A mudança organizativa como projecto crítico para a eficiência do sistema público de saúDE: análise teórica e estudo do caso das agências de contratualizaçÃo em portugal


A resposta (actualização – inovação) da AP: a dimensão do Estado que ainda é necessária



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A resposta (actualização – inovação) da AP: a dimensão do Estado que ainda é necessária.

Recursos limitados e resposta à diferenciação da procura.

Na Secção “4 - A Modernização da Administração Pública” apresentámos já as características dominantes da transição da AP típica do EB-E (a AP burocrática / profissional) para a AP managerialista. Referimos aí também que a importação das técnicas empresariais para o tecido institucional da AP se caracterizava por frequentes contradições e que poderia ser necessário procurar um outro paradigma para a reforma da AP.


Face à onda ideológica liberal (menos Estado – Providência), à fragmentação de necessidades (e individualização do financiamento da sua satisfação – redução da solidariedade) da classe média, ainda é preciso um Estado para intervir nos sectores sociais? Os autores de orientação política mais marcadamente marxista consideram que o Estado actual continua a ter de realizar o papel de “estabilizador” da sociedade (evitar convulsões radicais) para que a base capitalista da sociedade continue a funcionar (e a realizar acumulação de riqueza), apesar das desigualdades ( 241 ) . Terminado o ciclo de crescimento económico pós – IIª Guerra, as desigualdades voltam a acentuar-se, surgem periodicamente crises económicas (mais ou menos globais): tal como nos últimos anos, quando aumenta o número das famílias com ingressos reduzidos é quando o Estado também tem menos recursos fiscais para os socorrer, com os serviços do EB-E. O espectro de crise social violenta mantém-se à espreita, o Estado “estabilizador” parece ainda não ter “terminado funções”. Para alguns autores, o EB-E mantém-se necessário, mesmo nos países mais desenvolvidos, devido à crescente participação feminina no trabalho – emprego formal: são necessários serviços pessoais e sociais para compensar a mudança na família. cxxxviii (242, 243, 244 )
Já referimos antes que, apesar de uma das inovações da AP managerialista ser a descentralização (fragmentar as grandes instituições, para reduzir o poder dos gestores tradicionais), esta (descentralização) era contrariada pela nomeação de gestores “de confiança política”, mandatados para realizar uma “nova missão” (obedientes ao centro político). Veremos adiante que a nova AP também procura, pelo menos no sector Saúde, redesenhar a sua tradicional aliança com os profissionais médicos, para poder continuar a responder á fragmentação requerida pela sociedade: vai procurar co – responsabilizá-los pela gestão dos SNS com restrição orçamental.
Antes de abordarmos o redesenhar da aliança entre AP e profissionais médicos, voltamos a lembrar a importância da “fragmentação institucional” na NGP: a separação entre fragmentos institucionais (principalmente, se se separam funções de níveis organizacionais diferentes - estratégico / financiamento; execução / produção) facilita a explicitação contábil entre os mesmos departamentos, e a “consciência dos custos” de produção e transacção. Mas, o Estado da NGP tanto precisa da autonomização das instituições prestadoras (a descentralização serve também o propósito de responder à procura muito fragmentada da classe média), como tem de “impor” a essas mesmas instituições fragmentadas a disciplina orçamental da crise fiscal. A experiência mostrou que até o velho hábito de impor “normas técnicas” foi ressuscitado, para procurar maior eficiência distributiva social (impõe-se não apenas a restrição orçamental, como os “modos correctos” de gastar o orçamento reduzido) – e não se limita ao sector público. Como é que tem sido possível resolver a contradição? Falemos das alianças do Estado com os profissionais médicos, e das relações destes com os gestores.


V.2 CLÍNICOS E GESTORES: RELACIONAMENTO EM MUDANÇA
Como se referiu na Secção “3 – O SNS como organização”, a profissão médica ganhou o estatuto liberal em função do reconhecimento das novas características da formação (universitária, científica, sistematizada e acreditada) e tornou-se um aliado fundamental do novo Estado (e da nova AP) na manutenção da ordem social. Apesar das crises de confiança que, nos últimos 20 – 30 anos, abalaram a imagem pública da profissão, a imagem social de “confiança e prestígio” ainda se mantém (e mantém-se o estatuto de profissão liberal), mas a relação com a AP é mais difícil: o poder dos médicos é abertamente confrontado com o poder dos gestores das redes institucionais – públicas e privadas - (financiamento, influência política, empregador). À medida que se reduz o grau de confiança (no racionador individual) cresce a necessidade de instrumentos explicitadores: contratos, imposição de normas e protocolos (para reduzir a variação nas práticas) e exigência de explicitação de escolhas (normas para programas de saúde pública, baseadas em razões custo / efectividade). ( 245 ) A Tabela 5.1, na página seguinte, resume as alterações na relação da profissão médica com o Estado, nos últimos cerca de 150 anos: põe-se em evidência que, a partir do declínio do EB-E, o individualismo neo – liberal é coerente com a ênfase na responsabilidade individual, e redução do papel do Estado, na protecção de saúde (porque se põe em causa o protagonismo dos factores colectivos e sociais na causalidade da saúde – doença). ( 246 , 247 ) cxxxix
As imagens populares tradicionais de “profissionais” (formação qualificada superior, em escolas exteriores à AP) e “gestores” são razoavelmente diferentes (às vezes, mesmo, opostas): os primeiros prezam os resultados do seu trabalho, são movidos por uma ética (e missão social) que é independente das instituições em que trabalham, o seu poder dentro das instituições decorre do seu saber, dividem lealdades entre as instituições contratantes e outras exteriores (escolas, Ordens, etc.). cxl Os segundos, prezam os procedimentos correctamente executados, a sua lealdade institucional (missão e ética) é predominante, o seu poder decorre da posição (eventualmente dos anos de trabalho).
Os profissionais médicos apresentam duas outras características adicionais: a) autonomia e discrição (decisão no diagnóstico e no tratamento); b) auto – controle “interno à profissão” (qualidade, ética) através de mecanismos corporativos (Ordens).
Conforme já se afirmou na Secção “1 - Os Factos”, a coexistência entre objectivos dos médicos e dos gestores hospitalares realizou-se sem sobressaltos até às primeiras crises fiscais dos EB-E: os gestores garantiam a execução atempada de compras e pagamentos, e a coordenação de inputs, enquanto os médicos ficavam livres para tratar os seus doentes (individuais) com o melhor nível existente de qualidade.
À medida que os orçamentos públicos se vão tornando cada vez mais insuficientes para custear a qualidade e intensidade de inputs que os médicos acham necessários, as missões das instituições procuram sobrepor-se às “estratégias individuais” dos médicos. Fazem-no através de diversos mecanismos: ( 248 )


  • Afectação de recursos

  • Obrigações (contratuais) dos profissionais para com a organização (horários, etc.) e os clientes (a instituição tem que responder à procura / mercado, para facturar e sobreviver)

  • Sistemas de standards e avaliação de trabalho (dos profissionais)

Os gestores são encarregues de realizar as tarefas acima, de modo a que a instituição sobreviva com o orçamento destinado: representam, perante os médicos, as pessoas encarregues de impor os objectivos globais da instituição aos seus objectivos individuais (limitando-os). E os objectivos globais (sobrevivência) das instituições são cada vez mais ditados do exterior (a direcção de um SNS, redes de hospitais privados, seguradoras, etc.): normas de gestão para controlar despesa, normas de qualidade para padronizar práticas (e custos associados).


A importância e protagonismo dos gestores cresceram, como, por exemplo, no SNS britânico: são encarregues de gerir as tensões entre discurso (de apelo ao consumerismo do cidadão médio) e escassez de recursos, mas os gestores sofrem pressões em grau semelhante às dos médicos. Por exemplo, as metas de “qualidade – satisfação do utente” transformam-se em metas (monitorizadas pelo nível central), e estas em indicadores de performance dos próprios gestores (e seus parâmetros salariais). ( 249 )
A imposição dos objectivos institucionais aos individuais (dos médicos) nunca se realiza completamente. Os médicos mantêm (através do seu prestigio social, influência política, etc.) a sua tradicional autonomia de decisão, mesmo dentro das instituições públicas (mesmo que o preço da continuação dessa autonomia seja o sacrifício da quantidade pela qualidade): os médicos continuam a ser os “racionadores” do financiamento público e privado, e continuam a fazê-lo através da soma de actos a doentes individuais.

TABELA 5.1 : OS MÉDICOS, O ESTADO, A SOCIEDADE. COMPLEXIDADES ADICIONAIS NA REFORMA DAS ORGANIZAÇÕES
A HISTÓRIA DAS ALIANÇAS RECENTES



FASE HISTÓRICA

PAPEL DO MÉDICO (contratado pelo Estado, ou Não)

PARADIGMA DOMINANTE (na Causalidade da Doença)

ESTADO X INDIVÍDUO (responsabilidade pela Saúde)


REGULAÇÃO SOCIAL


PRÉ – INDUSTRIAL

Polícia Médica (produção e população): moderação nos comportamentos para manter força de trabalho ( 250, 251 )


Ausência de Medicina positiva e base empírica organizada: Humores, Miasmas, etc. ( 252 )








ERA INDUSTRIAL – MEDICINA POSITIVISTA




  • Profissão liberal: racionador individual

  • Controlador laboral: o “Atestado”

  • Razão do Estado: sobre o capital, sobre os operários, sobre o território ( 253 )

Modelo unicausal (bacteriologia, anatomia patológica)


Doenças contagiosas: saneamento + higiene e moderação individual


A agressão é fundamentalmente externa. O saneamento é uma utilidade pública


Debate político intenso: Bismarck e a Segurança Social

Autoritarismo “taylorista”: centralização do conhecimento (médico) e sua imposição a todos os actores cxli ( 254 )




ESTADO DO BEM – ESTAR

O planeador de Prioridades Públicas (programas): racionador público ( 255 )


Evidência epidemiológica fragmentada sobre causalidade de doenças crónicas – degenerativas (crítica ao modelo anterior, de Medicina curativa Hospitalar e unicausalidade). O conhecimento empírico disponível já permite intervenção de controlo.


Controle de Doenças Crónicas: a) profilaxia; b) grupos de risco.

Indivíduo deve assumir conselhos médicos e respeitar calendários de consultas profilácticas


Responsabilidade do Estado de Saúde é dos Governos. O Estado estende os benefícios da Medicina aos estratos médios – baixos da sociedade

Cumplicidades entre indivíduos (benefícios) e técnicos (autoridade)


3 actores fortes, 1 árbitro (Estado, patronato, sindicatos)


PÓS - FORDISMO

Participação na Gestão X co – responsabilização por:




  • Controle de despesa

  • Falta de recursos

Aumento do poder dos gestores cxlii


Doenças do comportamento: a responsabilidade maior é do indivíduo (dieta, forma física, gestão do stress, etc.) ( 256 )


Redução da responsabilidade e poder do Estado. O Individualismo é mais bem visto


Múltiplas redes, com permanências curtas dos indivíduos. Muita informação disponível para cada indivíduo ( 257 )



No entanto, à medida que se vai acentuando a insuficiência de financiamento, e que AP da NGP vai implantando a competição entre os hospitais públicos, a sobrevivência das instituições – no mercado - depende cada vez mais de disciplinar a actuação individual dos médicos. Os doentes (tanto no sistema público como no privado) são cada vez mais co-financiados por 3º pagador. A insuficiência de financiamento é semelhante nos sistemas de seguros sociais ou privados. Os gestores das instituições individuais têm que “estudar o mercado – financiador” e procurar “oportunidades” aonde a produção da sua instituição obtenha melhores ingressos: reorientar parte da produção para os serviços com melhores tarifas, rentabilizar capacidade excedentária com necessidades não satisfeitas no mercado, etc. cxliii Para que as instituições sobrevivam no ambiente de orçamento reduzido e competição, os gestores têm ainda que impor standards e mecanismos de avaliação (internos ou externos), contrários aos princípios da discrição e auto – avaliação dos profissionais.


Este tipo de pressão viu a sua força recente acentuada com o desenvolvimento da informática: tanto os Ministérios da Saúde podem impor aos hospitais sistemas informáticos que permitem “invadir” as redes informáticas “internas” destes, como as seguradoras impõem semelhantes condições aos médicos contratados em “managed care”. Num e noutro caso, o gestor central pode consultar os padrões de prática clínica utilizados em cada episódio de tratamento.
O conflito parece tender a agudizar-se, a autonomia tradicional e o poder dos médicos a ser colocado em cheque. No entanto, a experiência recente tem demonstrado um curioso curso em que se mantém tanto o poder dos médicos como a sua aliança com a AP. cxliv


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