A dama Do Labirinto



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Capítulo IV

Quando o sol desapareceu atrás das muralhas guarnecidas de ameias do castelo, ela correu a prender os cabelos jun­to à nuca, depois se cobriu com o manto.

Embora a noite ainda não tivesse engolfado Sevenoaks por completo, a verdade era que Aislin não agüentava mais esperar. E foi com o estômago retorcido de tanta ansiedade que ela deixou seu dormitório para mergulhar na passagem que a le­varia ao jardim secreto lá embaixo, rezando para que Desmond lograsse encontrar novamente o caminho ao coração do labi­rinto... Ao coração de sua alma.

― Que grande sonhadora você se tornou ― ralhou consigo mesma. ― Foi só por mero acaso que ele conseguiu chegar até lá. Desde que o labirinto foi feito, nenhum outro homem foi capaz de desvendar seus mistérios.

― Por todos os santos, estou a ponto de sacar de meu punhal e rasgar um caminho por entre estas paredes de arbustos ― resmungou Desmond ao ver-se diante de um corredor sem saí­da pela sexta vez consecutiva desde que entrara naquele ben­dito labirinto.

O crepúsculo se anunciava no céu quando ele chegara ali, agora era noite cerrada, a brisa assobiava pelo topo da intrin­cada cerca-viva, e no céu as estrelas cintilavam como gemas lapidadas dispostas sobre veludo de profundo azul.

Passando a mão pelos cabelos num gesto de frustração, ele se virou e retrocedeu pelo caminho que havia feito, pronto para começar tudo de novo.

― Da outra vez consegui chegar lá sem ao menos imaginar para onde estava indo. Haverei de encontrar o caminho agora que sei o tesouro que me espera no centro do labirinto. Hei de conseguir. Tenho de vê-la novamente.

Mas o desespero começava a deixá-lo ainda mais confuso. Se não era por ali nem por aquele outro corredor, então o... Um farfalhar na folhagem o fez virar-se ao ruído às suas costas. Junto ao grosso caule de uma videira, um par de olhos verde-alaranjados parecia piscar para ele.

― Pointisbright, o leão do jardim secreto. ― Abaixando-se, Desmond acariciou o pêlo macio do dorso do manhoso gato. ― Se você concordar em ser meu guia, prometo recompensá-lo com uma boa tigela de leite fresco e cremoso todas as noites.

Ao ver o bichano piscar duas vezes, Desmond teve a im­pressão de que aquela sagaz criaturinha avaliava a proposta que recebera... Então, com um movimento rápido da cauda que tinha erguida, Pointisbright deu meia-volta e, altivo como um rei, partiu por entre as paredes de folhas viçosas.

― Mostre-me o caminho, sir Caçador de Camundongos.

Sem perda de tempo, Desmond se pôs no encalço do bicha­no. Seguiu-o de perto por corredores inundados de sombras, dobrando uma curva aqui, outra acolá, sempre a reproduzir o caminho que Pointisbright percorria. Apesar de tudo, não estava plenamente convencido de que um felino pudesse lhe servir de guia como um cão o faria. Por isso, não foi sem certa surpresa que, minutos depois, deparou-se com o miolo do labirinto.

Surpresa que deu lugar a uma imensa alegria: sentada num banco de pedra ao lado do relógio de sol, tão imóvel que parecia esculpida do mesmo mineral, lá estava ela, a única pessoa que de fato lhe interessava em Sevenoaks.

Pointisbright saltou para o colo dela com um miado satis­feito. Desmond pisou num graveto, ruído que levou a dama a voltar para ele os olhos claros que, naquela noite, pareciam ainda mais misteriosos e inescrutáveis entre as sombras do ca­puz que lhe cobria boa parte do rosto.

― Você veio ― ela disse baixinho. ― Eu não esperava. Parte de mim rezou para que você não aparecesse.

― Por quê?

― Porque você se arrisca ao vir para este jardim.

― Em breve serei o senhor de Sevenoaks, se não estou em segurança dentro dos limites de minhas terras, onde mais ha­veria de estar?

Caminhando até ela, Desmond segurou-lhe o rosto entre as mãos e curvou-se para lhe capturar os lábios num beijo. Bei­jou-a com todo o abandono e toda a volúpia de um homem que passara o dia inteiro pensando na mulher que tanto o fascinava e como o instigava. Aliada à dificuldade para chegar até ali, a ansiedade por revê-la lhe inflamara o sangue, deixando suas virilhas pesadas de tanto desejo.

Pelos Céus, como a desejava!

O assombro da donzela ante seu atrevimento era evidente.

Ela estava rígida, como que pasma, porém isso só fez crescer seu ímpeto de conquistá-la, de persuadi-la, de subjugar aquela barreira de frieza. Buscou saboreá-la com uma carícia mais íntima, passando a ponta da língua pelos contornos da boca que hesitava à sua. Os lábios dela então se abriram com um suave gemido e um perfume de frutas e mel.

Tal como um lobo que experimentasse o gosto de sangue pela primeira vez, Desmond projetou a língua por entre os lá­bios trêmulos em movimentos que expressavam a ânsia de sua busca e a paixão que o acometia. A busca de equilíbrio, ergueu o joelho e apoiou o pé no banco de pedras, ao lado dela. Quando enfim se deu conta de que tinha aquele corpo tão delicado próximo à sua coxa e o rosto da bela donzela à altura de suas virilhas, uma onda de excitação percorreu-o da cabeça aos pés, intensa a ponto de fazer o coração de sua masculinidade latejar. Deus, a força que tinha de se impor para não deitá-la sobre aquela laje dura e possuí-la até saciar a paixão que...

― Por favor.

A premência na voz dela o trouxe de volta à fria realidade.

Diante de um olhar confuso e assustado e com o coração a lhe martelar o peito, Desmond tratou de retomar as rédeas sobre seus instintos... ainda que sua vontade fosse se comportar como um animal no cio.

― Você é um homem de gestos ligeiros e confiantes. Não estou habituada a lidar com pessoas assim. Tampouco tenho prática nesse... jogo amoroso.

― Jogo?

― Sim, o jogo entre amantes. Não tenho experiência no assunto. E você é bastante rápido.



― Você tem medo de mim? ― Desmond tentava ignorar o ardor da volúpia que se espalhava por suas veias como metal derretido. Se antes pretendia inquiri-la sobre seus aposentos no intuito de descobrir se haveria alguma outra chave em poder da castelã, agora isso não vinha mais ao caso. Aislin que tivesse uma dúzia de chaves, ele pouco se importava.

― Medo? Sim, tenho muito medo quando estou perto de você, mas não pelos motivos que possa estar imaginando ― ela confessou num sussurro, o olhar turvo por uma emoção imperscrutável.

― Verdes ― Desmond anunciou, enlevado.

― Verdes?

― Seus olhos são verdes. Eu não sabia, ou melhor, não tinha certeza, reparei que eram claros, só que não consegui distinguir a cor. Aposto que seus cabelos são da cor do mel cálido.

A donzela se enrijeceu. Não só ergueu-se e foi se colocar em pé junto à outra extremidade do banco, deixando Desmond com um pé de encontro à laje fria e uma desagradável sensação de vazio. Abraçando o próprio corpo com força, ela assim per­maneceu, com o cuidado de não emitir uma palavra sequer.

Sem nem ao menos imaginar o que poderia ter estilhaçado o instante de proximidade que antes compartilhavam, Desmond girou sobre o calcanhar e largou-se sobre o banco de pedra, um pé na laje e o queixo apoiado no joelho. Apanhando uma flor ao alcance de sua mão, tentou fingir que o fato de ela tê-lo largado sozinho ali não ferira sua alma. E quando o silêncio ameaçava tornar-se constrangedor, o luar a refletir-se sobre a superfície metálica do relógio de sol deu-lhe idéia para um comentário que dissimulasse o desconforto que sentia:

― Aquele relógio de sol é bastante incomum.

― É, sim.

― Faz tempo que você está aqui em Sevenoaks?

― Sim, bastante tempo.

― E chegou a conhecer o primeiro lorde castelão da forta­leza? O nome dele era Theron, se não estou enganado.

― Sim, eu o conheci. Era um homem muito bom.

Não era muito, mas cada nova resposta continha mais pala­vras do que a anterior. Desmond não estava disposto a desistir. Era paciente, o combate lhe ensinara a ser capaz de investir tanto tempo quanto fosse necessário no propósito de atingir seus objetivos. Se fosse preciso a noite inteira e mais o dia de amanhã para fazê-la conversar com naturalidade, ele esperaria. Com prazer. Não importava o que ela dissesse, mas sim que falasse. Observá-la lhe despertava um apetite estranho, voraz. Que o céu pontilhado de estrelas aguçava ainda mais.

― Por que não me fala a respeito do finado lorde? ― su­geriu. ― Em Sevenoaks há detalhes únicos de arquitetura e estilos, coisas que eu não via desde que retornei da Cruzada.

― Meu lorde Theron esteve duas vezes na Terra Santa ― ela afirmou mansamente. Era uma mulher que pensava muito e falava pouco, como se cada palavra precisasse ser escolhida com muito cuidado e avaliada mais de uma vez antes de ser proferida.

― Ah, um companheiro de Cruzada? Isso explica um dis­positivo engenhoso como o relógio de sol e a magnífica mobília dos aposentos senhoriais.

― Theron era um guerreiro, mas possuía alma e coração de estudioso. ― De súbito ela se pôs à vontade e, como uma ninfa flanando sobre a água, aproximou-se do relógio para tocá-lo de leve. ― Após regressar à Inglaterra, ele permaneceu vários meses acamado, por pouco seus ferimentos não o mataram. Theron chegou a passar todo um inverno na abadia de Battle, e foi lá que os homens de Deus conseguiram fazê-lo recupe­rar-se. Então veio para Sevenoaks, onde o artesão mouro que havia trazido do Oriente já estava trabalhando, à espera dele. Theron trouxe para sua fortaleza o que de melhor encontrou fora das fronteiras da Inglaterra.

― E também não se descuidou dos sistemas de defesa do castelo ― observou Desmond, encantado com a linha fina que se formava entre as sobrancelhas da donzela sempre que ela fazia uma pausa para pensar.

― Theron dizia que era preciso proteger os tesouros guar­dados sob o teto de Sevenoaks, tanto os que estavam à vista de todos quanto os ocultos.

Com os olhos fixos nos lábios da jovem e uma estranhai sensação que mesclava pesar e ciúme, Desmond perguntou-se| quão bem ela teria conhecido o falecido lorde.

― Theron se orgulhava do projeto e dos confortos que re­produzira aqui. O mouro que trouxe com ele do Oriente era um mestre-artesão e sentia tanta saudade da terra natal que tentou espelhar um pouco dela neste jardim.

― Foi ele quem fez o labirinto, e não Theron?

― Ele dizia que a idéia foi trabalhada entre ambos, mas as plantas e a fonte foram escolhidas pelo mouro. O desenho é especial... único. Este lugar foi concebido para ser desfrutado somente pelo castelão e pela castelã da fortaleza. Um muro falso teve a função de esconder as plantas até que elas atingis­sem altura suficiente para confundir os curiosos.

― Isso explica por que ainda hoje o labirinto permanece em segredo... Os habitantes da fortaleza nunca desconfiaram de nada?

― À época em que passou às mãos de Theron, Sevenoaks era pouco mais do que uma ruína. Os homens que trabalharam na reconstrução vieram de Peavensey e, tão logo concluíram a obra, retornaram ao litoral ou foram prestar serviços em ou­tros lugares. Quando o castelo e o jardim ficaram prontos, o artesão mouro voltou para sua terra natal. Até hoje, conheço uma só pessoa que conseguiu desvendar o enigma do labirinto: você.

― Isso me deixa muito feliz. ― Ao vê-la franzir a testa em sinal de surpresa, Desmond explicou: ― Agrada-me saber que você e eu compartilhamos um segredo.

Aquelas palavras fizeram o coração de Aislin perder o com­passo. Se ousasse, gostaria tanto de compartilhar outros segre­dos com aquele homem encantador que lhe era proibido!

― Você mesma é um enigma, minha dama do labirinto. Nada sei a seu respeito, nem mesmo seu nome. Não acha que já há segredos e mistérios demais em Sevenoaks?

― O que quer dizer com isso?

― Ainda hoje avistei o vulto fugidio de uma mulher de cabelos avermelhados à janela dos meus aposentos, que eu dei­xara trancados. Ouvi dizer que a castelã desta fortaleza tem os cabelos dessa cor, isso é verdade?

― Uma mulher de cabelos avermelhados, foi isso o que disse? ― Aislin engoliu em seco. Seria possível que ele sou­besse da verdade? Estaria a testá-la, a brincar com ela?

― Sim. Eu a vi de relance, mas como não ouvi falar de outra mulher por aqui que tivesse os cabelos daquela cor, não me restou outra hipótese senão presumir que se tratasse de Aislin. O que me pergunto é como foi que ela conseguiu pe­netrar na câmara que me foi destinada.

― Acha que ela se utilizou de algum poder maligno para entrar lá?

― Não, não. ― Desmond não conteve uma risada ante a expressão preocupada com que ela o observava. ― O que eu acho é que Aislin tem uma chave daquele aposento.

― Uma chave? ― Sem saber, Aislin tinha entre as sobran­celhas a linha de que ele tanto gostava.

― Sim, uma chave. Por que será que sempre tem de haver uma nuvem de intriga e superstição a encobrir as coisas mais simples e óbvias da vida? Ou você imagina que Theron morreu sem deixar uma cópia da chave de seus aposentos para a es­posa? Que o lorde iria recusar a chave de seu dormitório à dama sua esposa?

― Essa idéia me soa sensata.

― E é. Aislin tem uma chave. Ela entrou em meus aposentos e Pointisbright, oportunista que é, correu atrás. Só que o danadinho acabou preso lá dentro quando ela saiu em disparada depois que a vi na janela.

― Como foi que chegou a essa conclusão? Como pode não fazer caso do que dizem por aí: que ela faz bruxarias, que é má? ― indagou Aislin com um nó na garganta causado pela sensação de que, ante a fria lógica de Desmond, seus temores pareciam tolos e mesquinhos.

― Bem, pelo menos seria assim que eu me comportaria... Ou melhor, irei me comportar. Quando estiver casado, não vejo por que não dividir segredos com a minha esposa, do mesmo modo como Theron deve ter feito.

― Pretende compartilhar segredos com a mulher que o rei lhe ordenou que desposasse? ― Ela lutava contra as lágrimas que ameaçavam saltar-lhe aos olhos. ― Irá dividir seus segre­dos mais profundos e bem guardados com Aislin?

Desmond se levantou e, aproximando-se da donzela envolta nas dobras do pesado manto, declarou:

― Há um só segredo que não revelarei à minha esposa, dama do labirinto, esse doce e misterioso segredo é você.

Tomou-a entre os braços, e Aislin se deixou levar. No ins­tante seguinte, ele a beijava apaixonadamente.

Como não tivesse dormido mais do que alguns minutos du­rante toda a noite, Desmond nem sabia dizer se era tarde ou cedo mais.

Após se levantar e lavar-se, deixara seus aposentos e por pouco não havia tropeçado em Coy, que continuava a dormir do lado de fora de sua porta como um cão fiel. Agora, os dois amigos encontravam-se sozinhos no salão nobre tomado pela penumbra das horas que antecediam o alvorecer. Em breve o castelo estaria desperto novamente, mas no momento a calma que reinava por ali chegava a ser estranha de tão profunda e silente.

Ao esticar o braço na direção de um naco do pão da véspera e ver que a mão ansiosa de Coy já havia se lançado sobre o alimento, Desmond não se conteve:

― Pela cruz do Cristo, Coy, estou farto disto! Ou você me diz agora mesmo o que há por trás dessa torrente de demonstrações de maus modos e gulodice ou, pela minha barba, vou expulsá-lo de minhas propriedades e de minhas vistas.

A ameaça não era força de expressão. Desmond simples­mente não conseguia mais tolerar aquele comportamento ofen­sivo em nome da amizade. Afinal era o senhor de Sevenoaks, as pessoas tinham de respeitá-lo como tal.

Coy franziu o cenho. Engoliu em seco. Passou a mão pelo rosto. Exalou o ar dos pulmões ruidosamente.

― Peço-lhe que me perdoe, Desmond, mas...

― Não, Coy, não é no seu humilde e sincero pedido de desculpas que estou interessado. Quero que me explique por que vem agindo desse modo grotesco ultimamente, pois caso contrário você terá de deixar Sevenoaks antes que volte a anoitecer.

― Que Deus me ajude, você dificulta a vida de alguém que pretende ser seu leal e verdadeiro amigo.

― O motivo disto tudo, Coy... já.

― Receio que você seja envenenado ― Coy foi direto ao cerne da questão. ― Pronto, aí está... É isso o que há por trás do meu comportamento estouvado.

― Envenenado? Eu? ― Desmond largou-se de volta à ca­deira fazendo força para não rir. Imaginara um sem-número de motivos tolos, mas nenhum tão fantasioso quanto aquele. ― Então você tem provado tudo o que como e tudo o que bebo porque teme que haja uma trama para me levar à morte? E de onde foi tirar essa idéia? Por que imagina que eu possa ser envenenado?

― Pense bem. Os quatro homens que se casaram com Aislin morreram todos na noite de núpcias. Alguém pode ter lhes dado ervas mortíferas. Receio que você seja o próximo, por isso me antecipo e provo tudo o que você possa levar à boca.

Massageando o queixo, Desmond examinou o amigo demo­radamente. A suposição lhe parecia absurda, mesmo assim era evidente que Coy falava a verdade. E acreditava no que dizia.

― Mas se você estiver certo, então não corro perigo algum até a noite de meu casamento.

― Eu não queria que sua vida corresse risco algum, antes ou depois da boda ― Coy assinalou com rispidez. ― Mas é só ver a maneira como você me agradece para me dar conta de que eu não devia ter me preocupado com seu bem-estar.

― Você estava preparado para dar sua vida em troca da minha?

― Gosto de você como gostaria do irmão que não tive. ― Com as faces ligeiramente coradas, Coy esboçou um sorriso tímido.

― Ainda que enterneça meu coração saber que você me tem em tão alta conta, saiba que não há com o que se preocupar. Fique tranqüilo, Coy. Os quatro maridos de Aislin morreram em decorrência dos ferimentos de batalha e da exaustão de seus corpos. O tempo que tinham neste mundo havia chegado ao fim após uma existência longa e temerária, acredito que ne­nhum deles se foi antes da hora. Aliás, ouso dizer que viveram até mais do que a maioria dos homens, uma vez que os quatro haviam passado dos quarenta anos de idade.

― Bem que eu queria, Desmond, mas não consigo me tranqüilizar com tudo o que você disse. Tenho um pressentimento, não sei explicar. ― Coy balançou a cabeça em sinal de desâ­nimo. ― Bem, agora que sabe o que está acontecendo, você tem de deixar que eu continue a provar do que você come e bebe.

― Não, de modo algum. Não há intriga nem complô, Coy. Não serei envenenado, por isso trate de parar com essas tolices. Não quero ser tratado como uma criança indefesa e exijo que deixe de se comportar como uma pajem excessivamente dedi­cada. Não estou correndo nenhum risco. O que temos aqui é uma fortaleza ocupada com as tarefas e os problemas do dia-a-dia. Não há passagens secretas, tesouros fantásticos ou tra­mas sinistras para dar fim ao senhor do castelo.

― Se vier a se tornar lorde de Sevenoaks, ele irá morrer ― declarou Aislin com imenso pesar. ― Aconteceu com meus outros maridos, não haveria de ser diferente desta vez.

― Isso são tolices. Você não pode passar o restante de sua vida trancada aqui no intuito de evitar Vaudry du Luc. ― Giles parecia irado e um pouco trêmulo.

― Se eu me casar com Desmond, ele morrerá! ― Aislin começava a se cansar dos maus bofes do primo. ― Não farei isso.

― Trata-se de uma determinação do rei, à qual você tem de se sujeitar. É preciso que se case e consume essa união o mais breve possível. ― Correndo o dedo pelas pedras da moldura da lareira, o abade examinou furtivamente o ambiente. ― Além do mais, o barão já disse que pretende voltar para a fortaleza de Mereworth após a cerimônia. Ele irá nos deixar... irá deixar você em paz, Aislin.

― Você já tinha comentado isso comigo. ― Por que a promessa de Desmond de partir dali deixava o coração dela tão magoado?

― Não há motivo para que você não faça os votos solenes do matrimônio. ― Giles continuava a passar a mão coberta pela luva sobre as pedras talhadas acima da fornalha. ― Ele não demorará a ir-se embora de Sevenoaks.

― Recuso-me a desposá-lo no propósito de salvar a vida dele.

― Aislin, isso é estupidez. Você não pode ir contra a von­tade do rei.

― Eu poderia oferecer tudo o que tenho e entrar para um convento. Henrique aceitaria a troca, acredito, se eu lhe entre­gasse todas as minhas moedas e mais Sevenoaks. ― Ela sus­pirou profundamente. ― Prefiro trancafiar-me como freira a ver Desmond morrer.

― Você não pode fazer isso. ― O clérigo virou-se para encará-la. ― Não pode abdicar do direito a Sevenoaks.

― Giles, pense. Se eu me internar num convento, não co­locarei em risco a vida de mais ninguém. Desmond Vaudry du Luc receberá outra mulher por esposa, e Sevenoaks ficará sob o controle de Henrique. Você apresentou essa solução ao rei quando esteve na corte, como lhe pedi?

― Caríssima Aislin, Henrique possui uma boa quantidade de fortalezas. Ele não quer Sevenoaks, quer que você despose o barão du Luc. Não lhe resta outra opção, você tem de se casar novamente.

― Isso é o que vamos ver. Se for para poupar a vida de Desmond, estou pronta para continuar trancada neste cômodo até que o rei ponha Sevenoaks abaixo.

― Você não fala como uma mulher que tem tão pouco co­nhecimento sobre os homens. ― Giles sondava o rosto da pri­ma com uma expressão intrigada. ― Fala como se conhecesse o barão bastante bem, a ponto de sentir-se compromissada com ele. Por acaso já se encontrou com Desmond?

Aislin prendeu a respiração. Não podia deixar que seu primo soubesse da passagem secreta e do jardim. Mantivera-se fiel à palavra que empenhara a Theron por todos aqueles anos, não seria agora que iria traí-la.

― Giles, sei que você pede que observem meus atos, e sou muito grata pelos seus cuidados, comigo e com relação à minha segurança e ao meu bem-estar. Mas você está farto de saber que a porta de meus aposentos jamais se abriu para que eu recebesse Desmond du Luc... A menos que tenha dado para acreditar nos boatos que dizem que sou capaz de me transfor­mar numa gralha e voar.

― Não seja boba, Aislin. É claro que não dou ouvidos à tagarelice dessa gente ignorante.

― Então os olhos que trabalham para você certamente lhe disseram que não saí destes aposentos nem fiz qualquer refei­ção no salão nobre desde que ele chegou aqui. E você bem sabe que essa porta que dá para o corredor tem permanecido trancada. ― Aislin encontrara um meio de escamotear a ver­dade, e isso lhe tranqüilizava a consciência.

Giles esfregou o alto da tonsura num gesto de impotente frustração, depois se aproximou da prima; apalpando o cruci­fixo que lhe pendia do pescoço, afirmou:

― Está certo. Você teria de ser a bruxa que as pessoas a acusam de ser para escapar destes aposentos sem se utilizar da porta.

― Por favor, Giles, não diga tais palavras. Nem mesmo por brincadeira. Posso ser amaldiçoada, mas não por conta de al­guma falta que tenha cometido. Você sabe que não creio em coisas como poções, magias e encantamentos.

― Sei, sim, porém trancafiar-se neste aposento não irá aju­dá-la a calar as línguas ferinas dos antigos serviçais de Theron. Quanto menos eles a vêem, mais motivos encontram para temê-la. O povo daqui tece histórias que retratam você como uma verdadeira megera. ― Ele respirou fundo. ― Venha, ceie no lugar que lhe é reservado no salão nobre esta noite e silencie aqueles que falam mal de você antes que esses boatos se infil­trem pelos ouvidos de Desmond. Conhecê-lo e trocar algumas palavras com o barão por certo irá incentivá-la a fazer seus votos matrimoniais. E assim ele retornará a Mereworth.

― Desmond tomou conhecimento dessas histórias maldosas a meu respeito?

― Não sei. O que sei é que quanto mais você protelar esse encontro, mais provável será ele acreditar nos comentários que porventura venha a escutar.

Depois de atravessar a cozinha onde era feito o pão, Des­mond se dirigiu à edificação onde se assavam as carnes, dei­xando atrás de si um rastro de sorrisos e mesuras. Não podia negar que fora recebido ali com muito respeito. Em tão pouco tempo, todos já demonstravam aceitá-lo e passaram a reveren­ciá-lo, mesmo que ainda não tivesse desposado sua castelã.

Pobre Aislin!... Quanto mais pensava na velha senhora, mais se apiedava. Por outro lado, não podia deixar de sentir um grande alívio pelo fato de ela insistir em isolar-se nos aposentos da dama. Pois a ausência dela pelas dependências da fortaleza lhe possibilitava desfrutar da companhia de sua donzela do labirinto sem culpas... ou quase.

Na verdade seu coração se via tomado por sensações con­traditórias. O fidalgo cavalheiresco que havia em seu íntimo sabia que tinha de defender a honra de sua noiva, o admira­dor que se deixara encantar pela dama das estrelas estava mais do que satisfeito por ver-se obrigado a respeitar o luto tardio a que Aislin se entregara. No final das contas, evidentemente, acabaria se casando com a castelã de Sevenoaks, mas por en­quanto iria permitir-se flertar com a bela do jardim de quem ainda não sabia o nome.

― Lorde Desmond, o senhor veio provar um bocadinho da minha comida? ― Uma matrona de dentes salientes e faces rosadas curvou-se para ele em desengonçada mesura.

― Alguma coisa por aqui está deixando um cheiro delicioso no ar. ― Desmond espiou pela cozinha onde se processavam as carnes.

― Ah, só pode ser minha torta, que acabou de ficar pronta. Não gostaria de prová-la?

Antes que ele respondesse, a cozinheira já lhe estendia um pedaço que acabara de cortar. O aroma era tão apetitoso que Desmond não conseguiu resistir.

― Coma à vontade, é a melhor de todo o condado. ― A mulher estufou o peito já naturalmente bastante grande.

― Sua observação é um tanto ousada, permita-me dizer. Agora terei mesmo que experimentar um pedaço, pois preciso me certificar de que não está se vangloriando à toa.

― Pode acreditar em mim, milorde. Ou melhor, veja por si mesmo.

Desmond deu uma mordida no pedaço de torta que tomara da mão dela. O delicioso sabor da carne fresca e tenra tempe­rada por especiarias era de fato inigualável.

― Quer um pouco de cerveja para empurrar? Não guarda­mos cerveja amarga na cozinha das carnes, mas naquele tonel junto à porta há uma cerveja escura que dá muita energia e disposição.

― Vem bem a calhar num dia quente como hoje.

Enquanto ele continuava a degustar o saboroso pastelão, a cozinheira acenou para um rapazinho com uma grave defor­midade física, que só conseguia se locomover com o auxílio de duas muletas feitas de madeira rústica. Uma de suas pernas, terrivelmente deformada, não alcançava o chão; estava dobrada e presa por cima do outro joelho.

Sem demora o rapaz tomou de uma concha e encheu uma caneca com um líquido escuro e espumoso, para então entre­gá-la a seu lorde com um arremedo de mesura e um sorriso largo.

― E quem é você, bom rapaz? ― indagou Desmond, apa­nhando a caneca da mão dele.

― Sou Tom, milorde. ― O rapazinho inclinou a cabeça.

Desmond tomou da bebida fermentada e passou a língua pelos lábios. Com mais duas mordidas, deu cabo da espessa fatia de pastelão de carne.

― O que me diz? ― a cozinheira perguntou.

― Você não estava se vangloriando. ― Desmond lambia os dedos. ― Sua torta é de fato a melhor que há no condado. Nunca provei nada igual.

― Já que gostou tanto, o senhor pode vir aqui todos os dias neste horário e encontrará uma de minhas tortas à sua espera. ― Levando a ponta do dedo ao queixo, ela deu uma piscadela. ― Mas não conte a ninguém, ou a ira de todo o castelo cairá sobre minha cabeça. Meus pastelões de carne são um regalo que muitos cobiçam e poucos recebem.

― Será nosso segredo. ― Desmond riu. ― Mas agora me diga: onde encontro as moças encarregadas da ordenha a esta hora do dia?

― O senhor não parece um homem que mergulha o pão no leite... ― Ela o olhava de esguelha, torcendo o nariz.

Desmond deu uma risadinha, explicando:

― Acontece que tenho uma dívida que só pode ser paga em leite. Bem fresco e bem cremoso.

― Nesse caso nosso jovem Tom irá lhe mostrar o caminho até as moças que cuidam da ordenha. Mas não se esqueça: ninguém pode saber do acordo que acabamos de fazer aqui.

Desmond esperou que o rapazote deixasse a cozinha e fosse esperá-lo no caminho de trás recoberto de seixos para pedir num sussurro:

― Por favor, conte-me como foi que esse jovenzinho ficou naquele estado.

― Uma carroça enorme e muito pesada passou por cima dos joelhos dele. ― A cozinheira sacudiu a cabeça num gesto pesaroso. ― Tom esteve às portas da morte e foi salvo por um dos monges curandeiros na abadia de Battle... Se é que se pode falar que alguém que ficou como ele foi salvo. Pobre Tom. ― Tornando a menear a cabeça, a mulher esfregou os olhos úmidos e foi regar um grande pedaço de javali com o molho de temperos.

Desmond deixou a área das cozinhas cuidando de caminhar bem devagar para que Tom pudesse acompanhá-lo no seu rit­mo. Fosse quem fosse, o monge que salvara a vida do rapaz devia ser um mestre na arte de curar.

Aislin fez seus bordados, penteou os cabelos, mordiscou um pouco da comida deixada à sua porta, porém seu coração só começou a bater de verdade quando a lua deu sinais de des­pontar no céu.

― Sou mesmo uma tola. Por que me torturo pensando sem parar num homem que jamais poderei ter?

Sem se deixar impressionar pelos assuntos humanos que afligiam sua enamorada dona, Pointisbright bocejou e depois continuou a lamber seus pêlos sedosos.

― Talvez fosse melhor eu enfrentar Giles e ir-me embora de Sevenoaks. Se me dirigisse a um convento e implorasse para ser admitida lá, certamente Henrique acabaria por aceitar minha decisão.

Erguendo-se, ela foi pé ante pé até uma das janelas. Agora, depois que Desmond a avistara de relance à janela dos aposen­tos do castelão, nem mais podia se dar ao prazer de ficar es­piando pela vidraça. O sol já havia submergido por trás da muralha guarnecida de ameias. Que os santos a ajudassem, pois a hora chegara.

Com dedos trêmulos, Aislin trançou os cabelos e os escondeu à nuca, depois se cobriu com o pesado manto da cor do chumbo. Quando estava prestes a deixar seus aposentos pelo painel deslizante que ocultava a passagem secreta, fortes bati­das à porta que dava para o corredor fizeram-na imobilizar-se já com a mão sobre a argola de ferro.

― Aislin, sou eu, Giles. Preciso falar com você.

Ela mordeu o lábio. Se o deixasse entrar, seu primo iria querer saber por que estava vestida como se fosse passear. Mas se não respondesse, ele a sufocaria de perguntas e reprimendas no dia seguinte.

― Estou me preparando para deitar, Giles. Sinto-me exausta.

― Ainda é cedo. Você tem de me receber, Aislin. O que houve? Abra a porta.

Ela se afligiu. Seu primo parecia zangado.

― Se o que tem a me comunicar não pode esperar até ama­nhã, diga agora. Estou ouvindo, Giles.

― Não faz sentido conversarmos através de uma porta cer­rada. Nem há por que você não permitir que eu, seu primo e confessor, entre em seus aposentos.

― Giles, já me encontro em roupas de dormir. Não seria adequado que um clérigo me visse nestes trajes. Conversare­mos amanhã cedo.

― Não, não será possível. Fui chamado a Tunbridge Wells. Devo partir sem demora.

― Aconteceu alguma coisa na abadia? ― Aproximando-se da porta, Aislin colocou a palma da mão de encontro à madeira polida. ― Algum problema?

― Problema? Não. Simon, o jovem, e Eleanor estão em Tunbridge. A dama pediu que eu fosse assisti-la. Parece que ela está com alguma fraqueza no estômago.

― E o que a irmã mimada do rei Henrique pede homem algum pode negar?

― Não estou em condições de ignorar um chamado de Elea­nor, Aislin. Embora o marido dela não seja do agrado de nosso monarca, Henrique adora a irmã e não veria com bons olhos o fato de eu me recusar a socorrê-la num momento como este.

― Também eu não gosto muito de Simon de Montfort, a quem considero quase um déspota. ― Aislin tinha falado sem pensar. Theron certa vez assinalara que a família de Montfort tinha um temperamento belicoso e ameaçador, recomendando-lhe manter distância de todos aqueles que portavam tal nome.

― Como membro da Igreja, não posso me pronunciar a esse respeito nem fazer qualquer tipo de julgamento, Aislin, por mais que isso lhe agradasse. Sou um homem de Deus. Estou comprometido com a cura e o bem-estar. Terei de cavalgar a noite inteira para atender ao chamado que me fizeram, mas... Estou preocupado com você. Não gostaria de me fazer uma promessa antes que eu me vá?

― E o que você gostaria que eu lhe prometesse, meu bom primo?

― Quero que me dê sua palavra de que não irá se apresentar a Desmond até que eu regresse.

― Ainda esta manhã você insistia para que eu deixasse meus aposentos e fosse ao encontro do barão no salão nobre para compartilhar da travessa e do vinho dele. Era você quem estava ansioso por que eu me encontrasse com Desmond.

― Mudei de idéia. Você não pode contrariar a vontade do rei, isso é certo, porém não me parece aconselhável que venha a conhecer seu noivo sem que eu esteja por perto. Prometa-me, Aislin. Dê-me sua palavra solene de que se manterá em segu­rança atrás desta porta.

― Não há por que você se preocupar comigo dessa maneira.

― Expresse sua promessa solene. Não posso deixar Sevenoaks sem ela.

― Pois bem, dou-lhe minha palavra. Lady Aislin de Sevenoaks não irá ao encontro de seu noivo, Desmond Vaudry du Luc, antes que você retorne da abadia de Battle.

Retrocedendo um passo, Desmond voltou para as sombras que dominavam o corredor e encolheu-se junto à tapeçaria. Encontrava-se a caminho de seus aposentos quando ouvira a voz de Giles. Não que fosse de seu feitio pôr-se a escutar con­versas alheias, mas a insistência do clérigo para que Aislin lhe abrisse a porta o deixara incomodado. Por sorte encontrara um lugar escuro de onde ouvir aquele intrigante diálogo. Embora a porta espessa abafasse e distorcesse a voz da castelã, enten­dera bastante bem tudo o que ela havia dito.

Começo a pensar que o abade esteja interessado demais no bem-estar da prima idosa. No dia seguinte ele iria conversar com Coy a respeito do clérigo, agora, porém, os encantos do labirinto o atraíam com uma força à qual simplesmente não conseguia resistir.

Desmond deteve-se diante do arbusto alto que assinalava o início do labirinto. Aquilo era mesmo uma obra-prima da engenhosidade humana: à vista de todos e mesmo assim enganava a visão de um modo tão perfeito que ninguém jamais se inte­ressara em ir averiguar do que se tratava.

Ao descer os olhos à tigela de madeira que tinha na mão, repleta de espesso leite adoçado com duas gotas de vinho do Porto, riu consigo. Aposto que as moças encarregadas da or­denha me tomam por um tolo fraco das idéias. Não fazia mal. O importante era que o plano desse certo.

Abaixando-se, depositou a tigela cuidadosamente sobre o solo argiloso. Pointisbright provavelmente estava por ali, ca­çando à claridade do luar.

― Aquele bichano arguto está sempre por perto quando mais preciso dele. Queira Deus que seja assim esta noite também.

Então ergueu o olhar ao céu. Era uma noite típica do verão inglês, daquelas que os poetas cantavam, rara de acontecer. O aroma das flores das macieiras e das pereiras perfumava o ar, dando a impressão de deixá-lo mais denso. Uma noite como aquela tinha de ser dedicada aos amantes.

Embora não tivesse sido bom aluno, Desmond identificou algumas constelações. Ocorreu-lhe que deveria saber reconhe­cer um bom punhado delas, já que tinha por hábito observar o firmamento sempre que possível. No entanto, passara a juven­tude preparando-se para ser um cavaleiro, não um marinheiro, de modo que dera pouco ou nenhuma importância ao estudo do céu. Uma pena.

Um ruge-ruge de folhagem levou-o a baixar novamente o olhar ao chão. Assim que apertou as pálpebras no intuito de aguçar a visão à penumbra à sua volta, deparou com um par de olhos amendoados. No instante seguinte, um miado rompia o silêncio.

― Ah, Pointisbright, meu leal camarada. Venha ver que cumpri minha palavra: aqui está sua paga pelos serviços pres­tados ao seu lorde.

O gato se aproximou de mansinho para enfiar o focinho no leite com extrema delicadeza. Depois de prová-lo, pôs-se a lamber os bigodes.

― Ora, bom amigo, não banque o bichano caprichoso. Tome seu leite e depois seja meu guia.

Pointisbright hesitou, como a avaliar se a oferta lhe convi­nha. Então, após piscar os olhos para a criatura humana à sua frente, resolveu-se por aceitar o mimo.

Braços cruzados, Desmond ficou à espera de que o manhoso bichano se satisfizesse... e perguntando-se se Pointisbright, uma vez saciado, seguiria para o coração do labirinto ou sim­plesmente sairia à procura de um camundongo gordo com que finalizar a ceia. Se o gato não o ajudasse, seria capaz de chegar lá por si mesmo? Tinha a impressão de que havia memorizado o caminho, porém seguir o bichano seria muito mais prático. E bem mais rápido.

Ao terminar seu leite, Pointisbright olhou para cima e miou. Como se disposto a cumprir sua parte no acordo, passou pela tigela vazia e seguiu pelo corredor à frente de ambos. Rápido como um caçador no rastro de sua presa, Desmond partiu atrás do bichinho evitando pensar que se sentia um pouco tolo. Devia estar parecendo um jovenzinho ante seu primeiro encontro.

Ao emergir no centro do labirinto ele tinha o coração des­compassado de tanta ansiedade. E mais ansioso ainda ficou ao vê-la ali, em pé sob um prateado feixe de luar. Ainda que o enorme manto lhe ocultasse as formas do corpo, Desmond tinha a sensação de que, por algum motivo inexplicável, já conhecia o corpo dela, suas curvas delicadas, seus contornos núbeis... Que o diabo o carregasse, e não era que já estava excitado?

― Vim vê-la novamente. ― Acercando-se, curvou-se e de­pois se apoiou sobre um joelho diante de sua dama do labirinto. ― Receio ter perdido meu juízo por sua causa. Sou como um homem possuído, não tenho vontade nem intenção de estar em algum outro lugar que não seja este jardim, junto de você.

O coração de Aislin diminuiu de tamanho no instante em que Desmond prostrara-se diante dela. Ele a presenteava com palavras tão doces e belas... o que a fez sentir-se morrer um pouco. Aquilo era tudo o que qualquer dama queria ouvir dos lábios de um cavaleiro galante, mas para ela significava tristeza e pesar infinitos. Sua alma se partia ao meio de tanta dor. Não podia se casar com aquele homem que lhe dizia palavras de amor e a beijava até deixá-la tonta. Simplesmente não podia.

Experimentou a ameaça das lágrimas. Precisava se afastar de Desmond antes que as forças lhe faltassem e acabasse su­cumbindo aos encantos dele.

Sou mortal como um veneno para você.

Rápida como um dardo, Aislin deixou o jardim antes que ele tivesse tempo para pôr-se em pé, desaparecendo por entre as folhagens banhadas de escuridão.

Desmond ainda tentou ir atrás dela, porém tudo o que con­seguiu alcançar foi um estalido de passos apressados pelo ca­minho de cascalhos, um ciciar de folhas e... mais nada. Detendo-se, ele apurou os ouvidos. Nenhum ruído. Nenhum agitar de folhas. Nem mesmo resquícios do perfume dela. Aturdido, virou-se para o coração do labirinto. Sua donzela parecia ter-se esvanecido no ar. Mas... como? Nenhuma mulher tinha como atravessar paredes de plantas ou de pedras.

Confuso, castigado pelo desejo e pela frustração, Desmond deixou escapar um suspiro. Então comentou consigo mesmo:

― Este jardim deve ser tocado pela magia... Se não for, minha donzela certamente o é. Mas hei de descobrir a identi­dade dela e para onde ela vai nem que precise pôr abaixo, uma a uma, todas as pedras de que Sevenoaks é feita.

Desmond passou dois dias treinando seus homens e a guarda de Sevenoaks até o suor lhe brotar por todos os poros do corpo. E apesar de ter o braço com que empunhava a espada latejando dos esforços de aparar golpes e os músculos do corpo inteiro fatigados, sentia-se inquieto e irritadiço, sem o menor sinal de cansaço.

― Já faz quase quatro horas que estamos com estas armas nas mãos sem um único período de descanso ― disse Coy, ofegante. ― Por acaso estamos nos preparando para uma in­vasão de pagãos?

― Ainda não estou pronto para parar ― Desmond retrucou num resmungo, antes de partir um alvo de madeira ao meio com a espada.

Reconhecer que aquela falta de moderação fosse produto do desejo represado não era suficiente para aquietá-lo. O estado de ânimo em que se encontrava era fácil de identificar, porém complicado de se resolver. Estava obrigado a desposar uma mulher e encantado por uma outra. Seus sonhos de vir a ter uma esposa jovem e respeitosa poderiam se concretizar na pessoa da donzela do labirinto, porém sua sina estava nas mãos da idosa Aislin.

Era um tolo por ver-se em tamanha aflição. Um homem devia simplesmente aceitar seu destino, a parte que lhe cabia na vida, e pronto. Mas por que...

O destacamento de homens que chegava ao pátio do castelo deu fim às divagações dele: o abade de Tunbridge Wells lide­rava uma pequena comitiva na qual se incluía Hadwaine, juiz supremo do condado de Kent, com o brasão do cargo em seu uniforme, como Mereworth ficasse sob a jurisdição dele, Des­mond o conhecera por ocasião da morte de seus pais. Atrás do juiz vinha um casal de nobres, envolto em jóias e sedas de excelente qualidade. O rosto da dama era familiar, visto que ela herdara as notáveis feições dos Plantageneta.

Desmond se encaminhava para os recém-chegados para dar as boas-vindas à irmã do rei Henrique quando um ruído estre­pitoso o fez virar-se. Um dos jovens cavaleiros a quem estivera treinando jazia no chão, braços e pernas formando uma massa confusa com os membros do garanhão a que antes montava.

― Ele está preso nos arreios! ― gritou Coy, apavorado.

A pressa com que Desmond partiu para junto do rapaz era também insuflada pela culpa que sentia pelo seu egoísmo.

― Pela cruz do Cristo, ele está morto? ― Coy estava sem cor.

― Se estiver, a culpa é minha ― Desmond admitiu. ― Se não tivesse me abandonado à raiva que sinto do mundo, eu teria dado ouvidos aos seus apelos para que fizéssemos uma pausa nos exercícios. Se esse bom cavaleiro morrer e essa excelente montaria ficar aleijada, a causa de tamanha desgraça pairará sobre minha cabeça.

Com o pedaço de uma lança ainda enterrado em sua claví­cula, o cavaleiro gemia e se retorcia de dor. O cavalo já havia se erguido e parecia ileso.

― Precisamos de ervas curativas ― disse Desmond, ajoe­lhando-se ao lado do rapaz.

― E o chalé arrendado que fica no vale perto daqui? Vai ver a pessoa que mora lá já regressou ― lembrou Coy. ― Mas mesmo que consigamos as ervas, quem saberá utilizá-las?

― Eu sei ― afirmou o abade de Tunbridge Wells que, junto de seu séquito, aproximara-se do ferido.

― Você tem conhecimentos da arte de curar? ― indagou Desmond.

― Passei muitos anos na abadia de Battle cuidando dos feridos que chegavam da Cruzada. Mesmo incorrendo no pe­cado do orgulho, posso dizer que foram poucos os homens que perdi para a morte.

― Outro dia nos deparamos com um chalé repleto de me­dicamentos aqui nas imediações. Posso ir até lá buscar o que for necessário ― Coy ofereceu-se.

― Não carece. Tudo de que irei precisar cresce dentro dos muros de Sevenoaks ― disse Giles.

― Faça o que estiver ao seu alcance, bom abade. Se salvar a vida desse homem, terá minha eterna gratidão ― prometeu Desmond. ― Peça-me o que quiser e cuidarei para que seja atendido.

― Como eu haveria de recusar uma oferta como a sua? ― Após apanhar uma bolsa dentro do bornal preso à sela de sua montaria, o clérigo se pôs a distribuir ordens com a autoridade de um general em combate.

Providenciou-se uma padiola e, sob o comando de Giles, o jovem cavaleiro foi levado para o interior do castelo.

― Tomara que o religioso seja tão bom quanto alardeia. ― O rosto moreno de Coy denotava grande preocupação.

― Que Deus o ouça ― murmurou Desmond. ― Se o rapaz morrer será tão-somente por conta do meu desejo por uma mulher que não posso ter.

― Que mulher?

― Uma mulher de modos estranhos que não existe à luz do dia. ― O tom dele era tão sombrio quanto a sensação de culpa que o tomava.



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