A herança maldita de fhc – Sérgio Miranda o fmi foi co-gestor da economia do país no último mandato de fhc, que deixou o país quebrado, a inflação alta e o futuro comprometido pela ruína da infra-estrutura, como estradas e energia elétrica



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Desemprego

Desemprego e baixo rendimento salarial sem dúvida marcaram a última década, sobretudo no interior do país e nas periferias das grandes cidades. A cidade de São Paulo, responsável por 15% do PIB nacional, sentiu o baque da abertura da economia, das políticas de incentivo fiscal e da estagnação no ritmo de crescimento. A taxa de desemprego na cidade passou de 8,9% em 1989 para 17,6% em 2001. O número de domicílios pobres paulistanos subiu 19,6%. Uma visita à chamada “Zona Sul 2” de São Paulo ajuda a entender a questão social no país. A região abriga bairros sempre pontilhados de favelas, mas considerados de classe média e remediados. E reúne também distritos como Parelheiros, Jardim Ângela, Capão Redondo, Grajaú, Jardim São Luís e outros onde o aumento do número de domicílios pobres entre 1991 e 2000 foi maior do que o aumento médio na cidade. No Jardim Ângela, por exemplo, o número de domicílios pobres cresceu 103% – de 9.940, em 1991, para 20.173, em 2000 – e o aumento populacional no período foi de apenas 36,7%. Em Parelheiros, o aumento do número de lares pobres foi de 167,7% (de 3.418 para 9.148) e o crescimento da população de 84,4%. Capão Redondo teve 42,1% de aumento no número de lares pobres e o Jardim São Luís, 51,5%, com crescimento populacional no mesmo período, entre 1991 e 2000, de 25,3% e 16%, respectivamente.

A Associação dos Moradores do Jardim Comercial (AMJC), no Capão Redondo, representa a tábua de salvação para muitas famílias do bairro. A Associação concentra ações sociais e a distribuição de benefícios dos governos estadual e municipal. Do governo federal, a diretoria da Associação conseguiu apenas uma bolsa do Peti. Em conjunto com a prefeitura, a Associação abriga o Espaço Gente Jovem, que oferece recreação e alimentação para cerca de 250 crianças, de 6 a 15 anos. A creche, também em convênio com a prefeitura, atende 60 crianças. Cerca de 80% dos meninos e meninas matriculadas dependem completamente das refeições na creche. A Associação faz também a distribuição do programa Leve Leite da prefeitura (2 litros de leite, distribuídos duas vezes por semana, para 300 famílias) e da cesta básica, do governo estadual – 100 famílias. A AMJC cadastrou a população que pleiteava receber os benefícios sociais. É claro que a demanda foi bem maior do que a oferta e muita gente ficou de fora.

Guerra Social

A família de José Joaquim da Silva é uma das que dependem da ajuda governamental. O motivo principal da penúria é o desemprego. Falta emprego para José e para sua mulher, Ana. Há mais de 12 anos, ele não tem a carteira de trabalho assinada. Antes teve registro de empregos na construção civil e em restaurantes. José Joaquim chegou no Jardim Comercial em 1987, quando a favela onde mora estava sendo formada, sobre um terreno que minava água. O povo foi fazendo aterros, levantando os barracos e hoje a casa de alvenaria de poucos cômodos abriga ele, a mulher e 4 filhos de 5 a 14 anos. A família é beneficiada com cerca de 200 reais do programa Renda Mínima da prefeitura municipal, que exige a freqüência das crianças na escola. Dona Ana também recebe o Leve Leite – a filha Jaiane ainda tem 5 anos. Devido à grande demanda, as famílias podem perder a ajuda quando houver uma nova avaliação dos programas ou quando as crianças ultrapassarem a idade limite. “Quando acabar, acabou”, diz José Joaquim, que sabe que a única saída é encontrar trabalho, pelo menos uns bicos com mais assiduidade. “Trabalho em construção por aí durante um mês, ganho uns 300 reais, mas depois fico dois parados. Pego a bicicleta e vou até Santo Amaro, Pinheiros, buscando serviço. No caminho fico fazendo muito parafuso que não cabe em nenhuma porca: você sabe, muito pensamento para nenhuma solução”.

O cemitério municipal São Luís, que atende toda a periferia sul da cidade, representa uma cicatriz da violência na região. Grande parte das vítimas de homicídios, que marcaram os bairros do entorno na última década, jaz naquele local. Não há números exatos, estatísticas precisas, mas estimativas de funcionários indicam que o serviço funerário público já chegou a realizar de 40 a 50 sepultamentos por dia – mais da metade, vítimas de mortes violentas. Há também relatos de histórias impressionantes acontecidas dentro dos muros do cemitério, como a invasão de um velório por um bando para confirmar o destino do rival morto. Para não haver dúvidas, um revólver foi descarregado sobre o caixão. Entre a população dos bairros próximos corre a história de que bandidos pedem às famílias para não serem enterrados ali, caso venha a fatalidade. Dizem que mesmo depois de morto, o cidadão não tem descanso naquele cemitério, vulnerável à ação de bandidos e vândalos.

O estigma do cemitério já chegou às “pessoas de bem”. No portão de entrada do cemitério, Evelyn se empenha para vender túmulos aos visitantes. Os jazigos à venda, por meio de plano funerário com prestações comparáveis às de um plano de saúde simples, são de um cemitério particular não muito longe dali. Segundo a vendedora, as famílias de mortos enterrados no São Luís não têm sossego. “Quando chove tem até risco dos ossos serem levados pela enxurrada. Além disso, sempre pode entrar alguém e fazer mais uma maldade ao morto”, diz. Seu próprio pai esteve enterrado ali, também vítima de “morte matada”, em 1995. “Foi morto quando chegava em casa em uma noite de carnaval”. Evelyn, evangélica, dá graças a Deus que sua família conseguiu comprar um jazigo e removeu os restos do pai e de sua avó para o cemitério particular.

Hoje, afirmam os administradores do São Luís, o local está mais bem cuidado e o número de enterros caiu muito, variando de 10 a 15 por dia. Mesmo assim, a metade continua sendo de enterros de vítimas por morte violenta. Muitos moradores preferem creditar a diminuição dos enterros à diminuição da violência na região. A população faz questão de dizer que há muita imprecisão no noticiário que insiste em apontar os distritos de Jardim Ângela, Jardim São Luís, Capão Redondo, Parelheiros como os mais violentos da cidade. No caso do Capão Redondo e em outros 4 distritos da “Zona Sul 2” realmente os números de mortes violentas variou para baixo, se comparado 1991 com 2000. No Capão foram de 180 mortes a 173. No distrito de Campo Limpo, o número coincidiu em 116 nos dois anos. No entanto, em outros 8 distritos da região houve a alta nesse índice e a soma total das estatísticas de mortes violentas no total de 14 distritos resulta em 1.469 mortes em 1991 e 1.781 em 2000.

Ausência de Estado

Nesse período, São Paulo passou de 6.209 mortes violentas para 7.147. A taxa de homicídios geral no país subiu de 21 mortes para 100 mil habitantes em 1990 para 27 mortes por 100 mil habitantes em 2000. Em Minas Gerais, a explosão da violência foi ainda mais significativa. Entre 1991 e 2000, a quantidade de homicídios aumentou 76%, passando de 1.227 para 2.165 assassinatos por ano. Do total de crimes violentos ocorridos no Estado em 1991, a região metropolitana de Belo Horizonte respondia por 44%. Em 2000, a capital passou a sediar 61% dos homicídios mineiros.

No mesmo período houve sobretudo o aumento da vitimização de jovens e adolescentes. No Brasil, no ano 2000, foram assassinados 17.662 jovens entre 15 a 25 anos. A mortalidade média nacional para os jovens nessa faixa de idade foi de 52 por 100 mil. A média da cidade de São Paulo, foi de 139 mortes por 100 mil jovens. Mas como as mortes não atingem de modo igual as diversas camadas sociais, na Vila Mariana, bairro de classe média da capital paulista, a média foi de 22 para 100 mil jovens; em Capão Redondo, foi de 298; e na cidade Dutra, outro bairro pobre da capital paulista, foi de 441 – taxa quatro vezes a média paulistana, quase dez vezes a média nacional e 20 vezes maior que a taxa da Vila Mariana.

Em todo o país a mortalidade entre os jovens disparou de 35 mil para 52 mil entre 1990 e 2000, um aumento de quase 50%, que levou o Brasil a subir para a condição de terceiro pior país do mundo nesse aspecto – acima do Brasil estão apenas a Colômbia e Porto Rico.

A ausência do Estado na periferia, pode-se dizer, é uma das causas centrais da violência. A falta de acesso à saúde, ao lazer, à cultura e ao trabalho faz aumentar a violência, particularmente entre os adolescentes, que atravessam o período da vida de maior turbulência e são mais propensos a se envolver com a vida breve, mas com algum dinheiro, oferecida pelo narcotráfico.

Levantamento feito pelo Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp), órgão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), indica que quase 25% dos crimes violentos ocorridos em vilas e favelas estão ligados ao tráfico de drogas e seus conseqüentes “acertos de contas”. Nas seis favelas mais violentas de Belo Horizonte, as taxas de homicídios chegam a ser sete vezes maior que em um bairro de classe média. No Morro das Pedras, por exemplo, entre março e julho de 2002, ocorreram 99,72 homicídios por 100 mil habitantes. Na cidade, exlcuindo-se os crimes das seis regiões dominadas pelo narcotráfico, o índice foi de 12,08 no mesmo período.

O governo FHC, é claro, não criou esse problema. Entre 1980 e 1990 esses índices também cresceram. Mas em ritmo menos acelerado: a mortalidade por homicídio entre os jovens no período, por exemplo, foi de 30 para 35 para cada grupo de 100 mil. Mas a responsabilidade dos dois governos FHC fica evidente diante de um estudo feito pela Secretaria do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo, que demonstra que a violência acompanhou de perto o aumento da pobreza. A variação média anual no número de mortes violentas na cidade foi de 2,4%, entre 1994 e 2000, enquanto a variação média anual na quantidade de chefes de domicílios pobres esteve em 2% entre 1991 e 2000.

Há sete anos, uma procissão no dia de finados reúne milhares de pessoas de toda zonal sul de São Paulo que convergem em caminhada até o Cemitério São Luís. A Caminhada da Paz, organizada pelo Fórum de Defesa da Vida, formado por vários movimentos sociais da zona sul, foi um jeito que a população encontrou para expressar sua dor e indignação com os altos índices de violência e, porque não, com os altos índices de exclusão social. É justo que as comunidades queiram se livrar do estigma da violência e, sobretudo, da violência decorrente da exclusão. Os distritos da região sul concentram mais de 400 entidades de moradores organizados num sinal inequívoco da vontade das comunidades. No entanto, como afirma Vera Neves, do Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo – que tem entre suas atividades a missão de formar e orientar lideranças comunitárias –, por mais que a população se organize, por mais que os governos dêem programas sociais como esmolas aos pobres, o ritmo acelerado com que a exclusão vem englobando as famílias já empobrecidas é o que vai determinar o agravamento da verdadeira guerra social que dizima a juventude pobre de extensas áreas urbanas do país.

E se Fernando Henrique não é o responsável pelo surgimento desse problema, foi nos seus dois governos que se viu o agravamento dessa guerra social, que dizima a juventude pobre, sem que nenhuma grande iniciativa fosse feita para combatê-la. Não se trata de um problema de fácil solução. A consolidação da pobreza, da violência e da desesperança dos jovens em extensas áreas pobres dos maiores centros urbanos é, com certeza, uma das maiores dificuldades para um novo governo que queira efetivamente mudar o país.

Democracia plena, para o grande capital

FHC foi responsável por 34 alterações na Constituição e assinou 5.300 Medidas Provisórias. O paralelo com os decretos-lei dos militares é inevitável.

O chanceler alemão Otto von Bismarck disse que os cidadãos não poderiam dormir tranqüilos se soubessem como são feitas as salsichas e as leis. No Brasil, a afirmação procede, pois grande parte da legislação tem sido elaborada por um método prussiano, por meio de Medidas Provisórias – semelhantes aos decretos-lei dos militares, que têm valor legal a partir da data de sua edição e, até setembro de 2001, podiam ser reeditadas quantas vezes fossem necessárias para atender à vontade do presidente da República.

Quando foram delineadas na Constituinte de 1988, as Medidas Provisórias eram vistas como instrumentos excepcionalíssimos, a serem usados em situações de extrema gravidade. A Constituição colocou como requisitos à sua edição a urgência e a relevância da matéria. A banalização dessas Medidas tirou qualquer significado a esses requisitos. “Urgente” e “relevante” passou a ser o que o chefe do Executivo quisesse. Para completar, o Supremo Tribunal Federal endossou essa interpretação.

O abuso na edição de MPs foi tal que, em fins de 2001, as regras foram mudadas para coibir sua proliferação. Desde sua criação, em 1988, até 11 de setembro de 2001, data da promulgação da Emenda Constitucional (EC) nº 32, que alterou as regras de emissão, foram editadas 700 MPs originais e feitas 5.572 reedições. Algumas MPs foram revalidadas mais de 70 vezes, como é o caso da MP 2.074-73, que complementa dispositivos do Plano Real. Como praticamente toda reedição mudava a anterior, deve-se contabilizar para cada presidente suas edições e reedições.

Comparando as médias mensais de MPs e suas reedições, FHC é, de longe, o campeão no seu uso e abuso: José Sarney editou 6,13 por mês; Fernando Collor, 5,22; Itamar Franco, 18,8; Fernando Henrique, no primeiro mandato, 38,74 e, no segundo, 81,51 medidas por mês.

Edições sucessivas

Até a EC-32, o presidente da República podia editar MPs para legislar sobre qualquer assunto. Se não fossem votadas no prazo de 30 dias, poderiam ser reeditadas indefinidamente, com as mudanças que o presidente quisesse, configurando, assim, um sistema legiferante completamente extravagante e praticamente à margem do Congresso Nacional. Um exemplo disso é a MP 1.669, de 19 de junho de 1998. Ela foi editada com a seguinte ementa: “altera a Lei 9.649, de maio de 1998, que dispõe sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, e dá outras providências”.

A MP foi reeditada sucessivamente, com um novo número a cada 30 dias. A alteração na sistemática das MPs fez com que passassem a ser reeditadas com o mesmo número, seguidas de dígitos informando a quantidade de reedições. Nessa nova sistemática, a MP 1.669 mudou para o número 2.225 e foi reeditada 45 vezes (2.225-45) antes de ser convertida em lei. A regra deveria ser a reedição nos mesmos termos do texto original, apenas com as alterações necessárias ao decurso de tempo. No entanto, não foi isso que aconteceu. Nessas sucessivas reedições, a medida foi profundamente alterada.

No original, a MP 1.669 criava órgãos de prevenção e repressão ao narcotráfico e ao tráfico de outras substâncias ilícitas e organizava o Sistema Nacional Antidrogas. Numa de suas reedições foi incluída, de contrabando, matéria sobre os servidores públicos em geral. A MP 1.669 continha sete artigos, na sua última reedição, como MP 2.225-45, trazia 15, mais do que o dobro.

Em suas sucessivas reedições, além do Sistema Antidrogas, regulou também a reversão de servidores aposentados à atividade, débitos, reposições e indenizações de servidores ao erário, licenças para trato de interesse particular, vantagens pessoais, normas processuais relativas à ação de improbidade administrativa nos tribunais, quarentena de ministros e de servidores de Direção e Assessoramento Superior (DAS), reajuste de vencimentos de servidores e outros.

É sintomático que a maioria dessas normas restringiam direitos tradicionais dos servidores públicos. Na última reedição, por exemplo, a MP revogou o art. 26 da lei 8.112/90, extinguindo o adicional por tempo de serviço, devido à razão de 1% por ano de exercício do serviço público e incorporado a cada cinco anos à remuneração dos servidores. Essa alteração não poderia sequer ser feita por MP, uma vez que o art. 246 da Constituição Federal veda a regulamentação por meio de medida provisória de matéria que tenha sido alterada por Emenda Constitucional. Foi o caso dos arts. 37 e 39 da Constituição, alterados pela EC-19. Os dois artigos dispõem sobre o sistema remuneratório dos servidores públicos, do qual é parte o adicional de tempo de serviço. Portanto, na época em que foi reeditada, posterior à EC-19, a MP não poderia sequer tratar desse adicional.

Outro efeito daninho das medidas provisórias foi o caos jurídico. A cada mês, a reedição trazia novidades em relação à sua versão anterior. Como no caso citado, algumas alterações implicavam no acréscimo de assuntos que não guardavam a menor relação com o texto original. Isso aconteceu também com a esdrúxula MP 2.077, de 2001, que reeditava matéria sobre auxílio-transporte e, de quebra, alterou a data de pagamento dos servidores para o primeiro dia do mês seguinte – a intenção foi repassar a folha de dezembro para o outro exercício financeiro e garantir um superávit primário nominal.

Foi por MP, também, que o governo FHC tentou, por duas vezes, implantar a inconstitucional e vergonhosa cobrança previdenciária incidente sobre os proventos dos aposentados, matéria que foi derrotada judicialmente e, excepcionalmente, também no Congresso.

As medidas provisórias impuseram ao Congresso Nacional a pauta do Executivo. Tornou-se comum o atropelo da tramitação de projetos de lei, pela superveniência de medida provisória sobre o mesmo tema. O governo tornou-se o grande legislador, usurpando as funções do parlamento.

Para os operadores do direito, juízes, membros do Ministério Público e advogados, tornava-se cada vez mais difícil acompanhar a verborragia legislativa do Executivo. Era praticamente impossível dizer que normas estavam em vigor, quais novos institutos jurídicos tinham passado a valer e quais diplomas legais tinham sido revogados. Para a população, isso significava a falta de segurança das relações jurídicas, que é um dos valores fundamentais do direito.

O mundo jurídico brasileiro da era FHC tornou-se um caos e o paraíso das grandes bancas de advocacia, especialmente em matéria tributária. Os novos limites definidos para as MPs não são suficientes para constituir a “democracia plena” que Fernando Henrique diz ter deixado.

Entulhando o STF

O governo FHC foi também o autor de um dilúvio de decretos regulamentadores, de portarias, editais e normas da Presidência, ministérios e do Banco Central.

Foi também o governo responsável por inundar o Supremo Tribunal Federal e outros tribunais superiores com uma enxurrada de processos, muitas vezes meramente protelatórios. No Superior Tribunal de Justiça (STJ), nos anos 92-94, foram recebidos cerca de 35 mil processos. Somente no primeiro ano de FHC já chegavam a quase 70 mil, disparando para 185 mil em 2001.

O Supremo Tribunal Federal, no mesmo período, 1992 a 1994, recebeu, em média, 25 mil processos por ano. No governo FHC, depois de um crescimento progressivo, ano após ano, o STF registrou mais de 110 mil processos em 2001. O Supremo deixou de atualizar os números que detalhavam a origem desses processos. Mas, pelas informações disponíveis até 1996, sabe-se que mais de 50% desses são procedentes do governo federal. Em boa parte, foram ações do poder Executivo de caráter meramente protelatório: sempre que vencido em uma ação judicial, mesmo que a jurisprudência contrária às suas pretensões fosse avassaladora, mesmo quando a apelação era contraproducente do ponto de vista financeiro por implicar em encargos cada vez maiores, o governo recorria. Isso também se insere na lógica de assegurar superávits primários a curto prazo e ao viés, sempre presente na ação de FHC, de não reconhecer ou retardar ao máximo o reconhecimento de direitos sociais.



Tudo foi objeto de MP

Não há ramo do direito brasileiro que não tenha sofrido com a fúria legiferante de FHC, que dispôs, com força de lei, sobre tudo, desde a liquidação extrajudicial de instituições financeiras até a meia-entrada para estudantes. É verdade que isso foi facilitado pela docilidade com que o Congresso aceitou desempenhar um papel secundário e, em alguns momentos, até subserviente, amoldando-se a uma função meramente homologatória, em decorrência da folgada maioria governista entre os parlamentares. Essa subserviência ficou muito nítida no episódio da votação da proposta de instituir a reeleição, cuja vitória continua associada a denúncias de que o governo teria instalado um verdadeiro “balcão de negócios”, em que teriam sido trocados votos de parlamentares por vantagens e até por dinheiro em espécie.

De acordo com gravações obtidas pela Folha de S. Paulo, a votação da Emenda Constitucional que permitiu a reeleição de FHC, datada de 28 de janeiro de 1996, foi precedida por uma grande operação de aliciamento de deputados por parte dos governistas no Congresso. Segundo as gravações, feitas com os deputados João Maia e Ronivon Santiago, ambos do PFL do Acre, foi montado um esquema que envolvia o deputado Pauderney Avelino, na época da votação filiado ao PPB do Amazonas e, depois, ao PFL, o ministro das Comunicações Sérgio Motta, do PSDB, o presidente da Câmara dos Deputados, Luís Eduardo Magalhães, do PFL, e os governadores do Amazonas, Amazonino Mendes, e o do Acre, Orleir Cameli. “Esse dinheiro é do Amazonino. Promessa do Pauderney aqui. No nosso corredor aqui, falou em 200 paus, via Serjão,” disse Maia na gravação.

Os deputados dizem nas fitas que a barganha pelo voto previa o recebimento de 200 mil reais do governo federal e de outros 200 mil reais do governo do Acre. “Pelo que eu sei bem é o seguinte: eram os 200 [mil reais] do Serjão, via Amazonino, que era a cota federal, aí do acordo ...”, diz Maia. Ronivon Santiago diz que os 200 mil reais pagos pelo voto a favor da emenda da reeleição foram distribuídos amplamente. Afirma que o dinheiro vinha do “outro lado”, sugerindo que seria do ministro das Comunicações, Sérgio Motta. “Todo mundo pegou na faixa de 200, 300... Todo mundo pegou... Teve gente que negociou pagamento de banco, negociou todo deputado aí... Todo mundo”, diz Ronivon. O deputado acreano concluiu com um frase emblemática, porque parece fazer uma crítica ao esquema do qual participou e foi beneficiário: “É uma barbárie isso aí”.



Blindagem

O governo FHC impediu a apuração dessa e de todas as denúncias semelhantes, que davam conta de que o avassalamento do Poder Legislativo teria sido conseguido com a prática generalizada de tráfico de influência e propinas, amesquinhando e deturpando a vida política no país. Assim, a maioria governista no Congresso, atendendo aos interesses de FHC, impediu a instalação da CPI da Reeleição e da CPI da Corrupção, usando todas as manobras possíveis para inviabilizá-las, apesar dos fortes indícios de ilicitudes veiculados pela imprensa.

Fernando Henrique foi ainda o presidente que praticamente desmontou a Carta Magna feita pela Assembléia Constituinte que redemocratizou o país, em 1988. Hoje, a Constituição é uma colcha de retalhos, com 38 Emendas, 34 de FHC. Foram alterados 77 artigos constitucionais (alguns, alterados mais de uma vez), acrescidos 16 novos e revogados outros dois. Cerca de um terço do texto original foi, portanto, alterado, fruto da revisão neoliberal. Ou seja: a Constituição foi esquartejada e praticamente reescrita à imagem e semelhança de FHC e seu governo.

Para eles, os interesses de mercado sempre estiveram em primeiro lugar. É isso que significa a chamada “blindagem institucional” que retirou poder de “políticos” para entregar a “técnicos”, com ligações estreitas com mercado. Para isso foram criadas as agências de fiscalização (Anatel, Aneel, ANA etc) e se programou a autonomia do Banco Central, como se a independência que já goza hoje não fosse suficiente. O significado, em todos esses casos, é sempre subtrair do Estado poder político e aumentar o do mercado.

As alterações na Constituição visavam, obsessivamente, a suprimir direitos sociais ou a abrir caminho para a supressão desses direitos por leis infraconstitucionais (ou mesmo medidas provisórias), quando não tinham por objetivo enfraquecer a soberania nacional ou entregar nosso patrimônio. Quase sempre foi este o conteúdo daquelas emendas: anti-social, antinacional e privatizante.

O sentido dessas alterações foi, em geral, o contrário do pretendido pelo constituinte originário. Não é sem razão que um dos nossos maiores juristas contemporâneos, Celso Antônio Bandeira de Mello, representando a consciência jurídica progressista, disse que a Constituição de 1988, “de um lado, sofreu um processo de desfiguração por via de emendas que lhe subtraíram características básicas, amputando aspectos fundamentais de seu projeto. De outro, foi sistematicamente afrontada no que tinha de mais elementar; isto é, em seu comprometimento com os valores democráticos substanciados na tripartição do exercício do poder. Ou seja: as normas que consagravam essa noção rudimentar, própria do Estado de Direito, sofreram e vêm sofrendo, diuturnamente, as mais desabridas e rotineiras afrontas”. E conclui: “sem embargo, o que realmente se está a assistir são seus discretos funerais” .

O estilo concentrador e autoritário de FHC foi o responsável, também, por outra vítima: o pacto federativo. O governo federal concentrou, de forma maciça, a arrecadação tributária e os poderes de decisão em todos os assuntos relevantes, em detrimento dos estados e municípios, dando passos largos para um Estado, de fato, unitário, em que os as unidades federadas tornar-se-iam meras divisões administrativas da União.


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