A dama Do Labirinto



Yüklə 0,88 Mb.
səhifə2/12
tarix07.04.2018
ölçüsü0,88 Mb.
#47083
1   2   3   4   5   6   7   8   9   ...   12

Capítulo II

— Não farei isso, Giles. Não há ordem que possa me convencer a subir ao altar novamente. ― Engolin­do as lágrimas, Aislin olhou para Pointisbright, enrolado sobre si em cima da cama, e desejou ser livre e independente como seu bichano.

― Não é persuasão a arma que o rei tem em mãos, e sim a punição ― o abade de Tunbridge Wells advertiu-a. ― O estado de espírito em que Henrique se encontra nos garante a todos que você será severamente castigada se ousar contrariá-lo.

― Não tornarei a me casar.

― Recusar uma ordem do rei é o mesmo que colocar seu pescoço sob a lâmina do machado.

― Pouco me importa, Giles. Irei com satisfação para minha sepultura no lugar de enterrar mais outro marido. Se mais um homem vier a morrer, serei acusada às claras de praticar magia negra e isso me condenará à fogueira. De um modo ou de outro, o que me espera é a morte.

― Cara Aislin, não deixarei que isso aconteça. Dou-lhe mi­nha palavra: não permitirei que você seja perseguida. Se eu tivesse o poder de libertá-la das garras do rei... Mas Henrique já expressou sua vontade. E depois da carnificina no mosteiro de Combwell, o melhor que você tem a fazer é obedecer à ordem do soberano.

― Giles, não posso ser conivente com a decisão do rei de enviar mais um homem para os braços da morte. Tenho de dar um basta a esta maldição.

― Não há maldição alguma. ― O tom do abade começava a denotar impaciência. ― O que há são esses boatos maldosos.

― Como pode dizer isso depois que quatro homens perde­ram a vida por minha causa? O povo de Sevenoaks diz que sou amaldiçoada, você mesmo me contou as histórias terríveis que correm por aí a meu respeito.

― Ora, não deixe que as superstições dos camponeses de Sevenoaks a aniquilem. ― Giles se aproximou para colocar a mão no braço dela. ― Não foi nenhuma maldição que causou a morte dos homens com quem você se casou. Não julgue ser você a causa de tudo o que aconteceu. Eu já lhe disse, inúmeras vezes: eles tinham idade e o corpo judiado pelas batalhas.

― Sim, mas você também me falou que os habitantes de Sevenoaks acreditam que sou amaldiçoada por causa dos meus cabelos. ― Ela fitou os olhos do abade. ― Eu não me impor­taria de não ter um fio de cabelo na cabeça se com isso pudesse viver como as demais mulheres vivem.

― Aislin... Pobre e inocente Aislin... Você tem sofrido tanto, não é verdade? ― Após estreitá-la num abraço, Giles afastou-a de si para lhe dirigir um sorriso. ― Não, nada de chorar. Vamos tomar uma caneca de cerveja e comer alguma coisa. Algo me diz que faz dias que você não se alimenta direito.

― Se eu fizer as refeições no salão nobre, tenho a impressão de que a comida azedará no meu estômago por conta do medo que vejo nos olhos das pessoas. Pedi que minhas criadas não venham mais aos meus aposentos, e que minhas refeições se­jam servidas aqui.

― E vai comer sozinha entre estas quatro paredes?

― Oh, Giles, nem fome consigo sentir! A decisão do rei roubou-me o pouco apetite que eu tinha.

― Pois esta noite eu lhe farei companhia. Vamos nos ali­mentar, dar risada e decidir uma maneira de prepará-la para o que está por vir, pois não há como você desacatar uma ordem do monarca e continuar viva. Aislin, gosto demais de você para permitir que coloque sua vida em perigo. Você irá obedecer a Henrique e casar-se novamente. E nós rezaremos para que essa seja a última vez.

Desmond contemplou as torres de paredes espessas e depois a muralha arredondada guarnecida de ameias da fortaleza de Sevenoaks com uma mistura de admiração e raiva. Estava ali para reivindicar seus direitos a uma noiva que não conhecia nem desejava. Estava prestes a sacrificar sua liberdade no altar da servidão nupcial em troca de uma mulher idosa demais para se tornar a esposa dócil e complacente que havia imaginado para si. A constatação era dolorosa.

Por outro lado a fortaleza era magnífica, construída em pe­dras calcárias da cor do mel, bem projetada e excelentemente provida. Os inúmeros guardas que caminhavam pelo topo dos muros observavam os visitantes com olhos duros e sagazes. Sevenoaks era uma bela edificação, um castelo que qualquer cavaleiro teria orgulho de chamar de seu.

Enquanto Desmond, à garupa de Nevoeiro, esperava que a guarda junto à muralha erguesse o portão levadiço, uma nuvem densa encobriu o sol da tarde. No mesmo instante ele sentiu um arrepio ao longo da nuca. Aquela sombra repentina seria algum mau presságio?

Ele fez uma careta. Provavelmente idosa, encarquilhada, mirrada e seca como uma lasca de granito, sua noiva não iria enchê-lo de afagos como a dama sua mãe fizera com Basil. Seria tolice esperar que Aislin fosse banhá-lo, surpreendê-lo com seus pratos favoritos, afagar-lhe as costas e cuidar de seu bem-estar. E se alguma vez na vida ela tivesse tido tal propen­são, as quatro viuvezes certamente haviam lhe murchado o desejo de mimar alguém, fosse quem fosse.

― E como o quinto marido, terei sorte se conseguir um jarro de água com que me lavar na noite de núpcias ― Desmond resmungou consigo.

Obviamente poderia tomar alguma jovem doce e singela por amante. Mas isso não iria resolver o problema, uma vez que ela não teria como atendê-lo em seus aposentos. Além do mais, seu pai sempre o advertira de que duas mulheres eram duas vezes mais exigentes do que uma. E vários de seus conhecidos diziam que certas mulheres requisitavam mais cuidados do que um cavalo de batalha bem treinado em troca da metade da satisfação proporcionada pelo animal.

Quando ele já começava a olhar feio para a fortaleza, um guarda corpulento declarou:

― Barão Desmond, estávamos aguardando sua chegada.

― O rei mandou avisar que eu estava a caminho? ― ele retrucou no mesmo tom.

— Não, quem nos trouxe a notícia foi o abade de Tunbridge Wells. Ele nos disse para ficarmos alertas e darmos as boas-vindas ao barão Desmond Vaudry du Luc.

Passando por sob o sólido e espesso portão, o cortejo que acompanhava Desmond cruzou a entrada pavimentada com pedras arredondadas. Uma rápida olhadela para o alto foi o que bastou para revelar alguns abrigos secretos para seteiros. Sevenoaks podia ser uma jóia, mas fora construída com a fi­nalidade de proporcionar segurança e pronta defesa. Transpor aqueles muros e paredes não era tarefa nem simples nem fácil.

― Sair daqui também não. Muitos castelos não passam de uma prisão para seus lordes ― Desmond disse baixinho, ten­tando ignorar a aflição de ouvir o portão começar a descer às suas costas.

Em questão de minutos um vigoroso contingente de homens armados circundava os recém-chegados, enquanto pajens e criados tratavam de mostrar à comitiva o caminho para as co­cheiras e as gaiolas destinadas aos falcões.

― Fomos informados de que o senhor irá desposar Aislin, viúva de nosso bom amo Theron, que Deus proteja os ossos dele ― disse o guarda com sincero entusiasmo. ― Demos as boas-vindas aos três bons e nobres cavaleiros que vieram des­posá-la após a morte de lorde Theron, mas o abade encomen­dou a alma dos três na manhã seguinte à cerimônia nupcial. Rogo aos santos para que o senhor tenha melhor destino do que aqueles que o antecederam.

Aquelas palavras provocaram em Desmond a sensação de engolir chumbo fervente. Da maneira como todos o olhavam, era impossível não pensar que pareciam avaliar suas medidas para a confecção de uma boa mortalha.

― Farei uma prece pela sua saúde e longevidade, senhor. ― O guarda então se dirigiu a um rapazinho que puxava uma vaca leiteira: ― Você aí, leve esse bicho para o estábulo. Onde está a senhora de Sevenoaks? Era ela quem deveria estar aqui para receber o noivo.

O guarda ainda tinha a atenção no rapazote e na vaca quando o abade de Tunbridge Wells irrompeu pelo pátio interno do castelo acenando com a mão coberta de anéis.

― Barão du Luc, eis que enfim chegou ― disse Giles ao alcançá-lo e lhe apertar o braço. ― Já mandei avisar as cozi­nhas; o castelo está preparando um banquete em sua homena­gem. Trouxemos um novo tonel de vinho da adega. Ou será que prefere um banho para se refrescar da viagem? Sevenoaks possui aposentos destinados a seu castelão como não os há em nenhum outro lugar da Inglaterra. Trago comigo a única chave da porta de sua câmara privativa.

Assim que ele fez uma pausa para respirar, Desmond tomou a palavra:

— Abade, sua montaria deve ter asas para ter chegado aqui tão antes de nós.

― Ora, eu cavalgo num animal como outro qualquer. Por acaso não terá sido sua relutância em relação ao futuro enlace que o fez viajar numa marcha mais lenta do que de costume? ― Como a pontuar a indagação, Giles ergueu uma sobrancelha. ― A última vez em que o vi, você não me parecia muito sa­tisfeito com as determinações do rei.

Embora se sentisse bastante incomodado com a observação, Desmond fez o que pôde para não demonstrá-lo:

― Na verdade foi o derramamento de sangue inocente no mosteiro de Combwell que ofuscou aquele momento tão... fe­liz. Mas esteja certo de que eu não decepcionaria Henrique, abade, é da vontade dele que eu me case com Aislin, e eu o farei. A propósito, onde está ela? Eu gostaria de conhecer a castelã de Sevenoaks assim que possível.

O abade friccionou as mãos e, por um instante, pareceu pe­saroso. Porém, não demorou mais do que alguns segundos a se recompor, anunciando:

― Ela se encontra em seus aposentos.

― Está adoentada? Ou talvez disposta a desafiar a vontade do rei?

Pouco afeito a sutilezas inúteis, Desmond escolhera ir diretamente à questão. Então deu uma espiadela pela fortaleza. Os olhares que recebia pareciam abrir furos em sua armadura. Se­riam seus sentimentos conflitantes para com o casamento vin­douro, ou havia de fato algo estranho a pairar por entre as espessas paredes de Sevenoaks?

― Receio que minha prima esteja doente do coração. Ela ainda se acha profundamente abatida com a morte do quarto marido. ― O abade fitou Desmond no fundo dos olhos. ― Aislin pede-lhe desculpas e solicita permissão para permanecer em seus aposentos... por um breve período de tempo. Certa­mente pretende acatar a ordem de nosso soberano, mas requi­sita uma curta suspensão nos procedimentos relativos às núp­cias para que possa prantear seu falecido esposo como se deve.

Desmond emocionou-se ante a evidente afeição do abade pela parenta idosa, e também pela devoção com que ela reve­renciava a memória de um homem com quem estivera casada somente umas poucas horas. Ainda que se tratasse de uma senhora encarquilhada apegada demais a velhos hábitos, aquele pedido denotava seu bom coração.

E por mais que ele odiasse ter de admitir, a "curta suspensão nos procedimentos relativos às núpcias" provocava-lhe imenso alívio. O encontro com sua noiva seria adiado sem maiores problemas. Henrique ordenara-lhes que se casassem, e casa­rem-se eles iriam; porém mesmo um Plantageneta em pleno surto colérico certamente não privaria uma mulher de seu di­reito ao luto.

― Diga à sua prima que o prazo solicitado para prantear o falecido lhe será concedido. E também que faço votos para que esse tempo lhe sirva para acostumar-se à idéia de se unir em matrimônio novamente. Até lá, ela pode ficar onde melhor lhe convier. Por favor, abade, faça com que Aislin receba este recado.

― Muito obrigado, barão. Você é um homem bom e com­preensivo. Eu mesmo levarei sua mensagem até Aislin e, tão logo tenha falado com ela, irei me certificar de que os aposentos do castelão estejam preparados para recebê-lo. Esta noite, du­rante o banquete, ergueremos uma taça juntos em sua home­nagem. ― Com as vestes escuras a esvoaçarem por entre suas pernas, o abade rumou para o torreão principal da fortaleza.

Assim que ele desapareceu no interior do sólido castelo de pedras lavradas, Desmond lembrou que não havia pedido a chave que o clérigo mencionara. Teria de conhecer seus apo­sentos mais tarde, provavelmente depois do jantar. Até lá, cui­daria de fazer uma rápida inspeção por Sevenoaks.

Quando as sombras da noite recém-chegada transformaram-se em espessa cortina, ela já tinha os odiados cabelos presos à nuca e a cabeça protegida pelo pesado capuz. O manto largo o volumoso escondia-lhe o corpo, e o capuz encobria boa parte de seu rosto. Ninguém a reconheceria. Nem que trombassem com ela por acaso em seu mundo secreto, ninguém saberia datar-se da castelã de Sevenoaks.

Depois de bloquear a porta de seus aposentos com a grossa barra de carvalho que a cruzava de lado a lado, colocou mais um grande pedaço de lenha na lareira sob a chaminé cônica e atiçou o fogo. Labaredas cor de laranja lamberam a madeira própria para queimar, garantindo que o ambiente continuaria aquecido por horas.

― Venha, Pointisbright. Está na hora.

O gato fitou-a com seus grandes olhos amendoados. Aislin tomou-o nos braços, e o corpinho recoberto por pêlos alaran­jados logo desapareceu sob as dobras do pesado manto. Um ronronar satisfeito começou a vibrar de encontro à mão dela.

Detendo-se diante do grande painel de madeira entalhado de desenhos numa das paredes de seu dormitório, Aislin tomou entre os dedos a fria argola de metal oculta sob a mesa fixa ao lado da enorme gravura e girou-a até completar um círculo. O painel escorregou mansamente, abrindo-se com um suave mur­múrio. Ela então deu um passo para dentro do espaço vazio que se descortinara e ali girou outra argola. O painel deslizante tornou a se fechar.

― Vamos, bichinho preguiçoso. Nada de colo, esta noite você irá andando sobre suas patinhas.

Ao ver-se no chão, Pointisbright pôs-se ao lado dela com um miado. A tênue iluminação ao longo da passagem secreta rasgada nas pedras vinha das velas presas a suportes de ferro, distantes três metros umas das outras. Aquele era o corredor que levava Aislin ao seu mundo secreto... no qual ela encon­trava seu único consolo.

Desmond achava-se à cabeceira da mesa, com Coy a seu lado. Muito agradável, o salão tinha várias janelas estreitas com o topo em arco e no momento era iluminado por archotes e tochas de sebo no alto de hastes de junco presas em lanças de ferro. Atrás do tablado onde ficava a principal mesa havia uma bonita tapeçaria, cuja evocativa cena de caçada chamava a atenção de quem entrasse no recinto. Sevenoaks fora construí­da para resistir ao cerco, mesmo assim não lhe faltavam con­forto, riquezas e as mais recentes comodidades da arte da edi­ficação de castelos.

― Você recebeu uma bela moradia ― observou Coy. ― Ouso dizer que o menestrel dedilhando seu instrumento naque­le canto ali é tão competente quanto qualquer outro que tenha freqüentado a corte de Henrique.

― O companheiro dele também é bastante hábil com a flauta de marfim.

― Realmente ― Coy concordou. ― Faz anos que Theron de Sevenoaks foi para Deus, e mesmo assim esta fortaleza não mostra sinais de abandono. O intendente deve ser um homem extremamente capaz.

― Ou vai ver isto tudo é obra da castelã. ― No mesmo instante, Desmond formou na mente a imagem da matrona que governava Sevenoaks com primor. Não, nem em pensamentos ela se assemelhava ao tipo de mulher que dominasse seu tem­peramento em nome do prazer de seu lorde.

— Quem sabe? Você reparou que não há cães de caça vageando pelo salão? E que o junco com as tochas de sebo não devem ter mais de uma semana de uso?

Desmond viu sua melancolia crescer. Se Aislin era responsável pela arrumação impecável daquela moradia, então vinha fazendo um belo trabalho... sem se deixar impressionar com cada novo lorde que chegava, morria e era sepultado sob as lajes da capela.

As travessas de carne que chegavam à mesa alta desviaram a atenção dele de suas reflexões. Jovenzinhos enchiam jarras do vinho de uma pipa de carvalho, da qual se ocupava um homem de semblante severo nos fundos do salão. Desmond suspirou. Para o bem ou para o mal, em breve aquela proprie­dade lhe pertenceria.

A constatação provocou-lhe uma sensação contraditória. Estava orgulhoso da ordem, da limpeza e dos confortos que via a sua volta e, ao mesmo tempo, desejoso de que sua noiva não fosse tão eficiente. Bom mesmo seria se o rei tivesse lhe de­signado uma dama jovem e inexperiente, a quem pudesse ins­truir no ofício de administrar um castelo e nas artes do amor...

Decidido a empapar no vinho a frustração causada pelo re­vés, ele esticou o braço em direção à sua taça.

― Estou com uma sede insuportável esta noite ― disse Coy quando os dedos de Desmond se fecharam no ar.

― Estou vendo.

― Se este vinho for um exemplo de seus estoques, Sevenoaks tem motivos para se gabar de sua adega. ― Com um sorriso largo, Coy levou a taça que não lhe pertencia aos lábios e sor­veu uma demorada golada.

― Está assim tão esfaimado e com tanta sede que tem de comer da minha travessa e beber da minha taça? Não lhe bas­tam as suas?

― Acho que a viagem exacerbou meus apetites. ― Coy tornou a beber longo gole do cálice de Desmond.

― É o que parece.

Tão logo uma criada voltou a encher a taça de Desmond. Coy apoderou-se do cálice para mais uma vez tomar boa parte de seu conteúdo.

― Coy, você não está deixando que eu prove do meu vinho.

― Ora, que distração... Peço-lhe desculpas. Mas não se abor­reça, tomei só um golinho. ― Coy devolveu a taça à mesa. ― Pronto, beba à vontade.

Desmond sacudiu a cabeça. Longe de ser um rústico plebeu, Coy tinha origem nobre, era um Brambourg da Nortúmbria. Aquele comportamento despropositado só podia ser efeito da fatiga e da longa viagem.

― Já que está tão sedento, fique com minha taça ― Des­mond ofereceu ao amigo. ― Meu apetite se foi, minha cabeça está doendo, tudo o que quero é escapar deste jantar.

Os olhares que vinha recebendo desde que pusera os pés em Sevenoaks começavam a incomodá-lo. Todos lhe sorriam, mas a compaixão que tinham nos olhos acabava por mexer com seus nervos: era como se o vissem numa pira funerária. Por outro lado, ninguém ali parecia se importar com o lugar vago ao lado do dele, a cadeira que deveria estar sendo ocupada por sua noiva. Isso era estranho, a menos... A menos que Aislin se fizesse ausente do salão com freqüência. O que seria mais es­tranho ainda.

― Algo não vai bem neste castelo ― resmungou Coy, dando voz aos pensamentos de Desmond. ― Não só vejo uma ex­pressão que se assemelha ao medo no semblante das pessoas que moram aqui, como também ouvi comentários que...

― O que foi que você ouviu?

― Ouvi falar... ― Coy deu uma mordida de uma pequena maçã amarela que haviam colocado diante de Desmond, depois devolveu a fruta ao prato de madeira, prosseguindo: ― ...que há por aqui um receio generalizado de que a dama da fortaleza esteja se dedicando ao preparo de poções letais. Dizem até que ela tem uma criatura que a auxilia com as feitiçarias.

― É a senhora do castelo que eles temem, não a mim?

― Você é bem-vindo, mas não há como negar que seja visto com piedade. Afinal, acreditam que você esteja perto de en­cerrar seus dias neste mundo.

― Mas o que provoca tais sentimentos entre essas pessoas? Será que foi a morte dos quatro lordes que os deixou em pânico, ou há alguma outra coisa de que ainda não sabemos?

― No mosteiro de Combwell corriam boatos afirmando que Aislin é má e pecaminosa. Gwillem ouviu falar que ela tem os cabelos da cor do fogo... cabelo do diabo, como dizem por aí ― revelou Coy.

― Ora, nunca ouvi tamanho disparate. Se a dama é idosa como suponho, então deve utilizar ervas e tinturas para preser­var a ilusão da juventude. Os tais cabelos cor de fogo por certo não passam do resultado de uma mistura de vaidade e uma decocção de tinturas malfeita. ― Desmond deixou escapar um suspiro que era a expressão da mais profunda tristeza. ― Co­meço a pensar que o rei realmente me obrigou a desposar uma velha encarquilhada. Essa dama deve ser tão feia que levá-la para o leito nupcial fez com que quatro homens enfrentassem uma morte prematura.

A imagem da matrona sem dentes e toda enrugada com um apetite insaciável pela arte do amor carnal era tão repulsiva que fez Desmond pular da cadeira. Incapaz de conter uma gar­galhada, Coy quase se engasgou com o novo bocado de maçã que mastigava com incrível rapidez.

Um silêncio sepulcral tomou conta do salão. Todos os olhos estavam voltados para a cabeceira da mesa. Rígido como uma tábua e um tanto embaraçado, Desmond apoiou as mãos sobre o tampo de madeira antes de declarar:

― Terminem seu jantar. Estou bastante cansado e gostaria de tomar um pouco de ar puro para clarear minhas idéias. A comida estava excelente. Quero felicitar a todos e dizer que estou orgulhoso de vocês.

Os moradores do castelo saudaram a mensagem com mani­festações de satisfação, depois voltaram a seus pratos.

― Vou com você ― disse Coy, fazendo menção de se le­vantar.

Desmond pôs a mão sobre o ombro do amigo para detê-lo.

― Não, meu bom companheiro, fique e termine sua refeição. Afogue sua sede e mate sua fome. Pode ficar com o que ainda não comeu da minha travessa.

― Meu dever é protegê-lo, Desmond.

― Não será necessário. Esta fortaleza tem muitos prodígios, a começar pelos aposentos para o castelão com uma porta só­lida e uma fechadura inexpugnável. O abade me deu a chave quando vim para o salão. A nenhum pajem, escudeiro ou servo é permitido dormir naquele aposento. O que não deixa de ser curioso, mas Giles me garantiu que se trata de um cômodo extremamente confortável. E a esta altura dos acontecimentos, Coy, devo confessar que a promessa de privacidade me vem bem a calhar, já não era sem tempo que eu desfrutasse de uma boa noite de sono longe se seus roncos e do falatório que você faz quando dorme.

― Eu não falo enquanto durmo. Nem ronco. Aliás, por que você insiste em dizer isso?

― Ah, é verdade, você não ronca, apenas inspira e expira o ar fazendo um barulho infernal. ― Rindo, Desmond deu um lapa nas costas do amigo. ― Não se zangue, bom Coy. Eu estava brincando.

― Isso quer dizer que posso ficar nos aposentos senhoriais, com você?

― Não, não pode.

― Então feche a porta com a chave e a tranca, Desmond. Irei dormir numa esteira no corredor, do lado de fora de seus aposentos.

― Não estou correndo perigo algum no momento. Você só deve se preocupar com a minha proteção depois que eu me casar com Aislin e levá-la para o leito nupcial. Pois aí então, se minha teoria estiver correta, estarei correndo o risco de mor­rer de desgosto, pavor ou repulsa. Mas será o preço que tenho de pagar por ser um cavaleiro leal a seu soberano.

― Não zombe de um assunto tão sério.

― Pare de criar caso como se eu fosse um menino levado e você, minha ama-de-leite. Sou um homem feito, plenamente capaz de cuidar de minha própria segurança.

― Como preferir, ― Coy comprimiu os lábios à reprimenda, porém, ao vê-lo virar-se, acrescentou: ― Mas saiba que não gosto disso.

― Ah, como fui me esquecer? ― Desmond indagou por sobre o ombro. ― A última palavra é sempre a sua, não é mesmo?

Ainda que sentisse o peso dos olhares em suas costas, ele não olhou para trás enquanto deixava o salão repleto. Aquilo não era nada comparado à frustração que lhe apertava o coração.

Era um cavaleiro do reino, um barão, e como nobre preci­sava do consentimento do soberano para casar-se. Com a morte de seus pais adotivos herdara a fortuna da família e o próspero baronato de Mereworth, lar ancestral dos du Luc desde que o Conquistador chegara à Inglaterra vindo da Normandia. A pro­priedade pagava pesados impostos à Coroa e, a julgar pelo que tinha averiguado até então, Sevenoaks também. Seria um tolo se imaginasse que Henrique iria lhe permitir prosseguir com sua vida errante e solitária indefinidamente. Os barões, assim como as damas, tinham por obrigação gerar filhos e filhas para o bem da Inglaterra.

De modo que iria casar-se e manter relações carnais com a encarquilhada e várias vezes viúva Aislin porque era essa a vontade do rei. Não havia o que argumentar, não havia como esquivar-se.

A boda seria celebrada mesmo que a castelã de Sevenoaks fosse mais engelhada do que um figo seco. Aquela era uma união de interesses e obrigações, não de afeições.

― E como ela é uma dama apegada a seu modo de viver, posso esquecer quaisquer sonhos de conquistar seu respeito, sua estima, seu coração. Jamais terei o amor de uma mulher verdadeiramente apaixonada por mim.

Caminhando a esmo lá fora, Desmond inspirava longas gol­fadas de ar na tentativa de afugentar a triste sensação de vazio c desesperança que o ameaçava. Com passadas curtas, porém cadenciadas, deixou para trás o pátio interno do castelo, cir­cundou as cozinhas, passou pelas gaiolas destinadas aos falcões c ganhou o conforto da escuridão. Sem prestar atenção aonde ia, continuou a caminhar. Pelo gramado, por trás da despensa, do celeiro, das cocheiras... E mesmo assim seus pensamentos não se desapegavam de Aislin de Sevenoaks. Não era culpa dela ser forte e saudável o bastante para sobreviver aos vários esposos. Nem seria nada além de mera coincidência o fato de todos eles terem morrido após a noite de núpcias.

Não era verdade?

Estava convencido de que a dama nada fizera para provocar o triste fim de seus maridos. Tampouco a culpava pelo casa­mento que estava prestes a se realizar. O rei o decretara. Aislin, como ele, era obrigada a obedecer ou aceitar as conseqüências. Giles, o abade, dissera que a prima se encontrava num estado de profundo pesar. Bem, não era para menos. Não havia por que duvidar de que a pobre e frágil alma da idosa senhora não tivesse sofrido um bocado ante tantos e tamanhos percalços.

― Ela deve odiar os planos de Henrique tanto quanto eu ― comentou consigo. ― Afinal, já enterrou quatro maridos e nem assim o rei a deixa em paz. Além do quê. também não teve a oportunidade de dedicar-se como queria ao luto, pois cá estou eu, pronto para arrastá-la para o leito nupcial antes que seu último esposo esfriasse completamente na cripta mortuária.

Esgotado o arroubo de desassossegada energia, Desmond se encostou a um muro baixo e amaldiçoou-se em silêncio. Como podia ser tão pusilânime? E se fosse sua irmã, Rowanne, quem estivesse naquela situação? Ainda não aprendera o quão inocente e melindroso podia ser o coração de uma mulher? Pobre Aislin!... Que culpa a coitada teria por não ter gerado um herdeiro após suas malfadadas núpcias?

Ao erguer os olhos para o céu, ele viu que a lua já se ergue­ra acima da compacta muralha externa da fortaleza. Feixes de uma luminosidade toda prateada entornavam-se sobre as ameias, refletindo-se pelas áreas ao redor do castelo. Dos pa­rapeitos vinham o murmúrio de vozes e um leve retinir de metal, o que indicava que os guardas lá em cima estavam alertas e vigilantes.

― Bem, pelo menos tudo parece em ordem por aqui.

Desmond voltou a caminhar pelo pátio externo do castelo. Uma nuvem cobriu o halo prateado no céu, e a noite clara transformou-se num poço de escuridão, obrigando-o a buscar seu caminho mais pelos instintos de guerreiro do que pela vi­são. De um momento para outro, porém, viu-se invadido pela impressão de que havia plantas quase a tocarem seu rosto e de que o ar ao redor parecia mais perfumado. Apesar da estranha sensação ele seguiu adiante, embora mal pudesse enxergar um palmo à frente do nariz.

De repente, como uma grande pérola a emergir à superfície do mar, a lua libertou-se das nuvens e voltou a brilhar. Des­mond então se viu entre duas espessas paredes formadas por cerca-viva: estava num labirinto de arbustos altos. Tão surpreso quanto intrigado, caminhou pelo corredor formado pela folhagem de elevada estatura, então virou à esquerda, depois à di­reita, reparando que era como se suas botas pisoteassem pedriscos. Aqui e ali uma flor ou uma vinha silvestre brotavam bem no meio do caminho, o que o fez pensar que devia fazer muito tempo que alguém não passava por ali.

Mais um pouco e ele se deparava com o coração do labirinto. Era difícil escolher o que admirar primeiro: as flores, as videi­ras, os bancos de pedra e o relógio de sol, ou ainda o cintilante jorro d'água de uma fonte; tudo ali parecia atrair seu olhar estupefato. Embora tivesse visto jardins similares àquele à épo­ca em que estivera na Cruzada, jamais esperava encontrar algo semelhante entre as robustas muralhas de Sevenoaks. Sempre que seus ombros roçavam contra pétalas ou seus calcanhares tocavam caules e folhas, uma suave fragrância se desprendia das flores que vicejavam à noite.

― Onde está você? ― O sussurro veio num sopro que se mesclava ao delicado perfume do jardim. ― Por favor, não vá se esconder de mim... justamente esta noite.

Retesando-se ao fervoroso apelo contido na voz suave, pró­pria de uma jovem, Desmond colocou seus instintos guerreiros em extremada atenção enquanto seus olhos perscrutavam as sombras criadas pela claridade do luar. O ruído dos passos que avançavam sobre o caminho de pedriscos levou a mão dele à empunhadura da adaga em seu cinturão.

Um gato miou. Ao baixar os olhos, Desmond foi encontrar o grande e bem alimentado felino a esfregar a cabeça em sua bota com grande gosto.

― Pointisbright? Onde você se meteu?

Por pouco Desmond não ofegou. Era como se aquela voz lhe acariciasse a pele como uma meada de fios de seda. To­mando o gato nos braços, ele se lançou na ponta dos pés na direção de onde vinha a voz tão sedutora.

― Pointisbright, não me deixe nervosa. Venha aqui, já. ― A reprimenda vinha num tom temperado pela impaciência tí­pica das mulheres.

E Desmond adorava donzelas irritadiças.

Os contornos de um vulto assomaram do lado das videiras. Envolta num manto pesado e escuro, quase imperceptível exceto pelo aroma de óleos exóticos e pelo perfume natural fe­minino, a jovem estava de costas para ele. Num esforço para não pensar na tensão sensual que ardia como fogo em suas veias, Desmond saiu das sombras mostrando o gato que tinha entre as mãos.

Este deve ser Pointisbright, não?

Um instante após um arfar de surpresa elevar-se no ar, a jovem virou-se para ele. Um volumoso capuz lhe ocultava qua­se todo o rosto.

― Entregue-me Pointisbright, por favor ― ela pediu, esti­cando os braços.

Desmond examinou as mãos pequenas; eram esguias, bem-feitas, com dedos longos... Rápida como um piscar de olhos, a jovem tirou-lhe o bichano.

― Quem é você? ― indagou a voz de seda. ― Como con­seguiu chegar aqui? Quem lhe contou sobre o labirinto?

Desmond fez força para não sorrir. A donzela obviamente supunha que seu jardim estivesse resguardado da visita de in­trusos e demonstrava a arrogante presunção de supor que de­vesse conhecer pelo nome todos os homens que habitavam a fortaleza de Sevenoaks. Gostou dela. A jovem era irascível, insolente... encantadora.

― Ah, à qual pergunta devo responder primeiro? ― Ele não conseguia resistir à tentação de bulir com a misteriosa jovem. ― Mas talvez o mais apropriado seja esclarecermos algumas dúvidas: quem é você e como veio ao coração do labirinto sem que eu a visse entrar?

― Como fui eu quem tomou a iniciativa de interpelá-lo, você tem obrigação de responder às minhas perguntas. ― Ela se empertigou toda sob as pesadas dobras do manto. ― Como foi que conseguiu entrar neste labirinto? Quem é você!

Sentindo um assomo de desejo pulsar à altura das virilhas, Desmond respirou fundo. Precisava ver o rosto que a jovem escondia sob aquele grande capuz... Com isso em mente, co­locou uma perna à frente do corpo e, agitando a mão no ar, dobrou a espinha em exagerada mesura. Aquela posição lhe permitia sondar as feições que o capuz encobria, mas a noite e as sombras frustraram-lhe a tentativa: não foi possível ver o rosto dela.

― Sou Desmond Vaudry du Luc, barão de Mereworth, às suas ordens, milady. Fui enviado para tomar sua senhora, Aislin de Sevenoaks, por minha esposa. E agora, minha misteriosa donzela do jardim, exijo saber: quem é você?

A claridade do luar se emaranhava pelos desalinhados ca­belos castanho-claros dele tal qual uma amante a afagar as madeixas de seu amado.

Desmond Vaudry du Luc. Aquele nome adejava entre, ambos com a força do hálito de um dragão. Então era esse o cavaleiro que o rei escolhera para ela? Seria mesmo verdade?

O barão era jovem, forte e belo. Em nada fazia lembrar os outros esposos que Henrique lhe enviara. Jesus, aquele homem à sua frente poderia procriar filhos e filhas. Evidentemente não se tratava de um guerreiro de meia-idade que necessitasse de cuidados e remédios. Ele possuía ombros largos e um sorriso cativante. A perna sobre a qual se curvara tinha músculos fir­mes. Certamente saberia cavalgar com mestria, empunhar uma espada com brio e amar uma mulher com voluptuosa perícia.

O primeiro impulso de Aislin foi fugir dali... fugir de tão imperiosa virilidade. Doía-lhe olhar para o homem diante de si e lembrar os outros quatro que o tinham antecedido. Mas por maior que fosse sua vontade de sumir daquele labirinto, seus pés não lhe obedeciam e o coração lhe martelava o peito com tanta força que mal a deixava mover-se.

Henrique escolhera para ela alguém com idade próxima à sua, um homem em pleno gozo da juventude, das capacidades física e mental, dos encantos masculinos. O homem por quem ela sempre ansiara... Só que agora era tarde demais. Desposá-lo seria o mesmo que condená-lo à morte, e isso ela não podia fazer.

Tanto seu caprichoso soberano como seus amaldiçoados ca­belos haviam dissipado suas chances de felicidade. Não lhe restavam esperanças. Não tinha o direito de colocar em perigo a vida daquele homem à sua frente, ou qualquer outro, na ten­tativa de buscar ser feliz. Fosse qual fosse a punição que Hen­rique III decretasse contra seu ato de desobediência, não iria casar-se novamente. Nem mesmo com aquele belo barão que a atraía com seus olhos azuis e sua constituição física perfeita.

Preferia colocar a cabeça sob a lâmina de um machado.

Estar assim tão próxima dele fazia sua pele se arrepiar, ao mesmo tempo admirá-lo reabria a ferida que lhe envenenava a alma. O olhar cintilante com que Desmond a examinava trazia de volta os tolos sonhos do passado, só que agora não era mais uma jovenzinha ingênua que pudesse se entregar a expectativas românticas. A dor de cogitar da felicidade com que sempre sonhara e que não mais se achava a seu alcance era... insuportável.

Com um soluço, Aislin se virou preparando-se para escapar à agonia que tanto a angustiava. A mão quente e firme que pousou sobre seu ombro impediu-a.

— Espere... Não se vá. Não insistirei para que me diga seu nome, se é isso o que a aflige. Não quero que vá embora deste jardim tão bonito por minha causa. Por favor, fique um pou­co mais.

Tentando negar o calor e o alívio que emanavam da mão dele, Aislin engoliu em seco e ouviu-se dizer:

— Como preferir.

Todas as fibras de seu corpo pareciam duelar entre si: sua mente bradava por salvá-lo, seu coração lhe implorava para ficar e desfrutar de cada instante venturoso na companhia dele. Sempre que os olhos de Desmond buscavam os seus, parte de seu coração se enternecia e abria-se como uma flor da noite buscando a luz do luar. Fazia tempos, sentia-se uma planta ressequida prestes a definhar, mas eis que então Desmond Vaudry du Luc descobrira seu mundo secreto, seu labirinto, seu refúgio... e sorria para ela.

— Não sei o que a preocupa tanto assim, dama, mas como não parece disposta a me dizer seu nome e eu tenho de chamá-la de alguma maneira, permita-me escolher para você uma forma de tratá-la condizente com este momento, com esta noite mís­tica e imponderável. — Após inspirar profundamente a doce fragrância que pairava pelo jardim, Desmond deixou que seus olhos vagassem para além do relógio de sol e acima do topo irregular da cerca-viva que formava o labirinto, depois os er­gueu ao céu, onde as estrelas desapareciam por trás do véu de nuvens para reaparecer pouco depois como se tocadas pela mão de um mago. — Vou chamá-la de minha donzela das estrelas. Aliás, seria justo que você tivesse um colar feito com um pu­nhado delas. Com uma pérola que resplandecesse mais do que a lua.

Aislin tinha a respiração presa. Não era difícil crer que ele pudesse arrebatar algumas estrelas do firmamento. Desmond parecia capaz de tudo. Era a imagem perfeita e acabada do homem que todas as jovens donzelas esperavam um dia des­posar. Ou melhor, as donzelas tolas que acreditavam que a felicidade pudesse ser alcançada por intermédio do casamento. Oh, coitadas!

Desmond se admirou do suave suspiro que escapara dos lábios dela. Aquela jovem de voz tão doce parecia carregar uma dor profunda na alma, como se mais de uma vez já hou­vesse se confrontado com perdas trágicas. Se pudesse, gostaria de ser o homem que a fizesse sorrir e esquecer as angústias. Sentia-se impelido a ajudá-la, embora nem soubesse como. E até agora ainda não conseguira ver o rosto dela... Como podia experimentar tamanha empatia por alguém cujas feições ainda não conhecia?

Como se lesse seus pensamentos, ela ergueu a cabeça. A claridade do luar infiltrou-se pelas dobras do capuz, revelando detalhes do semblante antes oculto.

Os olhos dela eram claros. Verdes? Azuis? Era difícil saber ao certo. Ao refletirem o brilho prateado da lua pareciam ainda mais... exóticos, incomuns.

Ela aparentava profunda melancolia. Era jovem, mas o vestígio de uma lágrima sobre a face acetinada fazia supor que não mais acreditasse na versão poética da vida. Teria seguido os ditames do Amor Cortês? Teria entregado o coração a um homem que não era seu marido?

Ao examinar o rosto pálido, Desmond viu-se tomado por uma dezena de perguntas sem resposta. E enquanto tentava gravar as feições dela na memória, ocorreu-lhe que aquela era a donzela de seus sonhos. Ela era jovem; era bela. Trazia no rosto uma tristeza inocente. Aquele era o tipo de mulher com quem almejava casar-se. Aquela era a donzela virginal á quem poderia ensinar os prazeres da arte de amar até fazê-la apaixo­nar-se por ele. Ela lhe seria dedicada, submissa... perfeita.

— Você é casada? — ouviu-se indagar sem sutileza, sem preâmbulos, sem sagacidade.

As grossas sobrancelhas castanhas dela se aproximaram num olhar de censura e reprovação. Ela pestanejou, os cílios longos e espessos a enfatizar ainda mais os já fascinantes olhos claros.

— Não sou casada e jamais me casarei.

A voz acetinada expressara uma determinação que chegava a surpreendê-lo. Como alguém tão jovem e frágil podia ser assim resoluta? Pelo Cristo, a cada instante que passava via-se mais e mais intrigado. E mais excitado pela presença dela. Uma mulher graciosa e atraente como aquela devia estar às garga­lhadas, desdenhando as atenções de uma dúzia de admiradores ávidos em tê-la em vez de menosprezar um único barão lascivo. Pois na verdade queria tomar a mão dela, murmurar-lhe pala­vras de amor ao ouvido até fazê-la corar e lhe permitir roubar um beijo.

Por que ela estaria ali? Sozinha? Triste? Quem era aquela visão?

Deus, como queria beijá-la!...

Os lábios dela eram firmes, nem grossos nem cheios demais. Aquela encantadora donzela possuía uma boca imperiosa, e seu queixo altivo e reto era um belo complemento ao rosto dei forma oval. Pena que seus cabelos estivessem ocultos pelo ca­puz. Seriam dourados? Ou talvez castanhos e brilhantes como o pêlo de um esquilo? Ora, mas o que isso importava quando a única coisa em que ele conseguia pensar no momento era beijá-la?

Embora sua vontade fosse perguntar se podia tomá-la nos braços, se podia instigá-la a pecar com ele sob as estrelas, Desmond indagou somente:

— Você vem sempre aqui?

— Sim, costumo vir aqui à noite... quase todas as noites. Quando quero ficar sozinha. — Quase como a desafiá-lo, ela o fitava olhos nos olhos.

Desmond sorriu ante a sutileza com que ela dispensava sua presença. Com certeza não se tratava de uma criada, isso ficava evidente não só pela inequívoca maciez das mãos que segura­vam Pointisbright, mas também pelo modo como ela falava e pelas palavras que escolhia para se expressar. Seria uma virgem bem-nascida que morava em Sevenoaks como dama de com­panhia de Aislin? Filha de algum barão das imediações? Estaria se criando ali para aprender com a idosa Aislin as tarefas de uma castelã? Talvez fosse alguma parenta dos finados maridos da velha senhora.

Quanto mais Desmond estudava o rosto da bela jovem, mais curioso ficava. E mais crescia seu desejo por ela. Elegante e inocente, aquela garota era a fina flor da Inglaterra: o tipo de filha que muitos homens criavam como um vultoso dote que lhes assegurasse uma velhice abastada.

— E você gosta de ficar sozinha com freqüência? Ou só disse aquilo para que eu fosse embora? Porque, se for esse o caso, saiba que não alcançará seu intento. — Desmond deu um passo em direção a ela. O perfume que se desprendia da pele tão clara se misturava ao aroma das plantas e da noite. Seria tão bom sentir aquelas carnes frescas e esculpi-las sob as pal­mas de suas mãos... — Você me deixa como encantado... Por acaso é feiticeira?

Branca como cera, a jovem ofegou e deu um passo para trás. De tão casta, a reação à sua investida inflamou ainda mais o desejo que o atormentava. Embora se achasse à luz prateada do luar, ele sentia o corpo arder como se estivesse sob o sol da Terra Santa.

— Estou habituada a ficar sozinha.

Desmond não percebeu que deixava escapar um suspiro. Com muita habilidade, ela evitava responder se preferia que ele se fosse daquele jardim. Embora parecesse um pouco as­sustada e bastante recatada, a donzela encontrara uma forma de não ferir os sentimentos dele. Essa era mais uma prova de suas boas maneiras. Ou seria possível que realmente desejasse que ele continuasse ali? Que sentisse um pouco, um pouquinho que fosse, da paixão que eletrizava o ar que os envolvia?

— Estou sempre sozinha — ela insistiu, baixando a cabeça.

O capuz escorregara para a frente e lhe cobrira o rosto. Num gesto-instinto, Desmond aproximou-se e colocou o dedo sob o queixo dela.

— Deixe-me olhar para você, donzela do labirinto. — Ergueu-lhe o rosto. — Você é mais bela do que um belo sonho. Mas por que está tão trêmula? Não é minha intenção lhe fa­zer mal.

— Não estou com medo de você, se é isso o que está ima­ginando.

— Então não irá se assustar com meu gesto.

Cedendo a um impulso, Desmond roubou-lhe um beijo. O hálito dela tinha um suave aroma de hidromel. Que bom seria tomá-la entre os braços... e apertá-la junto a si até que os contornos de seus corpos se encaixassem como num quebra-cabeça.

O sibilar irado de Pointisbright e um súbito ardor no dorso da mão fizeram Desmond, ainda que relutante, afastar-se dela. Erguendo o braço à claridade da lua, ele então viu o profundo arranhão com que o caprichoso bichano o tinha presenteado.

— Céus, está doendo? — ela ofegou. — Pointisbright nunca havia feito uma coisa dessas. Ele deve ter se assustado com o seu atrevimento.

— Só um homem muito atrevido ousaria roubar um beijo seu sabendo que você tem um leão para protegê-la. — Desmond sorriu. Estava nervoso, excitado e profundamente interessado nela.

— Se sabia, por que tentou?

— Uma donzela linda merece ser beijada com freqüência. Mesmo corando, ela contra-atacou:

— Você é sempre assim estouvado?

— Talvez eu possua mais coragem do que miolos, ou pelo menos é isso o que meus amigos me dizem. Mas creia em mim quando afirmo que você é bela e agradável.

— Você não sabe o que diz — ela retrucou com acanhada convicção.

— Sei, sim. E digo a verdade. Uma donzela como você deveria ser cantada em baladas e poemas. Os homens deveriam lazer quaisquer loucuras em seu nome. — Desmond tornou a se aproximar dela. O gato voltou a sibilar em sinal de alerta. — Calma, bichano assustado.

Ela sorriu. Um sorriso tímido, como se sorrisse bem pouco ou fizesse muito tempo que não sorria. Arriscando-se nova­mente à ira de Pointisbright, Desmond ergueu o braço e passou suavemente a ponta do polegar pelo lábio dela.

— Eu faria o que fosse preciso para arrancar novos sorrisos desses seus lábios tão tentadores, bela donzela, mas ainda que eles se curvem, seus olhos continuam frios e pesarosos.

Ela fez menção de falar, mas então a voz de Coy ecoou pelo ar rompendo o silêncio da noite. O cavaleiro chamava por Desmond de algum lugar bem afastado do labirinto de arbustos.

— Meu amigo Coy está procurando por mim. — Desmond virou-se na direção de onde vinha o chamado.

— Não responda, eu lhe imploro. Este jardim é um segredo.

De costas para ela, Desmond sentiu que aquelas palavras chegavam a seus ouvidos num sopro de expectativa e medo.

— Ninguém sabe da existência deste labirinto — ela pros­seguia. — Não deixe que meu jardim seja descoberto, meu lorde. Por favor, não revele este segredo. Eu lhe imploro.

Ainda atento aos apelos de Coy, Desmond tentou tranqui­lizá-la:

— Ora, milady, como o labirinto pode ser secreto se estou aqui? E eu vim sozinho, não vim? Olhe, eu gostaria que você conhecesse meu companheiro. Ele... — Um farfalhar entre a folhagem o fez virar-se.

O jardim estava deserto. Do inesperado e insólito encontro restavam apenas um aroma de folhas pisoteadas e o raro per­fume de uma bela donzela assustada. Desmond franziu o ce­nho. Se não fosse pelo arranhão em sua mão e do leve gosto do beijo dela em seus lábios, poderia pensar que aquele inci­dente não passara de mera imaginação.

Como ela fora desaparecer tão rapidamente? Parecia que havia se esvaído como uma nuvem de fumaça. Aonde teria ido? Como?


Yüklə 0,88 Mb.

Dostları ilə paylaş:
1   2   3   4   5   6   7   8   9   ...   12




Verilənlər bazası müəlliflik hüququ ilə müdafiə olunur ©muhaz.org 2024
rəhbərliyinə müraciət

gir | qeydiyyatdan keç
    Ana səhifə


yükləyin