(Tribunal de Rua – O Rappa)
As visitas com o Consultório são interrompidas. Em um telefonema com Míriam, marcamos um encontro no seu consultório para atualização de dados. As notícias não são as melhores. Ela me conta como a equipe do Consultório foi ameaçada em Itapuã por policiais civis que também trabalhavam como seguranças em frente ao shopping onde o projeto atua.
A “sugestão” dos senhores (que fizeram questão de acintosamente tocar em suas armas enquanto falavam com a psicóloga) era que a equipe atravessasse a rua e fosse fazer aquele trabalho em outro lugar. Isso porque a síndica do shopping não estava gostando nada, nada daquilo (levando no bom humor: uma melhor amiga da vizinha da Pituba?).
Míriam tenta explicar o trabalho que está sendo feito ali. Apela para o pessoal, pergunta aos policiais se eles sabem o que é uma gonorréia, mostra fotos, descreve a doença com detalhes, vê suas caretas de medo e nojo. Mas os policiais-seguranças são inflexíveis. Eles alegam que aqueles meninos que o Consultório atende são marginais, traficantes e assassinos. Ela diz que ninguém está ali para julgar nada, mas para fazer um serviço social.
Não adianta.
Nery como presidente do Cetad, elabora um documento alegando estar ciente da situação e o que acontece é que o Consultório acaba tendo que passar para o outro lado da rua. Como se não bastassem as dificuldades de financiamento, mais uma vez a sociedade ataca de gol contra.
Se há um bairro visitado pelo Consultório de Rua que mais me despertou curiosidade, com certeza é a Barroquinha. Porque era um bairro no qual a atuação do Consultório era recente e ainda não estava bem definida, porque a realidade lá era difícil, problemas com a abordagem policial, com traficantes, com usuários de drogas mais pesadas do que a cola.
E também porque recentemente o Consultório estava entrando em um bordel ali perto, para atender as meninas que fazem programa e que tem as mesmas necessidades de quem está na rua e requisitaram isso à equipe.
Por esses motivos, Míriam achava precoce permitir minha visita junto com o projeto. E assim, durante todo o tempo em que acompanhei o Consultório, não pude evitar a criação de uma imagem de como seria aquela área, de quem eram aquelas pessoas, de como a coisa acontecia, do que era difícil, do que era fácil.
Até que já no finalzinho das minhas visitas, meados de setembro de 2003, lá fui eu saber a quinta-feira do Consultório de Rua. Na parada: Praça dos Veteranos, logo ali em frente ao Corpo de Bombeiros. Logo ali atrás do Pelourinho reformado, aquela parte que não ganhou tinta colorida na fachada, sabe?
A parte onde os casarões têm caras de abandonados e a população que ficou de fora do epicentro de nossa baianidade entra para morar, ou para fumar ou vender. Mas ali também tem cara de família, de uma família que como a Conde dos Arcos não é convidada no resto da cidade.
Lá em cima o Pelourinho fervilha de turistas, de música, de comida, de artesanato. Ali, protegidos do incêndio, meninos, mulheres, homens, senhores e crianças, fazem fila para serem atendidos pelo Consultório, para contar sobre sua saúde, sobre como se sentem, o que têm feito, o que querem fazer. Pessoas como em todos os lugares.
Nessa noite, em um bar ali perto acontece o lançamento de um livro. Um coquetel. Por isso, o policiamento está reforçado. Policiais do outro lado da praça, policiais ao redor. A equipe do Consultório aparece com estratégias de jogos sobre doenças sexualmente transmissíveis e a leitura de uma revista em quadrinhos sobre sexualidade. Aos poucos vão juntando interessados.
E atraindo a atenção dos policiais. Um deles, fardado e com olhar muito sério, atravessa a rua e se posiciona bem ao lado das atividades do projeto. Bisbilhota sem fazer uma pergunta. Sua aparência é de raiva, como se dissesse: “vocês não vão amontoar essa gente aqui não que hoje é dia de festa ali na frente, estão vendo?”. Mas ele não diz nada. Só olha com uma mistura de raiva e desprezo.
Durante todo o tempo em que o Consultório fica no local, mais ou menos umas duas horas, lá está o homem da lei, impassível, plantado como uma árvore de raiz centenária ao lado dos meninos que jogam os jogos sobre DSTs. No detalhe: seu olhar e sua postura são acompanhados por sua mão, agarrada ao revólver em sua cintura durante todo o tempo.
Para mim, a cena traduz as reformas de nossa cidade, a maneira como os muros são belos, mas as casas caem aos pedaços. Incompreendo. Até a hora de ir embora. Incompreendo mil vezes. E até agora continuo sem compreender.
Foi a única vez que estive com o Consultório na praça dos Veteranos.
Na narração das histórias do Consultório, fica faltando dizer o que acontece na sexta-feira. Esse é um dia sem visitas. Ao invés de ir para as ruas, a equipe se reúne na cede do Cetad para discutir sobre o que está acontecendo, propor saídas para os problemas, enfim, organizar o trabalho.
Na reunião da qual que participo a pauta é a cola, forte barreira na atuação da Pituba. A estratégia da equipe sugere um caminho razoável: é preciso pesquisar muito sobre o assunto para estar preparado para topar com ele na rua. Entender o uso da droga e o seu contexto para poder agir.
A reunião mostra um lado interessante. Um bastidor, o que na frente dos meninos não se conversa de forma tão aberta. É a estratégia de trabalho do Consultório. Fica claro para mim como é importante que a droga seja tratada de maneira mais ampla, que envolve o social. Envolve muitas partes da vida de cada um daqueles meninos. Míriam; “a gente não vê nunca só a droga. A gente vê a pessoa que está, entre outras coisas de sua vida, usando droga”.
Em casos extremos como o da Pituba, às vezes é necessário uma abordagem individual,, caso a caso, além da abordagem ao grupo. Uma espécie de radiografia exclusiva de cada alucinação.
A discussão vai tocando em pontos que sem a reflexão dos profissionais e dos estudantes, fica para mim apenas como registros de experiência, como observações. O discurso da equipe reposiciona minha forma de pensar. Desloca-me daquela que está apenas olhando para a que também pode opinar e tentar entender o que acontece com eles.
Um desses pontos, que até o momento preocupa a equipe é a demanda crescente por parte dos meninos de inserção em atividades e oficinas de outros projetos. Lembro de Michele Faifé que quer tanto dançar, de meninos menores como Jaquison, que poderiam estar em uma oficina de capoeira, isso sem contar com a escola, que é tão distante da realidade da maioria.
Mais uma vez a sociedade mostra como está organizada para deixá-los de fora. A maior parte (senão todos) os projetos de organizações não governamentais e mesmo aqueles do governo exigem que os meninos estejam estudando para participar das atividades. O pré-requisito é meio excludente, não?Quem está na rua e não tem nem casa, vai estar na escola como? E para sair da rua é preciso primeiro estar na escola? De que jeito?
Antônio Nery, coordenador do Cetad, está presente nessa reunião. Sinto falta de não termos tido mais contato. Nesse dia ele observa, lembrando de sua experiência com o embrião do Consultório, como é difícil lidar com as demandas que vem da rua. E como elas sempre vão existir.
Na radiografia de Nery, essa demanda é voraz. É antropofágica:
- A linha entre o que pode ser cedido e o que não pode é tão tênue que há o risco do menino, que está ali na condição do que demanda, há o risco que ele coma a si mesmo e ao outro, seja o terapeuta que está chegando ou o seu colega de rua.
(E quem não comeria?)
Sem um puto no bolso entro no ônibus. Se tiver sorte, o cobrador me deixar ir traseirando até um ponto mais à frente. Que mané sorte! Desço aqui mesmo, ouvindo ele gritar “alivia motor” enquanto bate com uma moeda no corrimão de ferro. Estampido.
Não suporto a idéia de voltar para casa. Aquela casa não é minha, nada ali dentro é meu. Só um sentimento meio torto de infância misturado com futuro. Que tratei de enfiar numa caixa de sapato e empurrar para debaixo da cama antes de sair.
Ajeitei meus cabos de madeira, trocando a borracha antiga por uma colorida. E também incrementei as laterais com umas franjas que sobraram, para não desperdiçar. Acabou ficando mais alegre, esse negócio de equilíbrio. Três cabos na frente dos carros e eu estou bom nisso.
Acho que o cara pode dizer que está bom nos malabares quando faz de olho fechado. E passa por debaixo da perna, rodopia o cabo nas costas, sorri. Outro dia um senhor de óculos dirigindo um carro esquisito disse que apoiava a arte de rua, que admirava o circo.
Foi aí que a gente teve a idéia de um agachar no chão enquanto o outro sobe naquele banquinho de gente para se equilibrar e equilibrar os cabos ao mesmo tempo. Não sei se dá para competir com os que usam fogo à noite, mas que é diferente isso lá é.
De vez em quando, quando sinto uma pontinha de tristeza como hoje, uso o tubo. Nem gosto de falar muito nisso, mas é o que eu faço. Quando minha cabeça viaja para um mundo mais folgado que esse aqui, o céu fica que nem se alguém tivesse, sem querer, derramado purpurina em cima de um papel preto. O céu fica entupido de estrela.
Dou risada. Um teto todinho de estrela. E quando é de dia e depois a gente pára na frente dos carros para fazer nossa arte de rua, como disse aquele coroa de óculos no carro invocado, se é de dia a cara das pessoas é meio dura. Devem ser umas caras congeladas de ar condicionado.
Tem quem abre o vidro rapidinho e joga uma nica. Mas se for para limpar o pára-brisa nem vem não, ô menino, já limpei, não tem dinheiro hoje não, viu? Faz tempo que não ouço alguém dizer boa sorte. Quando jogava no time lá do bairro, minha mãe dizia boa sorte, dava beijo e tudo se trouxesse medalha. Era de improviso, mas era medalha.
O resto da cidade parece uma centopéia. Tanta parte, tanto lugar. Eu tô ficando por aqui mesmo agora, mas depois não sei o que vai ser, depende. Vai que um dia a sorte vem, mesmo sem mãe? O que é que eu acho sorte? Poxa, como é que eu posso explicar isso a você?
(Estou na janela do ônibus, em uma sinaleira de Ondina. Do lado de fora, dois meninos equilibram seus cabos de madeira revestida de borracha colorida. Dois sorrisos no meio da sexta-feira. Lembro das outras sinaleiras e de personagens que de algum modo constroem essa história em mim. Eles acenam).
Referências Bibliográficas
AMADO, Jorge. Capitães da Areia. São Paulo: Martins, 32ª edição, 1972.
ABRAMOVAY, Miriam. WAISELFISZ, Júlio. ANDRADE, Carla Coelho de. GRAÇAS RUA, Maria da. Gangues, Galeras, Chegados e Rappers (Juventude, Violência e Cidadania nas Cidades da Periferia de Brasília) Rio de Janeiro: Garamond, 1999.
NOVAIS, Camila. RABINOVITZ, Carina. Anjos e Demônios da Insensatez (trabalho de conclusão de curso na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia). Salvador: 2001
MEDINA, Cremilda. Viagem ao Sol Poente (São Paulo de Perfil 18). São Paulo: ECA/USP, 2001
MEDINA, Cremilda. A Arte de Tecer o Presente. São Paulo: Ummus, 2003
SIMUNECK, Chris. Paraíso na Fumaça. Conrad.
NERY FILHO, Antônio. PAES TORRES, Inês Maria Antunes. Drogas: Isso Lhe Interessa? Confira Aqui. Salvador. Paris: CETAD/CPTT, 2001
PIMENTEL, Glayds. Coração Suburbano (trabalho de conclusão de curso na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia)
NOBLAT, Ricardo. A Arte de Fazer um Jornal Diário. Brasília: Contexto, 2002
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