A dama Do Labirinto



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Capítulo V

Enquanto o abade despia o hábito e as delicadas luvas, o cavaleiro acidentado foi acomodado sobre uma das enor­mes mesas do salão nobre. Desmond ficou um tanto surpreso ao ver que, sob as vestes sagradas, o clérigo usava uma túnica simples e calças justas da cintura à ponta dos pés, protegidas por fino colete de malha metálica. Sem seus trajes costumeiros, o primo de Aislin parecia mais um mero guerreiro do que um nobre homem de Deus.

― Digam à cozinheira que traga toda a água fervente que puder e uma grande quantidade de panos limpos ― ordenou ele por cima do ombro. ― E mandem alguém ao canteiro de ervas junto à capela. Quero mil-folhas, capim de febre, alecrim e teias de aranha.

― Pelo menos ele parece saber a diferença entre um trapo sujo e uma atadura decente ― Coy disse ao ouvido de Des­mond. ― Desde as Cruzadas não vejo tanto cuidado com a higiene.

― Ele trabalha de maneira semelhante aos homens que se dedicam às artes curativas em Acre ― observou Desmond. ― E dá mostras de saber exatamente onde procurar os remédios adequados dentro dos limites da fortaleza.

Com mãos firmes, Giles tateou a ponta da lança partida que se encravara junto ao ombro do cavaleiro para em seguida ins­truir num tom autoritário:

― Livrem-no dos trajes que ele está vestindo. E tratem de ser rápidos. É preciso estancar o derramamento de sangue para que ele não morra.

Vários guardas aplicaram sua destreza com punhais e a força de seus músculos para cortar e arrancar as vestes e a proteção acolchoada que o rapaz usava, deixando-o de ceroulas. O es­carlate do sangue que lhe manchava o corpo pálido começou a gotejar por entre os caniços de junco da padiola em cima da longa mesa.

― Onde está a água fervente? ― trovejou Giles.

Como se evocadas por alguma força implícita na voz ríspi­da do abade, jarras de água quente apareceram como que por encanto.

― E as ervas? Onde estão as ervas? E o pilão? Apressem-se. Chega de perder tempo.

Os ecos dos gemidos do cavaleiro acidentado ecoaram pelas vigas do salão quando a ponta da lança desprendeu-se de sua carne. Giles parecia alheio ao sofrimento do rapaz: concentran­do sua atenção no machucado empapado de sangue, ignorou a forma como o moço se agitava e banhou demoradamente o ferimento aberto. Depois, com movimentos ligeiros, fez uma pasta espessa com as ervas e as teias de aranha para enfiá-la no orifício ensangüentado. Por sorte, no momento em que ele tateava o ferimento o cavaleiro perdeu os sentidos. Com o sangue a lhe escorrer das mãos, Giles gritou novas ordens antes de prosseguir com seu trabalho.

No devido tempo o mocinho estava envolto em ataduras de linho, e por entre seus lábios entreabertos foi derramada uma boa dose de hidromel misturado a ervas e leite. Apesar de ele ter o rosto lívido, seu peito se movia no ritmo cadenciado de uma respiração serena.

― A cor das gengivas dele atesta que o sangramento não foi mortal ― Giles informou aos que se achavam ali enquanto enxugava as mãos numa tira de pano. ― Ele viverá, eu o salvei. Agora é preciso colocá-lo num lugar onde ele possa ser obser­vado. Não pode haver correnteza, mas o ar tem de ser fresco, não-estagnado.

― Há um cômodo pequeno junto às cozinhas que pode ser­vir a esse propósito ― ofereceu Tom, usando das muletas para de destacar dos homens reunidos no salão.

Giles olhou para o jovenzinho e franziu o cenho. Desmond já se preparava para dizer que levassem o ferido aos seus apo­sentos, mas então o abade meneou a cabeça num gesto de anuência, declarando:

― Certamente. Os fornos irão mantê-lo aquecido e, se a porta e as janelas permanecerem abertas, ele ficará bem. Pro­videnciem para que ele seja acomodado lá. Cuidado com os movimentos, ergam-no com delicadeza, sem balançar demais. Ao cair da noite levarei uma poção que irá ajudá-lo a dormir. ― Giles sorriu para Desmond. ― Há anos eu não fazia isso. É bom saber que meus conhecimentos ainda são de alguma valia.

― Você os colocou em prática nas Cruzadas? ― Desmond indagou.

― Não, nessa época eu estava na abadia de Battle. Muitos cavaleiros que regressavam dos confrontos e também os mo­radores das redondezas precisavam das minhas habilidades.

― Ah, então você deve ter conhecido Tom, o rapaz de mu­letas, por lá. ― Desmond apontou o jovenzinho atrás dos guar­das que transportavam o cavaleiro ferido.

― Não, não sei de quem se trata ― retrucou o clérigo, sem nem ao menos olhar para o rapaz.

Desmond admirou-se de o abade declarar com tanta convic­ção que não conhecia Tom. Ou talvez o conhecesse e mesmo assim dizia que não. Mas por que Giles mentiria?

― Agradeço a Deus por você se achar por aqui, abade. Foi sorte seu compromisso em Tunbridge Wells não tê-lo segurado lá por mais tempo.

― Ah, no calor dos acontecimentos acabei por esquecer o motivo que me trouxe de volta a Sevenoaks antes do previsto. Simon de Montfort pediu-me que o trouxesse aqui para que ele conhecesse o novo lorde de Sevenoaks.

― O conde de Leicester? Casado com a irmã do monarca? ― perguntou Desmond, embora já soubesse a resposta.

― Sim, o próprio. Ele gostaria de cear com você e desfrutar de sua hospitalidade por um curto período de tempo, já que em breve partirá para Oxford.

Desmond cerrou os punhos. Só lhe faltava ter de hospedar Montfort, o fazedor de intrigas. Boatos trazidos pelos ventos davam conta de que um conselho de influentes barões pretendia adotar medidas para limitar os poderes do rei. Dizia-se nos corredores sombrios que tais nobres tencionavam seduzir o monarca com uma vultosa arca de recursos de guerra para apoiar as pretensões do príncipe Eduardo à Coroa da Sicília. O auxílio pecuniário seria uma forma de obrigar Henrique a assinar o documento que restringia seus atos.

Desmond não tinha a menor disposição para meter-se na­quela disputa. Pois mesmo que Henrique cedesse, mais cedo ou mais tarde, Eduardo acabaria por ascender ao trono inglês. E todos sabiam que o príncipe era dono de uma memória in­vejável.

― Você esquece, Giles, que ainda não sou senhor de Sevenoaks. Ainda não desposei lady Aislin.

― Então talvez seja chegado o momento de realizarmos o casamento. E quem melhor do que o juiz supremo do condado de Kent e a irmã do rei e seu marido para testemunhar essa celebração?

Desmond sentiu-se dividido entre dois anseios inconciliá­veis: queria o poder que as núpcias com Aislin lhe traria, mas também queria liberdade para ir ao encalço de sua misteriosa donzela. Sem perceber, correu o dedo ao redor do decote da túnica que usava. De repente aquela gola lhe parecia insupor­tavelmente apertada.

Engolindo em seco, Aislin encostou-se à parede de pedras para não cair. Que coisa horrível fora assistir à queda do ca­valeiro e sua montaria!... E os gritos desesperados do pobre rapaz?... Deus, que cena pavorosa. Ainda bem que Giles, o admirável Giles, com sua fé e seu dom para a cura, estivesse por perto. O orgulho lhe arrancara um suspiro quando seu pri­mo tomara para si a incumbência de ajudar o rapaz ferido.

― Quantas vezes Theron não me falou que devia a vida à perícia dos monges da abadia de Battle? Acho que deve ter sido o próprio Giles quem salvou a vida dele.

Mas o orgulho que ela sentia do primo vinha maculado por uma pontinha de inveja. Pois daria tudo, tudo o que possuía, em troca da sabedoria e do poder de salvar alguém, um homem em particular. Daria a própria alma, se preciso fosse, para ter Desmond Vaudry du Luc e preservar a vida dele.

Ela havia se afastado da janela ao ver que o rapaz machu­cado era levado do pátio, e não demorara a escutar o burburinho que tomava conta das dependências do castelo. Enquanto os criados corriam de um lado para outro, frases soltas do que diziam chegavam aos aposentos da castelã.

Encostando a testa à porta de madeira, ela fechou os olhos. De nada adiantaria torcer ou rezar para que pudesse reunir-se à vida que corria do lado de fora de seus aposentos. O destino a amaldiçoara, estava condenada a ser sozinha.

A refeição noturna transcorria num ambiente alegre e baru­lhento. Além da satisfação de ter por convidados de honra o nobre Montfort e sua ilustre esposa, os criados pareciam exaltar a vida que fora poupada de uma fatalidade nos limites internos da fortaleza. Por outro lado, a cadeira dourada ao lado de Des­mond continuava vazia, o que lhe provocava certa melancolia, afinal aqueles eram o castelo e a gente de Aislin. Embora ti­vesse assumido o manto e o papel de senhor de Sevenoaks, era ainda um lorde sem sua dama, uma figura meramente repre­sentativa até que o casamento fosse celebrado.

Incomodava-o o fato de Aislin nunca tomar parte na alegria de seu próprio domínio. Ela devia estar ali para rir e receber os elogios pelos pendores do primo, pelos pratos saborosos e excelente vinho servidos à ceia. Por que a legítima castelã não tomava seu lugar à principal mesa do salão? Certamente o pe­ríodo de luto já devia ter se encerrado. Ou haveria algum outro motivo que a impedisse de fazê-lo?

Apesar de Gwillem e Coy jurarem que aquela mulher era um problema para a fortaleza, ele ainda não ouvira uma só palavra dando conta de que Aislin tivesse empregado castigos ou algum tipo de crueldade contra seus criados. A história toda mais se assemelhava a uma fábula envolta em fumaça. Mas se tudo realmente não passava de boatos, quem entre os habitantes do castelo odiaria tanto sua senhora a ponto de tentar destruir a reputação dela?

― Ouvi dizer que você não ficou muito satisfeito com a noiva que o rei lhe designou. ― Simon de Montfort inclinara-se às costas da esposa para espetar Desmond com um olhar ma­licioso.

― Ainda não tive oportunidade de conhecê-la, portanto não posso dizer se ela me agrada ou não ― respondeu Desmond com rispidez.

― Você ainda não pôs os olhos na dama? ― Montfort não dissimulou a surpresa. ― Por acaso ela anda se escondendo de você?

― Minha prima está de luto pelo passamento do último marido ― interpôs Giles.

― Mas você pretende acatar a ordem de meu irmão, o mo­narca? ― indagou lady Eleanor. ― Esta demora no primeiro encontro não é nenhum acordo entre você e Aislin para con­trariar a vontade de Henrique, é?

― Antes de qualquer coisa, minha dama, sou leal à Coroa. ― Desmond brincava com sua taça. ― Posso lhe garantir que ainda não conversei com lady Aislin.

Eleanor endereçou um olhar satisfeito ao marido, depois se serviu da travessa de carne à sua frente enquanto comentava:

― Você mal tocou na comida, barão du Luc. O que muito me admira, tendo em vista a fartura de alimentos dispostos ao longo da mesa.

Dando-se conta de estava sendo observado, Desmond res­pondeu com um galanteio cortês que aprendera com a mãe adotiva, Alys du Luc:

― Quando alguém tão bela como você está por perto, os demais apetites desaparecem. ― Na verdade estava sem muita fome porque a cozinheira lhe dera dois pastelões de carne de­pois que ele fora ver como o cavaleiro ferido estava passando.

― Você precisa se alimentar bem, barão, para evitar adoen­tar-se ― aconselhou o abade. ― Eu não gostaria de ver mais um marido de Aislin sucumbir a alguma enfermidade.

Hadwaine, o juiz supremo do condado, tossiu às costas da mão antes de anunciar:

― Se mais um esposo de Aislin vier a faltar, o rei me or­denou que instaurasse um inquérito para averiguar o caso.

― Eu não estava sabendo disso ― observou Giles, estrei­tando os olhos. ― Que espécie de inquérito seria esse?

― Terei de sujeitar a fortaleza e todos os que moram em seus arredores a um detalhado e abrangente interrogatório ― Hadwaine o informou.

A palavra "interrogatório" ficou pairando pelo ar como uma ameaça. Muitos ali presentes sabiam que alguns dos métodos de arrancar a verdade de um indiciado chegavam aos limites da tortura.

― Ah, mas o barão du Luc me parece forte e sadio. Não creio que corra nenhum perigo de vida ― disse Simon de Montfort.

― Mas também ele ainda não se casou com a dama ― brincou Eleanor. ― A história tem nos mostrado que todos os homens que a desposam se mantêm saudáveis até que a união se consume.

― Duvido de que o que houve com qualquer um deles tenha relação com o que se passou com os demais ― Desmond re­bateu de pronto.

― É mesmo? ― Montfort tinha as sobrancelhas erguidas em descarada expressão de admiração. ― Quer dizer então que você não acredita nos rumores dos quais Giles nos falou?

Desmond teve a impressão de que Giles empalidecera um pouco. E ao ver que o clérigo permanecia calado, cuidou ele mesmo de defender sua noiva:

― Aislin casou-se com nobres idosos, que traziam no corpo as marcas de batalhas pregressas. Creio não ser mais do que coincidência o fato de que os quatro morreram na noite de núpcias.

― Então realmente não vê motivos para Aislin ser chamada de Flor Venenosa? ― quis saber Eleanor.

― Não. Acredito que ela seja vítima de uma triste brinca­deira do destino. E se não se importa, minha dama, eu preferiria que você não se referisse à minha noiva nesses termos. ― Sem se incomodar com a possibilidade de incorrer na ira do monar­ca, Desmond fazia questão de deixar bem claro que não iria admitir que falassem mal de Aislin, principalmente quando ela não estivesse presente para se defender.

― Como quiser. É bom ver que a dama de Sevenoaks tem seu defensor. ― Antes de baixar a cabeça, Eleanor dirigiu ao marido um olhar de misterioso significado.

Farto das provocações, Desmond procurava um bom pre­texto para deixar o salão quando viu Coy.

― Meu homem de confiança está de volta ― ele anunciou. ― Se me dão licença, tenho assuntos urgentes de que tratar.

Antes que alguém pudesse esboçar alguma objeção, Des­mond já havia se levantado e se encaminhado em direção ao amigo. Era uma verdadeira bênção ver-se livre da companhia do casal de víboras reais.

O alívio, porém, não durou muito: ao se aproximar de Coy, ele reparou que o companheiro parecia bastante preocupado.

― Precisamos conversar, Desmond.

― O que houve?

― Há um plano em andamento para alinhar os barões no­vamente. Dizem que a fortaleza de Sevenoaks foi escolhida para o local da reunião em que eles irão redigir o documento que será apresentado ao parlamento e ao rei... E que o jovem Simon é o líder do movimento.

― Não admitirei! ― Desmond bateu com o punho cerrado na palma da outra mão. ― Não quero Sevenoaks e Mereworth arrastadas para intrigas políticas que nunca têm fim nem en­volvidas em fastidiosos complôs que visam a enfraquecer o rei e diminuir seu poder.

― Por outro lado, não há quase nada que você possa fazer para detê-los, uma vez que não terá poder efetivo antes de se casar. Talvez seja melhor você ir para a corte, Desmond, e pedir uma audiência com o monarca. ― Coy tinha o cenho carregado.

― E dizer o que a Henrique? Que o cunhado dele é uma serpente? Que há barões que nunca se contentam e querem sempre mais? Ora, isso ele já sabe. ― Desmond meneou a cabeça em sinal de desânimo. ― William Briware já havia alertado o rei John, o Coração-de-Leão, e depois advertiu tam­bém Henrique. Briware plantou ouvidos atentos em todos os cantos do salão de cada barão. Não há sombra de dúvida de que Henrique esteja a par do que anda se passando. Não, meu dever é ficar e defender Sevenoaks.

― E Aislin?

― E Aislin também, obviamente ― confirmou Desmond, antes que um leve movimento lhe atraísse a atenção. ― Não é preciso que se esconda entre as sombras, abade. Por favor, junte-se a nós.

O abade de Tunbridge Wells deixou a grande fenda no muro junto ao poço do castelo já tentando explicar sua presença ali:

― Meu lorde, eu procurava um lugar calmo e isolado onde pudesse rezar e contemplar.

― E conseguiu encontrar? ― Olhando fundo nos olhos dele, Desmond viu o brilho do engodo.

Como a maioria dos homens, eu também luto contra a minha consciência ― afirmou Giles. ― O mesmo se dá com você, barão? Também se vê hesitar entre o que é certo e o que esperam de você como um nobre cavaleiro da Inglaterra?

― Estou contente por dar a Henrique meus quarenta dias de trabalho a cada ano.

― Ah, e quanto a outras questões...? Quanto à exigência do rei para que você se case?

― Estou ansioso tanto por cumprir as determinações do mo­narca quanto por me estabelecer como senhor de Sevenoaks. Não tenho por que lutar contra minha consciência, ela e eu estamos em paz um com o outro.

― E quanto a Simon...

Desmond começava a perder a paciência com os rodeios de Giles acerca do conde e suas intrigas:

― Mesmo que eu ainda não seja o lorde desta fortaleza, espero que todos aqueles que vivem nos limites internos de Sevenoaks sejam leais à Coroa.

― Haverá novas mudanças quando você se tornar o senhor por direito deste castelo? ― indagou Giles. ― Estou lembrado de você ter mencionado que pretendia retornar a Mereworth depois do casamento.

― Pretendo passar boa parte de meu tempo em Mereworth, sim, mas não irei tolerar subversão ou conspirações em Sevenoaks... sejam de parte de quem for, nobre ou plebeu. Se tiver de baixar o portão levadiço e expulsar todos os visitantes, eu o farei. Se julgar que lady Aislin estará mais protegida em Mereworth, providenciarei para que ela seja instalada lá com todo o conforto que merece.

― Não é difícil perceber que seus ânimos estão exaltados por conta da presença de Simon neste castelo.

― Não, tenho por hábito oferecer comida e guarida a todos os que viajam por estas paragens, até mesmo condes dados a intrigas. Minha hospitalidade, porém, não se estende a encon­tros ou reuniões que possam envolver incautos, inocentes e indefesos. Negócios desse quilate põem todos aqui em risco, principalmente Aislin. Não tolerarei traidores, vistam eles pa­ramentos da Igreja ou não. ― Fazendo questão de falar sem papas na língua, Desmond quisera deixar claro que sabia sobre o documento para diminuir os poderes do rei.

Giles estava rígido. Havia compreendido muito bem o que o barão quisera dizer: que se preciso fosse, ele, o abade de Tunbridge Wells, seria escorraçado dali como um latoeiro ou condutor de gado qualquer.

― Vou deixá-lo a sós com seu amigo, barão. ― Embora a voz do clérigo fosse mansa, seus olhos expressavam toda a ira que ele sentia. ― Falarei com minha prima Aislin e pedirei que ela se prepare para o casamento, que deverá ser celebrado o mais depressa possível.

― Sim, faça isso, abade. Creio que o período de luto dela em breve estará terminado.

Desmond passou pelas cozinhas para verificar o estado de saúde do cavaleiro acidentado. Como já esperava, encontrou Tom à cabeceira do ferido.

― Tenho para mim que ele está se recuperando ― disse o jovenzinho quando Desmond ergueu uma beirada da atadura para examinar o ferimento.

A carne ao redor do orifício deixado pela lança não estava inchada nem franzida, tampouco havia o rubor da febre nas faces do rapaz. Sem dúvida Giles não se vangloriara à toa: o abade de fato tinha grandes conhecimentos a respeito de ervas e das artes da cura.

― Ele dorme assim tão profundamente o tempo todo? ― quis saber Desmond, reparando que o cavaleiro não esboçara a menor reação ao seu exame.

― Não, às vezes ele se agita. O abade lhe ministrou uma série de ervas não faz muito tempo. Antes disso o cavaleiro tinha ameaçado se debater e balbuciado coisas confusas a res­peito da infância, então se acalmou e mergulhou num sono profundo.

― Realmente, ele dorme como um bebê. Quem o vê assim nem calcula que o ferimento quase lhe roubou a vida. ― Des­mond observou por alguns instantes os movimentos da respi­ração no peito do rapaz.

― O senhor já foi ver as mungidoras, milorde? Posso ir buscar seu leite, se quiser. ― Sem esperar pela resposta, Tom se ergueu sobre as muletas com uma agilidade espantosa para alguém em suas condições físicas.

― Você está sabendo do leite?

― Oh, sim, milorde. Vi quando o senhor foi buscá-lo antes de o sol se pôr. Mas não contarei a ninguém que o senhor gosta de tomar leite, se alguém me perguntar, direi que só bebe cer­veja... cerveja forte.

Desmond não pôde deixar de sorrir. Tom certamente fazia segredo daquilo porque leite não era algo que os homens to­massem. Ah, se ao menos o jovenzinho soubesse que se tratava de um suborno para um bichano cheio de vontades...

― Acredito que você saberá guardar meu segredo, Tom. ― Desmond bateu afetuosamente no ombro dele.

O sorriso de dentes salientes do jovenzinho era mais uma prova de que, apesar da dor que era obrigado a suportar dia após dia, ele não reclamava, não descuidava de seus afazeres, não se deixava abater. A cozinheira tinha contado que, sob a parte mais danificada do joelho aleijado, o ferimento nunca sarara por completo e frequentemente vertia secreções supuradas. Mesmo assim, Tom estava sempre alegre e pronto para trabalhar.

― Eu sei guardar segredo, sim, milorde. Tenho um punhado deles na minha cabeça, que venho juntando desde antes de usar isto. ― O rapazinho indicou as muletas.

― Então fico seguro de que estou em boas mãos.

Desmond tornou a sorrir. Cada vez mais se convencia de que Sevenoaks era repleta de segredos, tanto graúdos como insignificantes. Que diferença faria mais um, a respeito de uma tigela de leite para um prestativo gatinho?

― Espero que você esteja casada até o final do mês. ― Sentado numa poltrona em estilo romano, Giles estudava a prima por cima da taça de vinho depois de reparar que ela havia comido muito pouco da refeição que lhe trouxera.

― Já disse que não me casarei com ele, Giles. Nada mudou. Não desposarei Desmond.

― Tenho sido paciente, Aislin, mas você tem de dar um fim a essa recusa obstinada. Simon de Montfort, conde de Leicester, e a dama esposa dele serão testemunhas da celebração, assim como o juiz supremo do condado de Kent.

― Você fala como se testemunhas nobres pudessem alterar o que estaria por vir após o casamento.

― Desmond Vaudry du Luc ficará bem.

― Sim, ficará. Desmond não sofrerá as conseqüências desta maldição porque não irei desposá-lo.

Deixando a taça de lado, Aislin se pôs a caminhar pelo apo­sento. As chamas da lareira estavam altas demais, o que dei­xava o ambiente quente e abafadiço, pois antes que Giles apa­recesse ela se preparava para deixar o dormitório da castelã e ir para o labirinto. Agora a luz platinada do luar já se esparra­mava pela vidraça das janelas, e tudo o que Aislin mais queria era estar longe daquele lugar... e de seu primo.

― Por Jesus! Estou começando a me aborrecer com você, Aislin. Sei qual é a melhor atitude a se tomar nestas circuns­tâncias. Será que não confia mais em mim? ― Giles pôs-se em pé e, apesar de a rigidez de seus músculos denotar intensa raiva, a única reação que teve foi olhar duramente para a prima.

― Eu... eu confio em você. ― Ela se surpreendeu com a relutância que ouvia na própria voz.

― De fato? ― Como se tentasse colocá-la em foco, o olhar do abade estreitou-se ainda mais. ― Faz semanas que você não se confessa. Não gostaria de fazê-lo agora? Por que não aproveita e se confessa comigo?

― Não. O que eu queria era ir-me deitar, Giles. Minha ca­beça está doendo.

― Você é uma pessoa teimosa, prima. Não posso obrigá-la a casar-se, como bem sabe, mas guarde minhas palavras: o rei não é nenhum tolo choramingas que possa ser ignorado, ele traz no sangue o temperamento difícil da avó, Eleanor de Aquitânia. Não contrarie Henrique, se não quiser provar da ira dele.

― Você tem certeza de que não posso transferir Sevenoaks para ele? Eu o faria de bom grado e depois ingressaria numa ordem religiosa que...

Aproximando-se como se lhe desse um bote, Giles agarrou-lhe os pulsos para dizer entre os dentes:

― Nem ouse tentar, Aislin. Estou avisando. ― Então a lar­gou e deixou os aposentos antes que ela pudesse esboçar qual­quer reação.

Aislin deixou escapar um longo suspiro. Giles andava es­tranho. O que o levava a mostrar-se tão rude, tão... cruel? Po­deria estar envolvido com Simon e suas maquinações? Mesmo já tendo ouvido falar do poder e da influência que seu primo possuía, ela jamais o imaginara como um político. Naquela noite, porém...

Após contar três batidas de seu coração, ela correu a passar a tranca na porta. Chegara a imaginar que o primo seria capaz de algum ato violento, mas havia se enganado. Quando perdera ambos os pais num naufrágio, Giles cuidara dela. Tinha sido ele quem providenciara seu casamento com Theron. Sim, cer­tamente estava enganada. Giles era seu apoio e sua defesa num mundo repleto de línguas ferinas e conspiradores.

Uma coruja piou, chamando a atenção de Aislin para as janelas. A noite estava em sua plenitude. Escondendo os ca­belos e apanhando o manto, ela seguiu para o labirinto com Pointisbright em seus calcanhares. Rezava para que não fosse tarde demais... para que Desmond ainda estivesse por lá.

Ao passar pela saída secreta, ela nem notou que tinha a res­piração suspensa enquanto o admirava. Sem saber que era ob­servado, ele passava os dedos pela superfície do relógio de sol, as sobrancelhas escuras franzidas, as mandíbulas rígidas. Era encantador... Inebriante como um potente hidromel, mais viciador do que o pecado.

Cuidando para não fazer o menor ruído, Aislin deixou as sombras no limiar do corredor e girou a argola de ferro. Com um suave sussurro, a parede de pedras começou a fechar-se. Quase no mesmo instante, Pointisbright disparou na direção do relógio de sol. Ela sentiu-se gelar. Se o atraente barão se virasse, seguramente iria vê-la ali... e descobrir a passagem secreta. A sorte, porém, estava a seu lado: um segundo depois de o corredor desaparecer atrás do muro de pedras, Desmond virava-se para ela.

― Você aparece por magia? ― ele indagou com suavidade quando seus olhos se encontraram. ― Não sei que corredores você toma para chegar ao labirinto, mas seu caminho não é o mesmo que eu sigo. ― Erguendo o braço, Desmond abriu a mão, porém se deteve sem antes tocá-la. ― Você é algum espírito? Ou talvez uma ninfa que vive somente aqui entre as flores?

― Sou feita de carne e sangue. ― Uma voz entre seus pen­samentos lhe dizia para contar tudo a ele, mas Aislin sabia que não podia fazê-lo. Dera sua palavra solene a Theron, não iria quebrá-la. ― Ou por acaso imagina que sou capaz de caminhar através das pedras?

Desmond finalmente a tocou, passando o nó dos dedos pelo rosto dela para depois lhe contornar a linha do queixo. Aislin estremeceu ao carinho.

― Não importa como você chegue aqui, mas sim que apa­reça, minha doce dama do labirinto. Venha, deixe-me desfrutar do prazer da sua companhia, pois em breve irei me casar e não mais poderei buscar abrigo junto de você. ― Tomando-a entre os braços, ele a beijou apaixonadamente.

Apesar de lhe permitir iniciá-la na arte do amor, Aislin disse a si mesma que precisava reconhecer que o tempo que tinham começava a se esgotar. Alheio ao pesar dela, Desmond só sabia que a desejava. Queria aquela mulher como um louco. Não lhe importava que não soubesse o nome da bela donzela nem que, a cada noite que passava, ela se mostrasse mais e mais enig­mática. Desejava-a com um ardor que jamais experimentara por nenhuma outra mulher, e isso lhe bastava.

Com o corpo ainda mais rijo e o sangue ainda mais infla­mado, beijou-a profundamente, mergulhando a língua na boca com gosto de mel para lhe saborear todos os recônditos, todos os mistérios. O ímpeto de tomá-la para si, de possuí-la ali mes­mo e fazê-la só sua era irresistível, mas... Não, não podia fazer isso. Sua honra e sua dignidade não lhe concediam esse direito.

Então deixou de beijá-la e se afastou o suficiente para olhar nos olhos dela. Haveria no mundo uma mulher com lábios mais deliciosos?

― Não ― disse baixinho, refazendo com o polegar os con­tornos da boca ainda trêmula. ― Não posso me envolver com você e desposar outra dama. Perdoe-me.

Virando-se, deixou o labirinto o mais depressa que seus pas­sos lhe permitiam. Por sorte não ouviu sua donzela a chamar o nome dele num sopro de voz.

Desmond cruzou as portas altas em forma de arco que da­vam acesso à fortaleza, de onde seus olhos podiam abarcar quase todo o salão nobre. O conde de Leicester, Durham, Seddenham e Falsey, reunidos a uma das extremidades da longa mesa, comiam qualquer coisa e traçavam planos. Os quatro lhe dirigiram um olhar apressado, depois retomaram a conversa como se a presença deles não tivesse a menor importância aos seus desígnios. Um comportamento que por si só já seria in­tolerável, mesmo que Desmond não se achasse ardendo de de­sejo, culpa e frustração.

― Eles se aproveitam de Sevenoaks ainda não ter um lorde por direito. ― Coy deslizou de um canto junto às portas para se colocar ao lado do amigo. ― Há muita especulação por aqui; os moradores do castelo estão preocupados.

― O que foi que você andou ouvindo?

― Dizem que quinze barões virão se reunir em Sevenoaks para redigir um documento de reivindicações antes de segui­rem viagem até o parlamento em Oxford. O rei não ficará nada contente com aqueles que se envolverem nessa aventura in­sensata.

― Você, meu amigo, tornou-se um mestre em apresentar os fatos de modo atenuado ― retrucou Desmond num tom soturno. ― Se Henrique manda matar centenas por conta da perda de um cozinheiro, o que fará com relação à traição entre os nobres da Inglaterra?

― Dizem que eles escolheram Sevenoaks porque a fortaleza se encontra sem um senhor legítimo e Aislin não tem um ma­rido para orientá-la ou defendê-la ― disse Coy, dando voz aos pensamentos de Desmond.

― É verdade, e eu não posso mais pensar somente em mim mesmo. Já é hora de deixar o egoísmo de lado e pôr mãos à obra.

Com isso, Desmond tomou as escadarias rumo aos aposen­tos no piso superior. Não era nenhum rapazola doente de amor, escravo de seus impulsos sexuais, era um homem feito, com inúmeras responsabilidades. O povo de Sevenoaks precisava de uma mão forte para guiá-los, para que não caíssem num covil de víboras e incorressem na ira de Henrique. Aislin não merecia ser colocada sob o machado de um algoz simplesmente porque não era mais nem jovem nem virgem.

Chegou a hora de eu transformar em realidade a vontade do rei. É chegado o momento de tomar a dama por minha esposa.

― Lady Aislin, eu gostaria de lhe falar... agora.

Silêncio.

Desmond tornou a bater à porta dos aposentos dela.

― Você tem de me receber, minha dama. Precisamos apre­sentar-nos um ao outro.

Mais silêncio.

― Posso ajudá-lo? ― Giles se aproximava correndo, os olhos arregalados, as vestes clericais a flanar entre suas pernas.

Ignorando o abade, Desmond virou-se novamente para a porta e tornou a bater. Seria possível que Aislin fosse tão velha que não o escutava chamá-la? Pobre mulher, só lhe faltava ter perdido a boa audição.

― Aislin, abra a porta e receba seu noivo ― ele insistiu.

― Por que não volta pela manhã, quando... ― começou Giles.

― Não, quero conhecer minha noiva neste instante. Não preciso de seu auxílio, abade, pode ir à procura de uma alma que consolar... ou de um conluio que preparar.

A boca de Giles se comprimiu numa linha fina, porém ele não se deixou saltar à isca que lhe era ofertada. Em vez disso, usou de um tom bastante conciliador para argumentar:

― Talvez Aislin já esteja deitada.

― É possível, mas chegou o momento de resolvermos esta questão. Se tiver como se comunicar com sua prima antes que eu consiga fazê-lo, diga-lhe que nosso casamento irá se realizar.

― Quando?

― Amanhã, à tarde. E depois, tão logo me seja possível, levarei Aislin para Mereworth. Há intriga demais neste castelo para o meu gosto. Não quero colocar a dama em perigo. ― Como ele esperasse por objeções da parte do clérigo, o sorriso com que suas declarações foram recebidas o pegou de surpresa.

― Como quiser, meu lorde. Tentarei acordar minha prima e fazer com que ela se prepare tanto para o casamento como para a viagem.

Após menear a cabeça em sinal de anuência, Desmond afas­tou-se com uma estranha sensação de mal-estar. Desconfiava de que Giles tivesse se aliado a Montfort e preferisse ver Sevenoaks sem um lorde, por isso reconhecer que o abade estava ansioso pela celebração do casamento, e também por ter a castelã da fortaleza longe dali, retorcia-lhe o estômago. Talvez tivesse interpretado mal as verdadeiras intenções do primo de Aislin. Pois tudo levava a crer que Giles o quisesse casado com ela e que ambos se fossem para Mereworth.

O despontar do sol no horizonte fez Sevenoaks entrar em ebulição, uma vez que todos ali tinham com que se ocupar nos preparativos para o casamento de sua dama ao cair da tarde. Até mesmo Desmond e seus homens dedicaram boa parte de seu tempo a providenciar para que suas túnicas fossem limpas e escovadas, e também para que suas montarias estivessem prontas para a comitiva nupcial partir logo após a celebração.

Agora que não tinha mais por que contar as horas até poder ir ao encontro da misteriosa donzela do labirinto, Desmond dava-se conta de que a obsessão que o acometera em relação àquela jovem fora um tanto estranha. Não a tinha visto nem uma dezena de vezes, não chegara a saber nem o nome nem nada importante a respeito dela. A bela dama era pouco mais do que um fantasma da noite, uma visão evocada pelo sonho que ele tinha de possuir uma esposa jovem e submissa.

― Então por que sinto meu coração se encher de pesar à perspectiva de casar-me com Aislin e nunca mais voltar a ver a bela donzela? ― ele se perguntou enquanto passava uma lâmina afiada pela barba crescida. Por que via lampejos dos olhos tristes dela sempre que fechava os seus? ― Não foi nada mais que desejo e um capricho tolo. É hora de eu me render. Não terei uma esposa jovem nem crianças brincando sobre meus joelhos quando tiver mais idade. Tenho de honrar meu compromisso para com Henrique e Aislin.

Após banhar-se e pentear os cabelos, escolheu uma jóia ade­quada com que presentear sua noiva e deixou os aposentos sem o menor sinal da ansiedade característica de alguém que estava prestes a se casar. E o fato de ter de se apresentar mais cedo no salão nobre para brindar com os nobres convidados em nada servia para melhorar seu humor.

Depois que uma respeitável quantia de hidromel foi consumida, os condes, as damas e os mais importantes servos rio castelo, reuniram-se nos degraus da capela de Sevenock, que ficava no pátio da fortaleza. Ali, enquanto aguardavam a chegada de Aislin, todos riam e faziam brincadeiras num espírito de confraternização que a bebida fizera emergir, mas que pou­cos acreditariam ser verdadeira.

Com o passar do tempo os gracejos começaram a minguar. Pouco a pouco, os chistes e as risadas tornaram-se mais e mais esporádicos. Por fim eclodiram os sussurros e as manifestações de descontentamento e preocupação.

― Não vejo isto como um sinal de bom agouro. Se minha noiva é tão vaidosa que se atrasa para o próprio casamento, ouso pensar que serei um marido bastante maltratado ― ob­servou Desmond num tom jocoso, provocando uma série de gargalhadas que aliviou a tensão.

Na verdade ele imaginava que a velha Aislin estivesse se esfalfando para melhorar a aparência e domar os cabelos ás­peros que deviam ter o aspecto de um ninho de cobras ao redor de um rosto cansado, coberto de rugas. Que Deus o ajudasse e lhe desse forças.

― Ela estará aqui a qualquer momento ― disse o abade de Tunbridge Wells, confiante. ― Eu mesmo a informei a respeito do horário combinado para a celebração.

― Ela tem de vir ― declarou lady Eleanor. ― Fazer menos do que demonstrar total obediência à vontade de meu irmão é suicídio.

Uns poucos barões e condes riram do comentário lúgubre como forma de demonstrar sua disposição em desafiar o mo­narca. Ainda assim Desmond identificou, entre o grupo, vários deles que haviam perdido toda a cor do rosto.

― Uma mulher que já sepultou quatro maridos tem um ins­tinto de sobrevivência bastante forte ― observou Simon de Montfort. ― Custa me crer que ela iria desacatar uma ordem de Henrique e incorrer na sua ira.

― Vou buscar minha prima, não nos demoraremos. ― O abade deixou-os numa onda de pressa e afobação, desapa­recendo castelo adentro em meio ao farfalhar de seus trajes clericais.

Giles não demorou a reaparecer, agora ainda mais agitado. Com o rosto tingido de rubro e os olhos apertados, ele se apro­ximou do noivo.

― Meu lorde Desmond... Não posso, ou melhor, não sei como dizer...

― A dama Aislin não quer se casar comigo? ― Desmond se antecipou.

Um silêncio constrangedor se abateu sobre os nobres. Da­mas puseram-se a pestanejar como se não acreditassem no que tinham acabado de ouvir.

― Não pode ser... ― Eleanor arfou.

― Mas é verdade ― confirmou o abade. ― Aislin se recusa a casar-se. Ela diz que mesmo sob pena de morte não irá des­posar o barão Desmond Vaudry du Luc.

O silêncio tornou-se ainda mais profundo. Ninguém, ho­mem, mulher ou criança, ousava se mexer. Desmond, porém, não conseguiu se conter por muito tempo: jogando a cabeça para trás, deu sonora gargalhada ante o absurdo da situação. Quando finalmente se decidira por desposar a velha encarqui­lhada que tingia os cabelos brancos com decocções, ela lhe atirava o gesto magnânimo na cara.

― A dama não me quer por marido... Tudo isto não passa de uma ridícula pantomima. Ridícula e mortal. Mas, seja como for, devo confessar que admiro lady Aislin. Afinal, ela possui um coração valoroso e uma espinha que não se dobra.

— Você se dá conta do que fez? ― rugiu Giles. ― Não posso ser responsabilizado pelas conseqüências desta insa­nidade!

― Não é você o responsável, Giles, sou eu. ― Aislin podia ouvir o primo andando de um lado para outro pelo corredor, diante da porta que ela havia trancado com extremo cuidado.

― Você não sabe o que diz! Pelo Senhor nos Céus! O rei vai pedir sua cabeça e a cabeça de qualquer um que compartilhe de seu sangue.

― Ah, então é com seu pescoço que você está preocupado, não com o meu? Acalme-se, Giles. Não me parece que o rei irá perder seu tempo com uma mulher quatro vezes viúva que não pretende casar-se novamente. Ele deve andar ocupado de­mais com suas catedrais ou com as guerras de seus filhos, mas se por acaso resolver se incomodar comigo, cuidarei de deixar claro que você tentou me persuadir de todas as maneiras. Ago­ra, por favor, deixe-me em paz.

― Exijo que você abra esta porta e apresente-se lá embaixo para a bênção do casamento. Você tem de desposar Desmond Vaudry du Luc e consumar essa união, e isso deve ser feito ainda hoje. Ele quer viajar para Mereworth antes que anoiteça.

Do outro lado da porta, Aislin deu um passo para trás. Nunca vira seu primo naquele estado de nervos. No entanto, não era possível que ele acreditasse que a cólera do rei se estenderia a um influente membro do clero. A bem da verdade, Henrique sempre o favorecera. Não, Giles não corria risco algum, disso ela tinha certeza. Por que, então, ele estaria tão irritado?

― Aislin, você vai se casar com du Luc e deve fazê-lo sem demora.

― Não tomarei Desmond por esposo, Giles. Ouviu bem? Não irei me casar com ele nem agora, nem hoje, nem dia ne­nhum. Agora pare de me importunar!

― Se não abrir esta porta agora mesmo, juro pelos santos que irei parti-la em pedaços com minhas próprias mãos e ar­rastar você até os degraus da capela pelos cabelos.

― Antes terá de passar pelo meu corpo morto e frio ― disse Desmond, encostando-se à dura parede de pedras.

Giles, o abade de Tunbridge Wells, girou sobre os calca­nhares.

― Meu lorde barão, eu não ouvi você se aproximar.

Certamente, abade. ― Já fazia alguns minutos que Des­mond testemunhava aquela discussão sem que o clérigo se apercebesse de sua presença. Cruzando os braços no intuito de evitar apertar o pescoço de Giles, ele declarou: ― Agora que estamos frente a frente, peço-lhe o favor de prestar bastante atenção ao que vou dizer. Posso não ser o senhor de Sevenoaks em virtude de ainda não ter desposado Aislin, mas continuo sendo um cavaleiro do reino. Ninguém, nem mesmo alguém que vista trajes clericais, irá obrigar uma mulher a casar-se contra a vontade dela.

― Mas o rei...

O ruído de passos pela escadaria anunciou a aproximação de Hadwaine, juiz supremo de Kent, de Simon de Montfort e da dama sua esposa, lady Eleanor. De olhos arregalados, os três pareciam ansiosos por um pouco mais de drama.

― Ela não quer me desposar. É simples assim. Nem se Henrique fizer os céus tombarem sobre a terra, nem com isso a dama irá se casar comigo. Decerto ela não me julga um noivo conveniente, alguém de seu agrado. E enquanto meu corpo respirar, nenhum homem obrigará uma mulher a ir ao altar contra sua vontade. Nem mesmo você, que é primo dela.

― Você não sabe o que está...

Desmond afastou-se da parede para dar um passo em direção a Giles. Então agarrou o abade pela gola do hábito e trouxe-o para junto de si antes de declarar por entre os dentes cerrados:

― Sim, sei muito bem o que estou dizendo. E vou matá-lo se você causar mais um só momento de pesar à dama do outro lado desta porta. ― Largando Giles com um safanão, Desmond abriu caminho por entre o grupo de nobres e seguiu para a escadaria.

Aislin tinha o ouvido colado à porta de seus aposentos. Ja­mais em toda a sua vida alguém a tinha defendido como Des­mond o fizera. E ele fez isso por mim, por Aislin, não pela donzela do labirinto. Sem perceber, deixou-se escorregar pela madeira até o chão frio, depois abraçou as pernas e deitou o rosto sobre os joelhos. Enquanto as lágrimas lhe inundavam os olhos, sussurrou para si:

― Eu me enamoro mais e mais a cada dia que passa... De um homem que nunca poderei ter.


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