A dama Do Labirinto



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Capítulo IX

— Desmond! Pointisbright morreu! Despertado pelos gritos de Aislin, ele saltou da poltrona onde dormia já com a espada em riste. Parada à sua frente, com os cabelos emaranhados e os olhos banhados em lágrimas, ela tinha nas mãos o corpo flácido do grande gato alaranjado. A imagem cortou-lhe o coração como um punhal.

— Morreu? Mas, como?

Devolvendo a espada à bainha, Desmond tomou o bichano das mãos trêmulas de sua esposa para colocá-lo em cima da cômoda, depois pediu a ela que lhe providenciasse um espelho. Tão logo Aislin lhe entregou a peça de vidro, ele a aproximou do focinho de Pointisbright. Em questão de instantes forma­ram-se duas diminutas marcas enevoadas sobre a superfície refletora.

— Ele não está morto, Aislin, mas num sono profundo que se assemelha à morte. Veja, Pointisbright está respirando.

Enquanto se aproximava para examinar o espelho, ela in­dagou:

— Mas como isso foi acontecer?

— Essa, minha esposa, é uma pergunta para a qual não tenho resposta... ainda.

O salão nobre estava num alvoroço de atividade quando os recém-casados ali chegaram. Desmond pedira a ela que não contasse a ninguém o que acontecera com Pointisbright, ale­gando que o bichano devia ter se alimentado de alguma erva perniciosa, porém Aislin sabia que isso não era verdade. O vinho claro que ela tomara na véspera continha alguma porção que a fizera cair num sono quase tão profundo quanto um des­maio, e o mesmo certamente se passara com o leite que Des­mond dera a seu gato.

Mas quem teria feito tamanha maldade? E por quê? As dú­vidas lhe afligiam o coração. Seu novo marido não tinha mo­tivos para ministrar-lhe drogas que a entorpecessem... Ou teria?

Ao senti-la tão rígida a seu lado, Desmond logo calculou que sua esposa esforçava-se para conter as lágrimas e manter o queixo erguido. A cada dia que passava, mais ela o surpreen­dia. A maior parte das mulheres estaria consumindo-se em per­guntas e pesar por seu bichinho de estimação, mas não sua Aislin. Ainda bem que era assim, pois como ele haveria de lhe dizer a verdade? Como iria lhe contar que alguém nos domínios de Sevenoaks não tinha a menor dificuldade em misturar po­ções ao que o lorde e a dama da fortaleza bebiam?

— Vou pedir a Giles que vá ver Pointisbright — ela lhe sussurrou ao ouvido enquanto se acomodavam à mesa sobre o tablado. — Talvez ele saiba cuidar de animais como cuida de pessoas.

O abade já se achava à mesa alta, não mais na cadeira destinada ao senhor do castelo e sim num outro lugar. E os estu­dava por meio dos olhos apertados.

— Não, eu a proíbo de fazer isso. — Ao reparar que ela arregalara os olhos, Desmond assistiu-a a sentar-se e emendou: — Não há necessidade, Aislin. Pointisbright é forte, irá se re­cuperar; e o abade tem o cavaleiro acidentado para assistir. — Não podia dizer que seu coração se contraía de dor à hipótese de que ela estivesse em perigo. Ou que ele nada podia fazer até obter provas da autoria daqueles delitos.

— Como preferir. — Ela baixou a cabeça para dissimular a raiva.

— Diga-me, Aislin: onde Giles dorme? — Sentou-se ao lado dela. — Sei que ele passa muito tempo em Sevenoaks, por acaso tem algum aposento aqui?

— Sim, meu lorde. Os aposentos de meu primo ficam atrás da capela, assim ele pode atender o povo da fortaleza. Várias vezes eu disse a Giles para buscar melhores acomodações nos pisos superiores do castelo, mas ele alega que tem de estar à disposição de todos a qualquer hora.

— Hum.


O brilho estranho que Aislin viu nos olhos dele deixou-a apreensiva. Desde que acordara ela vinha lutando contra sus­peitas que insistiam em lhe confundir os pensamentos, porém agora não havia mais como evitá-las. Alguém havia lhe minis­trado algum preparado para dormir. Quem tivera oportunidade para isso senão Desmond? Somente seu marido poderia ter dado a poção tanto a ela como a Pointisbright. Mas, por quê? Por que ele a queria adormecida? Ou talvez a quisesse morta...

Descartou essa possibilidade. Se Desmond quisesse de fato livrar-se dela, havia uma dezena de maneiras e ocasiões insus­peitas para fazê-lo. Como quando a impedira de cair do alto da muralha depois de ela ter escorregado numa pedra solta. Não, duvidava de que seu esposo quisesse sua morte. Mas es­lava quase certa de que ele a queria fora de seu caminho... ainda que fosse por algumas horas.

Por quê? E por que Pointisbright?

Seria possível que Desmond soubesse das passagens secre­tas de Sevenoaks? Teria dado a ela alguma poção para dormir para que pudesse examinar seus aposentos e descobrir qual era o painel móvel? Ou seria algo relacionado ao labirinto?

— Meu lorde, estou sem fome. Gostaria de ir ver como está Pointisbright, se me permitir. — O que mais ela precisava na­quele momento era ir para seus aposentos e refletir sobre a surpreendente atitude de seu marido.

— Sim, faça isso — Desmond concordou, meio distraído. — Pedirei a Gwillem que lhe leve pão, queijo e frutas. Talvez seja melhor você permanecer em seus aposentos pelo restante do dia.

Com isso, ele se pôs em pé e ajudou-a a se levantar, depois lhe depositou um inocente beijo na testa e desceu do tablado para deixar o salão. Enquanto o via afastar-se, Aislin sentiu o coração partir-se ao meio. Primeiro ele lhe ditava ordens, agora a dispensava como se a presença dela fosse um desnecessário incômodo.

Desmond encontrou Tom na cozinha das carnes na compa­nhia da cozinheira.

— Bom dia, rapaz. Você me parece bem nesta manhã.

— Sim, meu lorde. O abade me deu um preparado para dormir, de modo que quase não senti a perna a noite inteira.

— Tom, esse preparado estava com você quando foi deixar a bandeja com o vinho e o leite à porta dos aposentos da dama na noite de ontem? — Desmond logo supôs que, atrapalhado com as muletas, o rapaz pudesse ter derramado por acidente um pouco da poção nas bebidas sobre a bandeja.

O olhar de Tom foi dele para a cozinheira e dela de volta a Desmond.

— Não, meu lorde. Não fui eu quem levou o vinho e o leite. Perdoe-me, mas é que tomei a poção e fui me deitar. Prometo que não tornarei a ser tão negligente.

— Não se recrimine, rapaz. Não foi nada de mais.

Então Tom não havia levado a bandeja nem providenciara para que outra pessoa o fizesse em seu lugar. Era um alívio saber que o jovenzinho era inocente, por outro lado era assus­tador saber que alguém na fortaleza se dispunha a fazer uma brincadeira tão perigosa. Mas ainda que estivesse quase certo quanto à autoria daquele jogo mortal, Desmond não conseguia perceber onde estaria o motivo que explicasse o grave delito.

Dez minutos mais tarde, na companhia de Coy e Gwillem, ele cavalgava pelas terras destinadas ao uso da comunidade e pelos campos nos arredores do castelo. O solo rico e escuro fora revolvido, e agora os agricultores se ocupavam da semea­dura. Atrás deles iam os meninos que cobriam as sementes de terra para que os pardais, as gralhas e as cotovias não as de­vorassem antes que o pequeno exército de rapazolas, armados com pedras, pudesse combater os larápios alados.

— Para um homem que tem uma esposa adorável, você me parece preocupado em demasia — observou Coy, que caval­gava ao lado dele.

— Estou bastante preocupado.

— Por quê?

— Tenho de admitir que você estava certo ao supor que houvesse um envenenador em Sevenoaks.

— Pela cruz do Cristo, eu mesmo cuidarei de arrancar a cabeça daquela mulher! Ela está pensando em ficar novamente viúva, é isso?

— Esfrie seu sangue e modere sua língua, Coy. Não é minha esposa quem se dedica a preparar poções e decocções. Na ver­dade, ela própria foi vítima de um preparado para dormir na noite passada. E a poção que era destinada a mim foi parar no estômago do gato.

Coy puxou as largas rédeas de couro. Opondo resistência ao tratamento rude, seu garanhão se apoiou nas patas traseiras e ergueu as dianteiras. Como se nem o percebesse, o leal amigo de Desmond comentou num tom apreensivo:

— Podia ter sido veneno, e não somente uma poção para dormir.

— Sim, e isso me dá calafrios. Aislin poderia estar sob o piso da capela a uma hora destas... e se não com Pointisbright, com meu corpo ao lado do dela.

— De quem você suspeita?

— Receio que o autor de tal malefício seja o abade de Tunbridge Wells. O que não consigo conceber é o motivo que o levaria a tomar essa atitude.

— O abade é uma força influente. Não se coloque contra ele antes que tenha provas irrefutáveis, ou Aislin virá a enviu­var novamente quando Henrique cortar fora sua cabeça.

— Pointisbright está se mexendo, Aislin.

Depois de dois dias num estado que se assemelhava à morte, o grande bichano alaranjado dava sinais de recobrar a cons­ciência.

— Cheguei a pensar que ele jamais fosse acordar. — Jun­tando as palmas, Aislin aproximou as mãos do rosto.

Parecia tão delicada e vulnerável, que Desmond teve ímpe­tos de tomá-la nos braços. Porém, ele se conteve. E como não pudesse compartilhar seus temores com ela para não colocá-la em perigo, disse-lhe apenas:

— Venha sentar-se a meu lado até seu leão despertar. Eu gostaria de ouvi-la falar.

Aislin pestanejou, como se não o tivesse compreendido bem.

— Falar, meu lorde?

— Sim, conte-me alguma coisa a respeito de seu primeiro marido, Theron. Fale-me sobre a edificação de Sevenoaks.

Ela hesitou, o que deixou Desmond intrigado. Seria culpa o brilho que via lampejar nos belos olhos verdes? Por que sempre que Aislin se punha a pensar seu rosto se fechava numa ex­pressão reticente? Ou seria impressão dele?

— Por que essa súbita curiosidade a respeito de Theron? — ela quis saber.

— Ele deve ter sido um homem bastante incomum. Quanto mais conheço Sevenoaks, mais me admiro com a singulari­dade de suas instalações. Theron era um homem de letras?

— Não, era guerreiro. Talvez o mouro que construiu Sevenoaks tenha deixado alguns documentos escritos, mas nunca vi Theron dedicando-se a lê-los.

Embora não soubesse muito bem pelo que procurava, ele linha a impressão de que o enigma começara com a morte de Theron... com o primeiro casamento de Aislin. O que Giles poderia querer?

— Esses documentos seriam a planta do castelo?

O rosto de Aislin perdia a cor, o que Desmond julgou bastante significativo.

— Eu... não sei — respondeu ela. — Giles guarda esses rolos de pergaminho no aposento que usa aqui em Sevenoaks. Porque pergunta?

— Eu gostaria muito de ver as plantas da fortaleza, se é que existem. Por que estão sob a guarda de Giles?

— Porque ele se hospeda no mesmo aposento em que o mouro ficava. Ou pelo menos foi isso o que me disseram. Giles não quis se desfazer de tudo o que havia por lá.

— E por que ele se instalou naquele aposento?

— Porque fica junto à capela, seria natural que meu primo o utilizasse quando está em Sevenoaks. Eu já havia lhe contado tudo isso. Por que está me fazendo todas essas perguntas, meu lorde?

— Peço que me desculpe, minha dama. Não notei que re­petia um assunto sobre o qual já havíamos conversado. — Es­tendendo o braço, Desmond afagou-lhe o rosto. — Gostaria que você não tivesse medo de mim.

Aislin afastou-se, declarando com um leve gaguejar:

— Eu não... não tenho medo de você.

— Então por que vejo receio no seu olhar? E por que você fica tão trêmula quando me aproximo? — Desmond refez a curva do queixo dela com os dedos enquanto a segurava com a outra mão. — E por que você tenta se afastar de mim, se nunca o fez quando nos encontrávamos no labirinto secreto?

— Porque... É que... Não sei dizer, meu lorde.

— Será que é porque ainda é virgem? A idéia de me entregar sua virgindade a assusta? — O dedo dele deslizou pelo pescoço de Aislin até alcançar o decote da túnica que ela vestia, para ali tentear o filete de lã do remate antes de mergulhar no sulco da junção entre os seios. — Ou existe algum outro motivo para você estremecer de medo?

— Não estou com medo. — Ela não queria dar voz aos verdadeiros temores. Desejava seu marido, mas ainda não con­fiava plenamente nele.

— Então, se não é medo o que sente, talvez você esteja ansiosa por aprender as artes do amor.

O rosto de Aislin ficou rubro. Desmond, que vinha lutando contra o ímpeto de beijá-la, reconheceu que a batalha estava perdida.

Quentes e submissos, os lábios de sua esposa inflamaram-lhe o sangue com a conflagração do desejo contido que ele aprendera a conhecer tão bem.

Aislin ofegou, mas se de paixão ou de temor ele não saberia dizer... e tampouco lhe interessava. Suas mãos ávidas encon­traram a cintura estreita, depois buscaram os seios redondos para acariciá-los por cima da túnica. Seios firmes e ao mesmo tempo tenros, pensou Desmond, sentindo o coração disparado dentro do peito e um latejar a lhe abrasar as virilhas. Céus, como a desejava! Queria deixá-la nua e lhe conhecer o corpo inteirinho. Ainda não tinha total confiança em Aislin, mas, por Cristo!, desde quando um homem precisava confiar na esposa para fazer amor com ela?

Deixando-se guiar pelos instintos, começou a despi-la de seus trajes. A túnica se foi rapidamente, seguida sem demora pelo vestido solto. Aislin murmurou um protesto quando o sentiu desnudá-la das roupas brancas, mas Desmond engoliu a queixa junto com a saliva que dividia com ela. Então interrom­peu o beijo para admirá-la.

A visão daquele corpo belo e inocente ao alcance de suas mãos roubou-lhe o fôlego. De tão clara, a pele dela parecia translúcida. A espessa cascata de longas madeixas onduladas locava os seios viçosos numa carícia que ele invejava. Com uma coloração rosada, os mamilos estavam túmidos e convi­dativos. Desmond quis tomar-lhe a virgindade e plantar nela a semente que iria se transformar em seu filho, e quando tivesse seu filho junto ao peito, ela iria amá-lo como amava a criança. Era essa a marcha inevitável do casamento.

Seus olhos foram atraídos ao portal recoberto de pêlos se­dosos onde a paixão e a virgindade dela repousavam tal qual um tesouro oculto. Louco de paixão, Desmond introduziu a mão por entre as coxas dela, num pedido silente para que se apartassem ao seu carinho. E quando sua súplica foi atendida, afagou-a de todas as maneiras e com todo o afã que o ardor que sentia lhe impunham.

— Aislin, quero você.

Ela não desviou o olhar, mas suas pupilas ficaram maiores e seus lábios se entreabriram. Parecia ter a respiração presa.

Desmond deu-se conta de que podia possuí-la sem objeções, afinal sabia reconhecer os sinais de aquiescência. Sua esposa o receberia de bom grado. Iriam se unir numa só carne, seriam uma única alma.

Era capaz, por fato e direito, de possuí-la naquele instante.

Mas não iria fazê-lo. Que um demônio o levasse, não podia fazer aquilo.

Afastou-se de sua esposa mesmo que todos os nervos e mús­culos de seu corpo de homem lhe implorassem para fazer amor com ela. Queria Aislin sim, com a febre de um desvairado, mesmo assim não iria se permitir o doce e entorpecente veneno de deitar-se com a mulher que era sua. Não antes de descobrir se ela sabia dos talentos letais de Giles, se tinha ajudado o primo de alguma maneira ou se apenas mantinha-se à surdina enquanto o abade dedicava-se a seus delitos.

— Cubra-se, Aislin — ouviu-se dizer numa voz áspera, an­tes de deixar os aposentos numa aura de abrasador desejo.

Ao ver a porta fechar-se, ela deixou escapar o ar que prendia à garganta.

— Meu marido não me deseja — murmurou para si. — Deve me achar repulsiva, com estes cabelos e esta pele tão branca.

Apesar disso ele a tocara com tanta intimidade... Desmond teria feito aquilo se não a julgasse atraente? Ou todos os ho­mens agiam assim?

Depois de se vestir, Aislin ficou olhando para o painel de madeira que ocultava a passagem de seu dormitório até os apo­sentos do castelão.

Quisera ter conhecimentos para preparar uma poção para amantes. Pois se seu lorde não fizesse amor com ela sem de­mora, acabaria morrendo de paixão não-satisfeita.

Sob a proteção do beiral de pedra, Desmond e Coy obser­vavam os movimentos de Gwillem. Aceitando a incumbência de seu senhor sem fazer perguntas, o rapaz respirou fundo antes de bater de leve com o nó dos dedos à porta de madeira rústica.

Giles, o abade de Tunbridge Wells, veio atender instantes depois. E não deixou de sondar o escudeiro com um olhar penetrante ao indagar:

— Deseja alguma coisa? — O tom de sua voz era outro, diferente da melodiosa lamentação que ele empregava durante as preces diárias, não denotava benevolência ou piedade, ape­nas impaciência.

— Eu gostaria de confessar meus pecados — disse Gwillem cm voz alta.

— Vá-se daqui. Confesse depois da prece desta noite. Estarei na capela.

— Mas não posso conviver com minha culpa até lá. — O rapaz deixou a cabeça pender para a frente num gesto dra­mático.

Coy deu uma cotovelada às costelas de Desmond como for­ma de assinalar a habilidade do jovenzinho em fingir.

— O que você fez de tão terrível? — O abade parecia um pouco mais interessado no caso.

— Envergonhei a mim mesmo furtando comida da despensa de meu lorde.

— Não é um pecado dos mais graves.

— Fiz outras coisas também. Há uma criada muito bonita na cozinha. Eu a segui e... e...

— Sim, sim, prossiga.

— Não posso. Não aqui. Tenho de me confessar na capela. É preciso que eu esteja sobre solo consagrado para que minha alma seja aliviada.

Franzindo o sobrolho, Giles lançou um olhar pela a habita­ção às suas costas, depois suspirou profundamente.

— Oh, está bem, rapazinho. Corra para lá, irei ao seu en­contro dentro de alguns instantes.

A porta fechou-se no rosto de Gwillem, que, sem perda de tempo, deu a volta à construção rumo à capela.

Pouco depois Giles reaparecia à porta da habitação. Após o abade fechá-la com cuidado, Desmond e Coy o viram apanhar o grande crucifixo de ouro do pescoço para inserir a parte mais longa da peça na fechadura da porta e girá-la. O ruído seco do mecanismo que se travara espalhou-se pelo ar. Desmond olhou para a chave que pendia de sua cintura. E de repente teve cer­teza de que não era somente a porta dos aposentos do castelão que aquele aparato conseguia abrir.

Assim que Giles se foi, ele e Coy correram à porta da mo­radia ocupada pelo abade em suas paradas por Sevenoaks. Des­mond colocou a chave dos aposentos senhoriais na fechadura, e a porta se abriu sem a menor dificuldade.

— Agora sabemos como é que ele consegue entrar nos apo­sentos do lorde do castelo — comentou Coy, erguendo uma sobrancelha.

Os dois deslizaram para o interior da habitação e fecharam a porta. Ali dentro, onde quer que se olhasse havia pilhas de pergaminhos e estantes de livros. Embora pequeno, o aposento estava longe de ser espartano: repleta de almofadas, a cama tinha cobertas de pele para dormir; o piso fora espargido com ervas aromáticas, sobre a cômoda havia um volumoso maço de velas.

— Mas, por quê? O que há no dormitório do lorde que leva nosso religioso a mentir e a colocar drogas para dormir no vinho de Aislin e no leite que ele pensava ser para mim? Talvez Giles seja mesmo culpado, mas por que fez essas coisas?

— E por que poção para dormir em vez de veneno? — Coy indagou com irritação.

Desmond ficou a examinar o livro aberto que se achava sobre uma mesa. Tratava-se de um manuscrito ricamente ilus­trado com belas iluminuras, detalhando as batalhas e os grandes feitos de um cavaleiro.

— Theron de Sevenoaks — ele murmurou enquanto corria o dedo pela escrita. — Isto aqui é um relato do período que Theron esteve na Cruzada.

— O que há nos feitos de Theron para que o abade se inte­resse tanto pelo assunto? — perguntou seu amigo.

Desmond pôs-se a folhear o livro. E de súbito ficou rígido como uma tábua.

— O que foi? O que você encontrou aí? — quis saber Coy. Algo que lance alguma luz sobre nossas dúvidas?

— Não, mas creio que possa ter descoberto o motivo pelo qual Giles vasculha os aposentos do castelão à noite. — Des­mond respirou fundo. — Parece que nosso lorde Theron trouxe do Oriente uma fortuna incalculável na forma de um tesouro pilhado. E se este relato for verdadeiro, nesse tesouro há ouro e jóias suficientes para um homem fazer-se rei por si mesmo, contra tudo e contra todos.

Em pé junto à janela, Aislin observava a movimentação à porta de Giles com o coração na garganta. Vira seu primo sair, vira Desmond e Coy ocultarem-se entre as sombras tal como ladrões para depois invadirem a habitação do abade em Sevenoaks.

Seus pensamentos se voltaram para Pointisbright. Alguém dera a ela e a seu gato uma poção para dormir.

Meu marido me dá um preparado. Por quê? O que pretende com isso? Será que meu querido Giles se acha ameaçado pelo homem que o rei ordenou que me desposasse?

Afastando-se da janela, Aislin foi até seu guarda-roupa e ali escolheu um de seus melhores vestidos, de seda azul e remates em pele de esquilo.

Desmond precisa saber que sou a castelã desta fortaleza, e que ele não pode fazer mal a Giles ou à minha gente sem que se entenda comigo.

— Ah, a cor das faces é boa. Mas ele passa muito tempo dormindo. — Inclinando-se sobre o cavaleiro acidentado, Des­mond examinou-lhe o ferimento no ombro. — Você tem cui­dado dele muito bem, Tom.

— Faço muito pouco, senhor. Giles traz as poções e as ervas, tudo o que devo fazer é cuidar para administrá-las na hora e na quantidade certas — o jovenzinho respondeu com modéstia. — O abade é um mestre na arte de curar; sua perícia cresce a cada ano.

— Você o conhece há muito tempo?

— Desde que a carroça quebrou meus joelhos. Fui levado para a abadia de Battle. Ninguém esperava que eu fosse sobreviver, mas Giles... naquele tempo ele não era abade ainda, não desistiu. Fiquei de cama por meses a fio.

— Imagino que tenha sido muito penoso para um garoto suportar tantas dores e permanecer acamado em vez de sair ao sol e ao ar fresco.

— O sofrimento não foi assim tão grande, pois o abade me dava ervas para acalmar as dores, e eu dividia minha sina com os cavaleiros que retornavam do campo de batalha. A névoa em minha mente me impedia de sentir muita dor, e eu me distraía com as histórias que os guerreiros contavam. Foi lá que conheci meu lorde Theron, quando consegui ficar em pé novamente, ele me trouxe para morar em Sevenoaks.

Naquela noite, ao entrar no salão nobre, Desmond tinha muitas idéias se revolvendo entre seus pensamentos. Giles certa­mente estava por trás do clarão fantasmagórico do qual o príncipe falara, mas seria também o responsável pela morte dos quatro maridos de Aislin? Isso não combinava com sua fama de habilidoso curandeiro. Para um homem que se dedicava a salvar a vida dos outros, o impulso assassino teria de se originar de uma causa extremamente poderosa. A avidez por um tesouro inestimável seria suficiente para movê-lo em direção à morte alheia?

Aislin confiava em Giles cegamente, isso era inquestioná­vel. O que aconteceria se ele viesse a acusar o influente clérigo? Sua esposa seria capaz de perdoá-lo?

Desmond viu-se presa de pensamentos ainda mais sombrios ao olhar pelo salão e deparar com Aislin a observá-lo. Ela se achava à mesa alta, os cabelos soltos como um manto sobre os ombros delicados. O azul reluzente do vestido que usava salientava a brancura de sua pele. Parecia que um anjo tivera a bondade de vir sentar-se ao lado dele... se não fosse pela expressão que trazia nos olhos, que era tudo menos angelical. Era evidente que ela estava furiosa e fazia questão de de­monstrá-lo. Mas se aquele ar aguerrido tinha por objetivo in­timidá-lo, o propósito não fora alcançado, pelo contrário, fizera os pêlos dos braços dele se eriçarem e seu coração disparar à onda de desejo que o acometia. Mas Desmond sabia que só um tolo iria se permitir doces momentos de prazer quando ela podia estar inteirada dos delitos de seu primo Giles.

A intenção de Aislin era tanto mostrar-se segura e resoluta como deixar Desmond ciente de sua autoridade como castelã daquela fortaleza enquanto ela tentava descobrir em que traquinice seu marido estava envolvido. Mas agora que ele se aproximava, com a túnica a lhe moldar os ombros largos como uma segunda pele e as pernas musculosas a flexionarem-se e distenderem-se a cada passada, não podia ignorar o quanto es­tava contente por revê-lo.

— Minha dama, você parece bem-disposta esta noite. — Desmond acomodou-se ao lado dela com o coração aos saltos, uma forte ereção e a impressão de que aquela refeição seria uma das mais longas de toda a sua vida.

— E você, meu lorde, também se sente bem-disposto? — Aislin tratou de ignorar o arrepio que lhe percorreu o corpo quando ele tocou-lhe a mão sem querer. Não podia baixar a guarda. — Você esteve bastante atarefado neste dia, meu lorde, passeando por Sevenoaks, abrindo portas, vasculhando coisas...

Desmond examinou o rosto dela atentamente, depois deu um sorriso arguto.

— Há muito que descobrir em Sevenoaks, Aislin, e muitas verdades ocultas, como nós dois bem sabemos.

— É você quem diz, meu lorde. — Para manter as mãos firmes, ela as colocou sobre a mesa. Desmond escolhera as palavras com tanto cuidado porque tomara conhecimento das passagens secretas, ou porque sabia que ela o vira invadindo a habitação de Giles?

— É bom que estejamos de acordo logo no início de nossa união. Isso faz com que o tempo que passamos juntos seja mais prazeroso.

— E você pretende retornar aos aposentos do castelão esta noite?

Desmond pousou uma das mãos sobre o ombro dela. Com sensação de que engolia fogo líquido, Aislin sentiu os seios retesados e rijos de excitação. Não era fácil ignorar o efeito que isso tinha nela.

— Não, esposa. Passarei esta noite, e muitas outras, no seu dormitório.

— Ah, é sempre uma alegria saber que o júbilo e a satisfação marital vicejaram no leito nupcial — observou Giles ao sentar-se perto deles. O sorriso do abade parecia sincero. — Brin­demos a que sua felicidade ao lado de minha prima seja dura­doura, meu lorde.

Tomando de um jarro, o clérigo despejou vinho nas taças do lorde e da dama. Desmond ficou olhando para o líquido de aspecto aveludado... que podia conter veneno ou poção para dormir. E ainda pensava em que atitude tomar quando Coy, fingindo ter escorregado da cadeira, foi ao chão agarrado à toalha de mesa. Ambas as taças tombaram, e o vinho que con­tinham se espalhou em extensas nódoas, tingindo de rosado o linho branco da toalha.

— Ah, Coy!... Desastrado como sempre. — Desmond re­tribuiu o gesto do amigo com um sorriso de gratidão e uma piscadela.

Aislin protelou deixar o salão nobre o quanto lhe foi possí­vel. Mas quando ali só restaram seu marido, Giles e ela, reco­nheceu que era hora de se retirar.

Desmond assistiu-a a se levantar, depois lhe disse:

— Irei encontrá-la em seus aposentos sem demora.

O olhar que ele lhe dirigia fez o sangue dela gelar. Incapaz de articular uma só palavra, Aislin cuidou de fugir dali o mais depressa que pôde. Não eram modos próprios de uma dama, porém isso pouco importava. Precisava chegar ao refúgio de seu dormitório para tentar se recompor.

— Ele vai querer manter relações carnais comigo esta noite e, como sua esposa, terei de me submeter — disse consigo mesma enquanto subia a escadaria num passo acelerado. — Não era assim que eu queria que fosse. Jesus, sei que sou uma boba, mas eu queria o respeito, a confiança e a afeição de Desmond.

— Sua esposa parecia uma corça que se descobre sob a mira de um arqueiro ao deixar o salão nobre — comentou Coy com um sorriso ao apartar-se das sombras para ir ao encontro de Desmond perto do muro que ligava dois pontos de observação. Ela se comporta mais como uma virgem indecisa do que como uma mulher quatro vezes viúva.

Desmond nada disse. Seu amigo então o olhou com um ar de pasmo.

— Pela Cruz Sagrada! Não pode ser verdade, mesmo assim Vejo claramente nos seus olhos... Você ainda não consumou o casamento.

— Nenhum homem o fez. — Desmond pôs-se a brincar com o gume de seu punhal. ― Aislin é virgem.

— Como isso é possível? Quatro maridos antes de você... como é possível?

Antes que Coy percebesse que ele ardia de desejo por sua virginal esposa, Desmond tentou esclarecer:

— Isso é parte do mistério que domina este maldito lugar. Todos os quatro maridos morreram antes de manter relações carnais com ela.

— Se foi por veneno, devem ter tomado a dose bem antes que o casal subisse ao segundo piso do castelo. Isso é algo para se pensar, meu amigo.

— Sim, Coy, precisamos pensar com calma em todas as possibilidades. É possível que a cozinheira se lembre dos pratos que foram servidos em cada um dos banquetes, o despenseiro deve se lembrar do vinho.

— Vou inquiri-los assim que amanhecer.

— Sim, mas esta noite posicione-se nas proximidades da capela e não saia de lá. Depois que minha esposa adormecer, vou vigiar as janelas dos aposentos do castelão para ver se nosso amigo dá prosseguimento às buscas. Amanhã trocaremos as informações que obtivermos.

— Depois que ela adormecer? Isso quer dizer que você não pretende...

— Seu nariz está ficando muito comprido e se metendo onde não é chamado, Coy, cuide para que ele não se intrometa em meus assuntos, ou terei de apará-lo para você. — Desmond devolveu o punhal à bainha, depois ergueu os olhos aos apo­sentos da castelã. A claridade de uma vela que escapava pela janela teve o poder de lhe incendiar as virilhas.

Vestida com suas roupas brancas, Aislin tinha os olhos fixos na bandeja em cima da pequena mesa. Aos chegar a seus apo­sentos, encontrara a bandeja à sua espera do lado de fora da porta. Com uma taça de vinho branco, seu preferido, e uma caneca de leite fresco.

— Ele pretende me dopar novamente. Jesus, que espécie de covarde é esse homem, que me quer desacordada para fazer amor comigo? — murmurou consigo, correndo o dedo pela borda da caneca de leite. — Não sei o que me assusta mais: ser drogada ou ser possuída.

O medo deu lugar à raiva, que deu lugar à indignação. Não, ninguém a doparia. Nem manteria relações carnais com ela. Não naquela noite, ou noutra noite qualquer, enquanto não es­tivesse pronta para isso.

Um ruído a fez virar-se. E lá estava ele, o lorde seu esposo. Viril demais, belo demais... e traiçoeiro demais.

— Aislin? — A voz dele era profunda e agradável aos ouvidos, tal qual o ronronar de Pointisbright. — Espere-me na cama.

— Não, meu lorde.

O olhar de Desmond resvalou pela bandeja antes de ir se demorar sobre a mão dela junto à caneca de leite.

— Como preferir, sou um homem paciente. Dividiremos uma taça primeiro?

— Se for de seu agrado... — O coração de Aislin ameaçava partir-se. Por que ele agia assim? Desejava-a ou não? Ou a queria dopada por algum motivo ainda mais difícil de entender?

Desmond concluiu que a expressão no rosto de sua esposa era inescrutável. Havia nela um quê de melancolia e de fra­gilidade que lhe falava à alma. Porém havia também um laivo de rebeldia, de desafio. Seria quanto ao fato de fazerem amor? Aislin pretendia lhe dar uma poção para evitar que ele a possuísse?

Não queria pensar nessa possibilidade, no entanto lá estava i mão dela, o dedo longo e delicado a deslizar sem pressa pela borda da caneca de leite. Talvez ele tivesse chegado no mo­mento em que Aislin colocava algum preparado na bebida.

Após tomar a caneca entre os dedos, ela ofereceu:

— Beba seu leite, meu marido.

Então Aislin realmente acreditava que ele gostasse de leite fresco... Aproximando-se, Desmond ergueu a taça.

— Só se você tomar seu vinho.

Trocaram as bebidas. E ficaram os dois ali, fitando-se em aflitivo silêncio, o ar ao redor permeado por uma promessa não-dita. Ele viu os lábios de sua esposa prepararem-se para dizer alguma coisa, e desejou ardentemente que ela pusesse em palavras o que lhe ia pela mente.

Mas Aislin não o fez.

Ela tinha a mente num torvelinho de idéias e o corpo tomado por espirais de tensão sensual que se irradiavam como ondas de abrasadora quentura, o que a impedia de raciocinar com clareza. No final das contas, a única conclusão que conseguiu formular foi um tanto desanimadora: se tomasse daquele vinho ficaria sem ação e Desmond assumiria o controle de tudo, a começar pelo corpo dela.

— Dê-me licença por alguns instantes, meu marido. — Cor­rendo para trás da parede que separava o dormitório das ins­talações sanitárias, Aislin despejou todo o conteúdo da taça na cova que se ligava à fossa do castelo. O alívio de ver-se livre da bebida corrompida pela poção foi tão grande, que ela se encostou à parede de pedra lavrada para esperar que seu cora­ção voltasse ao ritmo natural.

Assim que Aislin sumiu atrás da parede, Desmond abriu o trinco da janela e despejou o leite pela muralha, tendo o cuidado de certificar-se de que o líquido cor de neve desaparecia ino­fensivamente por entre o líquen e o musgo lá embaixo.

Não serei enredado pela beleza dela, tampouco pregarei os olhos esta noite. Minha esposa não terá como me envenenar se eu não tomar as poções que ela me der.

Ao retornar aos aposentos Aislin segurava a taça junto aos lábios, como se tomasse o restante do vinho.

Enquanto ela ia deixar o cálice sobre a bandeja, Desmond tirou a túnica e arremessou-a de encontro a um banco. Decidido a aparentar que estivesse sob o efeito de alguma poção, ele então fingiu ruidoso bocejo, deixando-se cair sobre a poltrona em que dormia desde a celebração do casamento. Após passar as mãos pelos cabelos, pestanejou por alguns instantes como e lutar contra o sono, até dar a impressão de render-se e enfim fechar os olhos. Talvez o mais difícil de tudo aquilo fosse deixar o corpo lasso e lânguido sob o olhar que, sabia, sua esposa lhe dirigia.

Ao imaginar que ele tivesse pegado no sono, Aislin deixou escapar um suspiro aliviado. Era tão bom ter a liberdade de admirá-lo! Com olhos ávidos, estudou-lhe o torso firme e sem gorduras, a cicatriz à altura das costelas mais baixas e outras tantas menos pronunciadas. Ainda que tivesse o semblante de um anjo enquanto dormia, seu marido trazia no corpo as marcas do um autêntico guerreiro.

Mas... Desmond realmente estava dormindo? Ou apenas fin­gia? O embusteiro! Se de fato colocara algum preparado para dormir no vinho dela, então estava fingindo, à espera de vê-la sucumbir à droga que lhe ministrara.

Ele se moveu.

Aislin correu a deitar-se sem se preocupar em despir o ves­tido e os chinelos, uma vez que isso o faria pensar que a poção no vinho apossava-se dela rapidamente. Fechando os olhos, obrigou-se a respirar de um modo calmo e profundo.

Desmond a observava através das pálpebras semicerradas. Aislin ficara olhando atentamente para ele por um bom tempo e então, de um instante para outro, lançara-se à cama e ali permanecia sem se mexer. Era muito pouco provável que sua dama tivesse tomado uma poção para dormir por iniciativa própria, de modo que só lhe restava supor que a rapidez com que ela se deitara devia-se à exaustão.

Para não pensar na vontade que tinha de acomodar-se junto dela e possuí-la até o romper do dia, cerrou as pálpebras e pôs-se a contar as batidas de seu coração. Ao cabo de alguns instantes, percebendo que Aislin continuava imóvel, abriu os olhos e levantou-se sem fazer barulho. Após tornar a vestir a túnica, encaminhou-se para a porta e deixou os aposentos. Sem olhar para trás, para não se arrepender.

Assim que ele se foi, Aislin sentou-se sobre o colchão. O velhaco... o traiçoeiro... o torpe! Como ousava lhe dar poções e decocções e depois fingir que dormia? Como ousava deixá-la sem sentidos para depois abandoná-la?

Pondo-se em pé, ela correu a enfiar a mão sobre o aparador que escondia a argola de ferro. Em questão de segundos, o painel diante da passagem secreta começou a se mover.

Embora tivesse ficado de encontrar Coy na estrebaria, Desmond descobriu-se fazendo um outro percurso, com o qual estava bem mais familiarizado. Precisava pensar, precisava or­denar as idéias e chegar a uma conclusão a respeito do episódio com a taça de vinho e a caneca de leite. A solitária quietude do labirinto o atraía para lá, pois só naquele lugar ele desfrutaria da paz necessária para tentar encontrar uma resposta aos pro­blemas que tinha por resolver.

Ao chegar ao coração do jardim secreto, foi direto para jun­to do relógio de sol que, com suas marcações inusitadas, não poderia se achar num outro local que não aquela fortaleza to­mada de intrigas e desconfianças. Custava a crer que fosse Aislin a responsável por tentar dopá-lo naquela noite. Caso contrário, ela própria não teria tomado o vinho que a fizera desabar sobre a cama. Mas então quem havia colocado poções em suas bebidas?

Perdido em pensamentos, caminhou sem pressa até o muro coberto por espessa videira e ali ficou, a brincar com uma folha entre os dedos, até que um ruído o fizesse retesar-se de encontro a folhagem. Curioso, ele se pôs a examinar a parede de pedra sob a planta, compacta e de aspecto bastante sólido... e então viu que, a pouca distância de onde se achava, havia uma porta. Uma porta encravada entre as pedras, grande o bastante para dar passagem a uma montaria e seu cavaleiro... que se abriu mansamente para um vão escuro dentro da parede... de onde surgiu a encantadora Aislin de Sevenoaks. Dali ela se virou para tocar alguma coisa, tornando a fechar-se, a porta desapareceu com um leve ruído de atrito entre as rochas.

Desmond ocultou-se entre as folhagens. A fé que tinha na integridade de caráter de Aislin estilhaçou-se como um vidro de má qualidade. Bem-disposta e com os olhos reluzentes, ela parecia tudo, menos a vítima involuntária de uma poção para dormir. Sua adorável esposa fingira que estava dormindo, e se linha alguma dor na consciência por tê-lo enganado, não o demonstrava.

Altiva e serena, Aislin caminhou pelo jardim, detendo-se aqui e ali para aspirar o perfume de uma flor. Bela como nunca com a claridade do luar a lhe delinear o rosto e a misturar-se entre seus cabelos soltos, ela cantava baixinho com os lábios fechados enquanto passeava calmamente pelo coração do labirinto. Quando terminou uma volta completa pelo terreno, vol­tou para junto do muro e ali fez sua mágica de fazê-lo lhe dar passagem, para então desaparecer do mesmo modo misterioso como havia surgido.

Desmond foi atrás dela. Correndo as mãos sob a folhagem, sentiu sob as palmas que havia letras gravadas nas pedras, parte delas meio encobertas por líquen e musgo. Ao tatear as letras, percebeu que formavam palavras, mas estava escuro demais para que pudesse enxergá-las. Abaixo da inscrição ele encon­trou uma argola de ferro.

— Voltarei aqui à luz do dia, Flor Venenosa. Desvendarei os segredos de Sevenoaks um a um, até que seja você o único mistério que me resta elucidar. Juro pela minha honra de ca­valeiro.

Coy andava de um lado para outro diante da estrebaria e, ao ouvir ruído de passos aproximando-se, não hesitou em sacar do punhal.

— Guarde sua arma, velho amigo. — Deixando as sombras, Desmond caminhou até ele. — O que foi que você viu?

— O abade deixou a habitação atrás da capela com um rolo de pergaminho na mão.

— E de alguma maneira conseguiu entrar nos aposentos do castelão, pois vi o clarão de uma vela refletido na vidraça da janela.

— Quisera eu que pudéssemos ver através das pedras para saber o que ele faz lá dentro, pois cada vez mais me convenço de que quatro homens perderam a vida por conta disso. — Coy fez um muxoxo. — Mas sinto que há algo além do astucioso clérigo a preocupar você, Desmond.

— Você me conhece bem demais. — Desmond fez uma careta antes de confessar: — Receio que minha esposa esteja enfiada até seus belos olhos nesta trama. Sou o único homem que a desposou e não veio a morrer. No quê meu casamento foi diferente dos demais?

— O rei, o príncipe e o carrasco real estavam presentes. — Coy deu uma risadinha marota.

— Sim, e o rei ordenou que eu conduzisse minha noiva aos aposentos nupciais logo após a celebração. Nem ela nem eu participamos do banquete ou dos brindes. E tendo ido para o dormitório de Aislin, eu deixei os aposentos do castelão vago.

— Amanhã irei falar com a cozinheira e tentar descobrir o que os quatro falecidos comeram na noite do casamento e quem esteve presente à celebração.

— Sou capaz de apostar que o abade fez o último brinde a todos aqueles bons e leais cavaleiros, Coy.

— Mas isso seria suficiente para levarmos o caso ao rei?

— Não. Vamos precisar de mais, muito mais, para desafiar o abade de Tunbpdge Wells perante o tribunal de Henrique e seus conselheiros. E eu queria saber como é que minha esposa pode beber da mesma taça que seus finados esposos e não morrer.


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