A dama Do Labirinto



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Capítulo VIII

Abatida seca à porta fez Aislin sentar-se sobre o colchão. Como que confusa, ela então piscou repetidas vezes. E um breve arfar de surpresa escapou-lhe dos lábios quando seu olhar foi pousar sobre Desmond.

— Você... você está vivo.

— Sim, desde que se possa chamar de vida este estado do­lorido em que me encontro.

Após passar a noite sentado numa poltrona em estilo roma­no, refletindo a respeito da situação no interior das muralhas da fortaleza de Sevenoaks, ele agora tinha o pescoço e os om­bros rígidos. Ao tentar girar a cabeça, ouviu um estalar de ossos. Então, pondo-se em pé, ergueu os braços e tentou esticar os músculos a ponto de se contraírem em cãibras.

— Meu lorde Desmond? — uma voz desconhecida chamou do corredor. — O senhor está bem, meu lorde?

— Sim.

O arquejo admirado do outro lado da pesada porta de car­valho levou-o a suspeitar de que Aislin não era a única que esperava encontrar um cadáver ali dentro naquela manhã.



Após um instante de silêncio, a voz prosseguiu:

— Mandaram-me avisar que se o senhor estivesse vivo... Melhor dizendo, meu lorde, o rei gostaria de vê-lo assim que possível.

— Diga ao soberano que eu, e minha esposa, iremos ao encontro dele dentro de uma hora.

— Pois não, meu lorde.

Aislin não se mexia. Olhava para ele com olhos pasmos, repletos de admiração. Tinha os longos cabelos em completo desalinho ao redor do rosto sem cor, e segurava com tanta força as cobertas da cama que os nós de seus dedos mais pareciam garras.

— Sua expressão me diz que você imaginava encontrar-me morto pela manhã.

Pestanejando como se a voz de Desmond a despertasse de um sonho estranho, ela respondeu:

— Sim. Não. Não sei se devo pensar que você é real ou se estou a imaginá-lo. — Esboçando um sorriso, Aislin tentou ajeitar os cabelos.

Desmond prendeu a respiração. Os seios dela mostravam-se nitidamente através do tecido fino do traje de dormir. Sua es­posa estava linda, adorável... Como se num sonho, ele se viu caminhar até a cama para torná-la entre os braços. Sentiu-a dócil, ainda um pouco entorpecida pelo sono, então levou a mão a um seio arredondado e firme para acariciá-lo quase com reverência. Era uma bênção de Deus que sua esposa fosse jo­vem, bonita e virgem.

— Acredite, Aislin: não sou fruto de sua imaginação. Beijou-a apaixonadamente, saboreando com a língua a boca que se oferecia sem resistência. Só o prazer de tê-la nos braços e beijá-la era o bastante para deixá-lo rígido e todo excitado. Sua mulher. Sua dama. Sua maldição?

Aislin gemeu baixinho, largando-se de encontro ao peito dele. Ainda que fosse intocada, tinha um rio de paixão a fluir sob a pele translúcida. Desmond queria encrespar aquelas águas até transformá-las num redemoinho intenso, torrencial. Desejava aquela mulher como jamais havia desejado nenhuma outra. Mas ainda tinha a vaidade masculina ferida pelo logro que ela lhe impusera. Oh, sim, acreditava naquela história de Aislin temer pela vida dele, porém como homem, não podia ignorar a humilhação de ter sido enganado de modo tão ardiloso.

Interrompeu o beijo. E ao vê-la com o semblante modorrento de uma mulher em pleno assomo de paixão, percebeu que po­deria deitá-la sobre aquela cama e possuí-la naquele mesmo instante.

Só que não iria fazer isso. Não por enquanto.

Ignorando as batidas descompassadas de seu coração, apar­tou-a de si com delicadeza e se endireitou. Ao afastar-se da cama tinha ainda nos ouvidos o zumbido do sangue inflamado pelo desejo.

— Desmond?

— Prepare-se, esposa. Iremos ao encontro do rei.

Com isso ele caminhou até a janela e abriu-a de um só golpe, na expectativa de que o ar fresco da manhã lhe clareasse os pensamentos. Um homem não podia, dar atenção aos apelos de sua masculinidade, mesmo que ela latejasse de desejo. Um homem precisava preservar sua dignidade, ou não seria um homem de verdade.

Cerca de meia hora depois Desmond deixava os aposentos da castelã com a mão da esposa em seu braço. Dispensando o auxílio de uma criada, ela vestira uma túnica do melhor veludo veneziano da cor da ferrugem, com um delicado bordado em seda negra junto ao pescoço. Deixara os cabelos soltos, em longas e grossas madeixas que lhe alcançavam o quadril. Seu único enfeite era uma tiara de pérolas ao redor da testa.

Aislin estava um pouco pálida, tensa como a corda de um arco, e bela como o nascer do sol. Desmond nunca experimen­tara a mistura de orgulho e perplexidade como a que o acometia enquanto, lado a lado, ambos desciam os três lances da sinuosa escadaria de pedra para irem se colocar na presença do rei Henrique.

Ver o semblante daqueles que se reuniam no salão nobre era outro motivo para contentamento. A expressão de Coy de­notava o mais puro alívio. O príncipe Eduardo tinha um dis­creto ar de decepção. Convencido de que sua vontade era mais poderosa do que a morte, Henrique os admirava com soberba jovialidade. Montfort e a esposa Eleanor pareciam verdadeira­mente surpresos e satisfeitos. Giles, ah!, a fisionomia de Giles era a mais reveladora de todas: sem demonstrar a mínima sur­presa pelo fato de ver Desmond respirando, o abade tinha no rosto uma mescla de mau humor e impaciência.

— Ah, Desmond e lady Aislin. — Henrique tinha um sorriso largo. — Venham, venham. Sentem-se à minha direita. Com­partilharemos do pão e de uma caneca de vinho.

O casal acatou a intimação do monarca. Embora sua mão tremesse na mão de seu marido, Aislin mantinha a espinha ereta e o queixo erguido ao subir ao tablado onde ficava a mesa de honra do salão para ali tomar seu assento. Desmond conteve um sorriso. Ela era corajosa como a rainha Boudicea, uma das maiores que aquela terra já vira.

— Lady Aislin, vejo que os relatos sobre sua aparência cas­tigada devido ao pesar carecem de fundamentos. — O rei olhou duro para Giles. — Na verdade, Aislin, você está muito mais bonita do que na última vez em que a vi.

— Pela Cruz, ouso dizer que uma mulher capaz de enrubes­cer após cinco casamentos não é algo que mereça ser ignorado — observou o príncipe Eduardo com um arremedo de sorriso.

— Parece-me que você recebeu uma incumbência bem melhor do que aquela que eu havia imaginado, du Luc.

— Minha esposa é fonte inesgotável de satisfação e alegria — devolveu Desmond.

Um criado colocou um filão de pão branco diante do sobe­rano. Enquanto o aroma do alimento recém-saído do forno se espalhava pelo ar, Desmond olhou para Coy e percebeu que começava a acreditar na idéia do amigo de que os quatro outros maridos de Aislin tinham sido envenenados. Mas ainda que isso fosse realmente verdade, nem mesmo o mais frio dos as­sassinos ousaria arriscar-se a envenenar o rei na presença de seu filho e sua comitiva. De um modo ou de outro, ele esperou até ver Henrique levar um pedaço de pão à boca para partir do filão um pedaço para si e outro para Aislin.

A jarra que encheu a caneca de ambos era a mesma de onde o rei fora servido. Ainda assim, Desmond esperou que todos à mesa provassem do vinho antes de menear a cabeça para indicar a Aislin que comesse e bebesse à vontade, depois apro­ximou os lábios do ouvido dela para lhe soprar:

— É a primeira vez que fazemos o desjejum como marido e mulher, mas lhe prometo que não será a última.

— Confesso, meu pai, que estou decepcionado — disse Eduardo com um suspiro de profundo tédio. — Ouvi boatos que fariam gelar o sangue no corpo de um homem. Aliás, ru­mores que falam do mal e de feitiçaria têm sido profusos nesses últimos cinco anos.

— O que está dizendo? Fale claramente. — Henrique con­centrou a atenção no filho e herdeiro.

— Desmond Vaudry du Luc acha-se forte e saudável. Ou então é um espírito e, nesse caso, tem um apetite muito melhor do que a maioria dos fantasmas com quem convivemos. — O comentário jocoso de Eduardo provocou risadinhas pelo salão. — O que me leva a pensar que toda a apreensão com relação ao casamento de Aislin com du Luc não passava de conversa enfastiada de matronas ociosas... ou de pessoas enciumadas.

Todos os olhos se voltaram sobre Aislin e Desmond. Ele reparou que, mesmo dura como uma tábua, sua esposa não se encolhia nem fugia do olhar interpelador do príncipe. Ela pos­suía um coração de guerreira.

— Diga-nos, dama — continuou Eduardo —, seu esposo vive e respira porque é jovem e não padece de ferimentos supurados?

— Não vi enfermidade alguma no corpo dele — Aislin re­trucou com atrevimento. — Desmond é sadio de compleição e forte de coração.

— A dama fala como uma mulher que provou do júbilo do leito nupcial, ouso dizer. — O príncipe deu uma risadinha antes de dirigir-se ao pai. — Foi como eu lhe disse: se enviasse a ela um noivo forte o suficiente para sobreviver ao leito nupcial, tudo acabaria bem. Uma potranca nova demais e garanhões velhos demais... era essa a raiz dos problemas.

Aislin sentiu o sangue subir-lhe às faces. Incapaz de susten­tar o olhar malicioso de Eduardo, e com medo de que o príncipe percebesse que o casamento ainda não se consumara, ela então baixou a cabeça.

— Você fez a dama corar, meu filho, mas também apontou o essencial — observou Henrique, satisfeito. — Faz cinco anos que venho ouvindo boatos sobre as mortes ocorridas em Sevenoaks, agora não ouvirei mais falar desse assunto. Lady Aislin está ca­sada e assentada, o casamento se consumou, e o marido dela parece apto a prosseguir com a tarefa. Desmond Vaudry du Luc é agora lorde de Sevenoaks e seus domínios. Que se dediquem a eles a nossa lealdade e o nosso respeito.

As palavras do rei tiveram o impacto de um sino ribombando sobre todos ali reunidos. Por alguns instantes, ninguém se me­xeu nem mesmo piscou.

— E agora — prosseguiu o monarca, olhando para Eleanor e Simon —, posso dedicar minha atenção a irmãs caprichosas e seus maridos rebeldes. Já é hora de colocar ordem na minha casa e no meu reino, e é bom que eu comece com o que se acha mais próximo do meu alcance.

O peso de cinco anos de tormento desapareceu dos ombros de Aislin. Desmond sobrevivera à noite de núpcias. A luz ra­diante do dia, e após as declarações de Henrique e Eduardo, ela começava a pensar que tudo o que havia sofrido não passara de um sonho mau. Ninguém àquela mesa parecia pensar que a castelã de Sevenoaks fosse feiticeira ou amaldiçoada. Além disso, ela vinha recebendo sorrisos tímidos de seus criados, até mesmo das aias a quem havia expulsado de seus aposentos.

O rei Henrique bateu palmas. Flautas, harpas e alaúdes preencheram o ambiente com acordes melodiosos. Risadas e conversas amáveis eclodiam aqui e ali às mesas dispostas abai­xo do tablado. Aislin, porém, ainda não juntara coragem para olhar para Desmond e imaginar que ambos tinham pela frente o amanhã. E o depois de amanhã...

— Venha, mostre-me todas as maravilhas de minha nova fortaleza, minha dama e esposa. — Erguendo-se, Desmond estendeu a mão para ela.

Enquanto Aislin o olhava como se caminhar ao ar livre num dia de sol lhe fosse algo fora do comum, Henrique deu seu veredicto:

— Vá, vá. É dever da boa esposa satisfazer todos os desejos de seu marido.

Ela então depositou os dedos sobre a palma da mão de Des­mond, dizendo baixinho:

— Pois não, meu lorde.

Deixaram o salão nobre de mãos dadas, à música suave que se erguia no ar. No momento em que sentiu o sol em sua pele, Aislin se deteve com um sobressalto. Fazia tanto tempo que não saía de seu dormitório que já nem sabia mais como era viver essa sensação.

Seu mundo fora encolhendo com a morte de seus maridos, até se restringir ao espaço contido entre as paredes dos apo­sentos da castelã e ao panorama descortinado pelas suas jane­las, às passagens secretas e, à noite, ao labirinto de cerca-viva. Então Desmond, por vontade própria ou por um capricho do destino, transformara sua existência... ao menos por algum tempo. Agora a vida acenava para ela, chamando-a de volta ao mundo e seus percalços e prazeres. Mas ela saberia responder a esse chamado?

Haveria um caminho a seguir ao encontro da felicidade, ou ainda permanecia aprisionada a seus segredos? Desmond pa­recia pensar que sobreviver à noite de núpcias era uma prova de que não corria riscos, porém ela não estava assim tão certa disso. Afinal, a realidade quase nunca correspondia aos sonhos, e era perigoso desafiá-la. Não, não estava pronta para viver uma nova vida. Ainda não. Precisava de mais tempo ao lado daquele homem, mais tempo para conhecê-lo e para descobrir se seu coração tão desesperançado poderia confiar nele... e na promessa de um futuro.

— Meu lorde, irei aonde você quiser me levar.

— Como quiser, minha dama. Você irá conhecer meus ho­mens de confiança e meu cavalo, pois, ao lado de uma esposa, eles são o que de mais importante um cavaleiro pode possuir.

— Possuir?

— Sim. Agora você é minha. Irei protegê-la e suprir suas necessidades, assim como faço com meus homens e Nevoeiro.

— E o que irei fazer, meu lorde, enquanto você me protege e supre minhas necessidades?

— Ora, o que vai fazer? — A expressão dele era de completa perplexidade. — Você irá me amar, é claro. Pois é isso o que cabe a uma esposa fazer... Amar e tratar o lorde seu marido com muito carinho.

Mais tarde, na cocheira, Desmond acariciava afetuosamente seu cavalo mosqueado enquanto explicava:

— Ele é robusto de coração e pernas. Pode galopar o dia inteiro num torneio e estará pronto para repetir o feito na manhã seguinte. Nevoeiro é treinado para participar de uma batalha e não se ressente do odor de sangue.

— É bem do seu feitio elogiar as virtudes de seu cavalo mesmo que haja uma bela mulher a seu lado. — Um homem alto, com cabelos pretos e olhos amendoados se aproximara.

Aislin levou alguns instantes até reconhecê-lo: era Coy, o melhor amigo de seu marido.

— Coy, deixe-me apresentá-lo à minha esposa. — Desmond deu um último tapinha no lombo de Nevoeiro. — Fico contente com que ela conheça você antes dos demais, afinal se trata de meu amigo mais antigo.

— Brandt ficaria ferido de morte se ouvisse você afirmar que sou seu mais antigo e melhor companheiro.

— Ah, Brandt é de fato um grande amigo, porém é também meu cunhado. Além do quê, ele está longe, na fronteira do norte da Inglaterra; e como é você quem se encontra ao alcance de minhas palavras... — Desmond deu um sorriso maroto.

— Comprometo-me com o seu bem-estar e a sua segurança, lady Aislin. Como esposa de Desmond, receba meu respeito e minha lealdade. Eu entregaria minha vida pela sua. — Coy curvou-se em reverente mesura.

— Sevenoaks já viu mortes e pesar em demasia. — Aislin estremeceu às lembranças, indagando uma vez mais como seu marido podia descartar tão facilmente todos os anos de evidên­cias de sua maldição.

— Venha, minha esposa — disse Desmond, e sua voz tirou-a das divagações. — Há outros companheiros que eu gostaria de apresentar a você nesta manhã.

Ela o acompanhou, mas tinha a mente torturada por idéias melancólicas. Ao contrário de Desmond, não era capaz de li­vrar-se tão facilmente da sensação de estar condenada.

Os homens a quem foi apresentada na verdade eram ainda rapazolas que, Aislin supunha, deveriam estar em seus lares na companhia de suas mães. Ela, porém, preferiu não expressar seus pensamentos, limitando-se a sorrir enquanto Gwillem a homenageava com elegante reverência. O outro rapaz, Tom, era incapaz de movimento tão desenvolto por conta das muletas que se via obrigado a usar. Aislin lembrava-se dele da época em que Theron a levara para lá.

— Não sou tão expedito quanto Gwillem aqui, mas meu coração é forte e sou ágil no pensamento e afiado dos olhos. Serei leal à senhora até a morte.

— Promessas valorosas, estou certo disso, mas não vamos mais falar de morte na manhã após meu casamento. — Des­mond franzira o cenho, e Aislin o viu endereçar um olhar cheio de significados a Coy.

Por acaso seu marido não estava tão seguro quanto queria fazê-la crer?

Pela hora do almoço, o príncipe foi ao encontro de Desmond com o mesmo semblante atilado que trazia no desjejum. Aquela era mais uma peculiaridade de sua linhagem: a capacidade de olhar através de uma pessoa e não simplesmente para ela.

— Barão, o rei e eu partiremos ainda hoje. Estamos bastante satisfeitos com a hospitalidade e o divertimento proporciona­dos por Sevenoaks.

— Fico contente, meu lorde — disse Desmond, um tanto desapontado em saber que seus assuntos particulares pudessem ser motivo de diversão para alguém.

— Os aposentos do castelão são um cômodo bastante incomum. Em Aquitânia e Anjou não há instalações como aquelas. E por mais que eu tivesse me empenhado em solucionar o enigma enquanto estive por lá, devo confessar que não fui ca­paz de descobrir a origem do clarão bruxuleante.

— Clarão bruxuleante? — repetiu Desmond, sentindo-se o idiota da aldeia.

— Ah, pensei que você conhecesse essa história, du Luc. — Obviamente satisfeito por estar mais bem informado do que seu interlocutor, Eduardo deu um sorriso presunçoso. — Fico feliz por saber que são meus os ouvidos que a tudo escutam.

— Que luzes são essas?

— Os habitantes de Sevenoaks dizem que, na calada da noite, bem antes de o dia clarear, vê-se uma luz fantasmagórica na janela dos aposentos do senhor do castelo.

— Mais lendas estúpidas, certamente.

— Talvez seja realmente mais uma dessas histórias contadas por matronas entediadas e criados ociosos — Eduardo con­cordou. — Mas, pense bem: trata-se da única história que não envolve lady Aislin ou os finados maridos dela. Creio ser esse um detalhe bastante expressivo. Quisera eu ter mais tempo para investigar essa questão, já que sempre me interessei por enigmas.

Desmond respirou fundo. As palavras do príncipe tinham mérito. Era especialmente estranho que dentre todas as histó­rias lúgubres que cercavam Sevenoaks aquela fosse a única da qual ele ainda não ouvira falar. Aislin estaria ciente de tal boa­to? Seu prestativo primo Giles teria lhe contado de mais essa lenda, ou tomara o cuidado de manter para si a história do tal clarão bruxuleante para só lhe revelar os comentários que pu­dessem magoá-la e entristecê-la? Pois não escapara a Desmond o fato de que o abade vivia a atanazar Aislin com conversas esdrúxulas sobre a "maldição" de que ela era vítima.

— Pode ficar tranqüilo, meu príncipe. Prometo solucionar esse mistério no seu lugar.

— Era exatamente isso o que eu esperava ouvir, barão. Mantenha-se sempre vigilante, e fique certo de que meu pai não está desatento aos seus esforços com respeito à matilha de ba­rões ambiciosos e os planos deles para o parlamento. — O príncipe Eduardo sorriu com frieza antes de dar-lhe as costas e se afastar, suas pernas incrivelmente longas abocanhando o piso em enormes passadas.

Suas palavras, porém, ficaram a martelar os pensamentos de Desmond.

— Mais um bendito mistério no interior das muralhas de Sevenoaks.

— Meu lorde, esta noite o senhor irá se recolher aos apo­sentos da castelã ou aos seus? Se preferir os aposentos do castelão, preciso da chave para preparar a lareira para o senhor — disse Gwillem, mantendo-se à altura do cotovelo de seu senhor.

Todos os que se achavam à mesa alta voltaram o olhar para Desmond, que teve a impressão de sentir o ardor do constran­gimento que Aislin, a seu lado, irradiava.

— Ficarei nos aposentos da dama, minha esposa. Tive uma noite extremamente agradável lá e gostaria de repeti-la... um sem-número de vezes.

Um murmurinho varreu o salão. Do mais humilde servo ao cavaleiro de mais elevado grau hierárquico a serviço do senhor de Sevenoaks, Desmond recebeu um sorriso de simpatia e... admiração? Se alguém ali de fato temesse Aislin por causa das histórias que corriam a respeito dela, não o demonstrava em seus gestos.

— Meu lorde, isso significa que está preocupado em me proteger ou em suprir minhas necessidades? — ela soprou no ouvido de seu marido.

Seu hálito quente estava perfumado pelo vinho que haviam compartilhado. A presença de Aislin era motivo de grande sa­tisfação, e Desmond teve vontade de poder gravá-la em sua alma. Quem os visse naquele instante imaginaria que trocavam palavras de amor e, graças ao zelo de Coy, também não saberia que nenhum dos dois levara à boca nada que antes já não tivesse sido provado. Desmond sentia-se um pouco tolo por ter de se submeter a esses cuidados. Mas não havia como não sujeitar sua dignidade a certas precauções se quisesse de fato elucidar todos os mistérios que envolviam Sevenoaks.

Por toda a tarde, enquanto caminhava ao sol pelo pátio na companhia de sua dama, não conseguira deixar de pensar no que o príncipe havia dito. Seria possível que a tal luz fantas­magórica tivesse alguma relação com as quatro mortes extem­porâneas?

— Meu lorde? — Aislin o interpelava com uma expressão ansiosa.

— Sim? — Desmond viu-se mergulhar no verde límpido dos olhos dela.

— Peço permissão para me recolher aos meus aposentos.

Ao vê-la passar os olhos rapidamente pelo salão, ele com­preendeu que, embora se mantivesse firme e não deixasse de sustentar todos os olhares que recebia, Aislin não se sentia muito à vontade ali. Teve orgulho de sua esposa. Havia muito ela não se expunha ao exame de sua gente, e não o fazia agora a não ser porque o desposara e tinha a obrigação de acompanhá-lo.

Pondo-se em pé, Desmond assistiu-a a levantar-se para en­tão anunciar:

— Minha dama e eu iremos nos recolher aos nossos apo­sentos. O intendente mandará buscar outro tonel de vinho. Di­virtam-se.

Uma onda de aprovação se espalhou por todo o recinto, pontuada pelo bater de canecas sobre as mesas. Com o braço ao redor da cintura dela, Desmond guiou-a para fora do salão e dali pela escadaria. Aislin não se opunha ao gesto impudente, mas tampouco se punha a cômodo. E só foi relaxar de fato, com um suspiro de profundo alívio, quando o viu trancar a porta dos aposentos da castelã pelo lado de dentro.

— A comida estava assim tão ruim? — ele brincou, incapaz de impedir que seus olhos passeassem pelo corpo bem-feito à sua frente.

— Eu tinha me esquecido de como é estar à mesa alta do salão nobre, cercada de barulho, comentários, olhares curio­sos... Foi cansativo. — Aislin largou o corpo sobre a beirada do colchão, e por pouco as cortinas que pendiam das colunas da cama não a ocultaram por completo.

De onde estava, tudo o que Desmond conseguia ver eram a curva de um joelho e parte de um pé que se projetava abaixo da barra do vestido que ela usava. Isso, porém, já foi o sufi­ciente para deixá-lo em brasas. Aproximando-se da cama, ficou a admirá-la. Sua esposa era certamente o maior entre todos os mistérios de Sevenoaks.

— Aislin?

— Sim, meu lorde? — Ela inclinou a cabeça para trás para poder encará-lo. Seu lábio tremia.

— O que você deseja da vida? — Desmond flexionou os dedos na tentativa de resistir ao impulso de afagar aquele lábio hesitante.

Desejar da vida. Aquilo soava tão estranho que, por alguns instantes, Aislin não soube o que responder. Fazia tanto tempo que não pensava no futuro, era como se sua mente não com­preendesse aquela palavra.

— Com o que você sonha, Aislin? Que alegrias gostaria de ter na vida?

De repente ela sentiu os olhos marejarem. Piscou depressa, várias vezes em seguida, porém as lágrimas insistiam. As per­guntas haviam provocado o mesmo efeito do sal sobre uma ferida aberta.

— Não sonho com nada nem espero nada, meu lorde. Não depois de sepultar quatro maridos. A alegria não foi feita pa­ra mim.

— Mas houve um tempo em que você sonhava. Pelo que ansiava quando era garota?

Por acaso ela fora uma garota? Era difícil crer que sim. A impressão que tinha era que de bebê se transformara na viúva de Sevenoaks. Desde então, quase não houvera motivos nem oportunidades para sonhar. Talvez tivesse havido esperanças quando Theron era vivo, mas depois...

— Aislin? — Aproximando-se um pouco mais, Desmond tomou-lhe o rosto entre as mãos e depositou um suave beijo sobre os lábios agora um pouco pálidos.

Ao cabo de alguns instantes, ela admitiu num fio de voz:

— Muito tempo atrás cheguei a sonhar em ser esposa e mãe.

Desmond sentiu a respiração lhe arranhar a garganta. Não era isso o que ansiava por dar a ela?

— Deixe-me tirar as sombras da dor de seus olhos. — Enfim se permitiu um leve carinho: correu os nós dos dedos pelo rosto dela, experimentando a doce sensação da pele acetinada de encontro à rudeza de sua mão. O gesto teve o poder de lhe enternecer o coração e, de um momento para outro, toda a raiva que sentia por ter sido enganado se esvaeceu. — Confie em mim, minha esposa.

O coração de Aislin chegava a doer ao ímpeto de revelar todos os segredos de Theron. O desejo de desabafar e mostrar a seu esposo todas as notáveis e peculiares maravilhas de Sevenoaks era uma tentação muito forte. Quando Desmond a tocava, era como se ela não tivesse força nem poder para resistir. Sentir sua alma assim tão frágil e vulnerável a assus­tava. Jamais havia experimentado aquela sensação, e isso a enchia de pavor.

Mas quando Aislin sentiu-se a ponto de sucumbir, batidas secas à porta dos aposentos da castelã vieram em seu socorro.

— Sim? — respondeu Desmond. Ninguém respondeu.

Ele então foi até a porta e abriu-a num só movimento. Uma bandeja de madeira com uma taça de vinho e uma caneca de leite fresco fora deixada sobre o piso, no corredor. Desmond sorriu para si ao concluir que só podia ter sido Tom quem depositara a bandeja ali: o rapazinho era a única pessoa que sabia de suas visitas diárias às criadas encarregadas do leite.

Após tornar a trancar a porta, levou a bandeja para junto de Aislin, que saltara da cama num pulo para ir se colocar ao lado da cômoda.

— Venha, minha dama, tome um pouco de vinho. — Talvez o vinho aliviasse a tensão no rosto dela... ou a ajudasse a dizer por que estava tão tristonha.

— Você sofre de dores no estômago, meu lorde? — Aislin olhava com estranheza para a caneca de leite.

— Não, isso é para eu pagar uma velha dívida. — Desmond derramou um pouco de leite sobre a bandeja. — Venha, Pointisbright. Tome, sua recompensa. — Ao virar-se nova­mente para Aislin, pegou-a a observá-lo com uma expressão um pouco mais relaxada. Bem, talvez por meio do manhoso bichano tivesse encontrado uma maneira de começar a ga­nhar a confiança de sua dona.

Enquanto ela tomava o vinho em grandes goladas, Pointis­bright lambia seu leite.

— Aislin, venha, é hora de você se deitar. Apronte-se. Sem dissimular o quanto estava cansada, ela deu um longo bocejo. Desmond viu-se tomado de culpa por tê-la feito exer­citar-se praticamente o dia todo após passar tanto tempo tran­cada em seus aposentos.

— Venha, querida, vou ajudá-la a despir seu vestido. Você está com tanto sono que é provável que não consiga fazê-lo sozinha.

Assim que a ergueu junto ao peito para levá-la para a cama, a cabeça dela tombou sobre seu ombro e pesadas mechas dos longos cabelos macios se enroscaram em seu braço. O perfume que se desprendia da pele tão clara deixou-o zonzo de paixão. Jesus, como desejava sua esposa! E como lhe agradaria saber que ela estava disposta a dobrar-se à sua vontade...

Após deitá-la com suavidade sobre a cama, tirou-lhe os sa­patos de pele de cabrito, encantando-se com a maciez dos pés tão pequenos. No mesmo instante, uma vontade louca de beijar cada um daqueles diminutos dedos o invadiu. Incapaz de ceder ao impulso, beijou-lhe o dorso do pé enquanto corria os dedos pela perna dela até lhe alcançar o joelho. Aislin suspirou, murmurando o nome dele. Erguendo os olhos, Desmond ficou a admirá-la. Desejava-a com paixão, sim, mas não assim, entorpecida pelo sono e pelo vinho. Não via prazer em amá-la num estado de completa exaustão, sem que ela vibrasse em seus braços e retribuísse seus carinhos.

— Desmond? — Aislin tornou a suspirar.

— Estou aqui.

Então se pôs a desfazer os laços da túnica que ela usava sobre o vestido. Um ato singelo, mas capaz de lhe inflamar ainda mais o desejo. Aislin era tudo o que um homem podia querer; tinha o corpo firme, braços e pernas bem-feitos, a pele aveludada como o brilho do luar. O que mais ele podia querer, a não ser o amor incondicional de uma mulher assim?

Rangendo os dentes à paixão que o consumia, Desmond conseguiu despi-la da túnica e do vestido. Assim que a deixou em suas roupas brancas, com muito esforço obrigou-se a se levantar e manter as mãos longe dela. Poderia possuí-la, ali e naquele momento. Iria possuí-la, mesmo adormecida, se ficas­se mais um só instante naqueles aposentos.

Como alguém que fugisse de um cômodo em chamas, ele disparou para a porta e ergueu a barra que a trancava. Apesar de ter a garganta seca e todos os músculos do corpo rígidos' como pedra, antes de deixar o dormitório ainda se virou para olhar para ela uma última vez. Num sono profundo, ela tinha o rosto apoiado numa das mãos e Pointisbright aninhado de encontro à dobra de seus joelhos.

Por pouco Desmond não gemeu.

Deus, precisava sair dali antes que fizesse uma loucura.

A lua era apenas uma curva prateada no céu, o que mergu­lhava a noite em densa escuridão. Enganado pelas folhagens que ocultavam a entrada do labirinto, Desmond perdera-se duas vezes antes de encontrar o corredor de acesso ao intricado jar­dim formado pela sebe alta. E nem ao menos sabia o que iria fazer ali, já que sua donzela do labirinto se achava adormecida em seu leito.

Leito. A palavra fez o âmago de sua masculinidade latejar. Mas por mais que a desejasse, uma voz diminuta soprava em algum lugar de sua mente que jamais seria plenamente feliz enquanto não desvendasse os mistérios daquele lugar.

Custou-lhe fazer o percurso que levava ao coração do la­birinto secreto e, uma vez ali, ele foi direto para perto do relógio de sol. Enquanto passava a ponta dos dedos pela su­perfície do dispositivo, perguntou-se se o artesão mouro o teria desenhado nos moldes dos relógios como aqueles que eram feitos no Oriente. Algo naquela peça o deixava bastante intrigado, embora não soubesse dizer exatamente o quê.

Um pássaro da noite soltou seu trinado, logo em seguida outra ave o imitou. Um grilo começou a cantar, o que provocou a resposta de outros insetos igualmente barulhentos. Um par de sapos saudava a noite do brejo próximo ao fosso. Rodeado pelos sons da natureza, Desmond sentiu o corpo percorrido por uma pulsação tão antiga quanto o tempo. Lembrou-se de Aislin adormecida na câmara lá em cima. Era sua esposa, ele tinha todo o direito de possuí-la e dar fim àquela tortura.

Quero que ela confie em mim para que possa aprender a me amar. Quero que ela me peça que a faça mulher. Quero que ela me conte o que lhe assombra a alma e faz com que seus olhos se turvem de aflição.

Com um suspiro profundo, ergueu o rosto ao céu e pôs-se a contar as estrelas. Mas ainda nem chegara à segunda dezena quando, com o canto dos olhos, percebeu um clarão amarelado. Então caminhou até a fonte e dali perscrutou a noite. Outro clarão lampejou numa das janelas da fortaleza.

Uma das janelas dos aposentos do castelão.

Desmond apressou-se em refazer o percurso até a entrada do labirinto para dali retornar correndo ao castelo. Com o cuidado de não fazer barulho, galgou de dois em dois os de­graus da escadaria que levava a seu quarto, que ele havia dei­xado trancado. Então abriu a porta com a chave que trazia no cinturão.

O aposento estava escuro e deserto, mas um odor de fumaça ainda impregnava o ar. Usando da pederneira, ele acendeu uma vela. Todos os seus pertences achavam-se ali. Nada fora levado.

O que significava que o clarão fantasmagórico não era obra de algum ladrão, mas de alguém que procurava algo dentro daquele quarto. Quem? E o que estava procurando ali?


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