundamental e Médio sofrem nas escolas em razão das roupas que vestem. Você pode levantar muitas questões sobre violência de gênero nas sociedades atuais, infelizmente.
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