A van cinza de placa jnu 0839 estaciona na esquina da praça Brasil, na Pituba



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Distraída para a cidade se partindo em mil. Espatifando, caco de cidade solto, estilhaços de cidade, caleidoscópio de asfalto e sinal de trânsito. De gente para lá e para cá, licença, fila de banco, greve, trabalho de faculdade, ônibus escolar, padaria da esquina, praça. Gente, movimento. Atores do primeiro ato.
De uma janelinha classe média, sonho, ainda tonta, com o que aprendi sobre desigualdade social e cidadania. “Inobservo” o diferente ao redor, como se ele não existisse. Ou alimento o seu mito, estampado na televisão. Embora saiba que a coisa é toda múltipla. Mas saiba assim, de ver de canto de olho, de ouvir falar.
Então, em um trabalho que exige de mim atenção para enxergar um pouco além dos palmos, recebo a pauta: aproveitando o Dia Mundial da Luta contra a Aids (1º de dezembro), que tal mostrar como vivem os meninos e meninas em situação de rua, os riscos que correm, como fazem para se equilibrar, como se protegem?
Era novembro de 2002. Eu e a colega Luzia Luna, as duas colaboradoras do Caderno Dez!, suplemento juvenil do jornal A Tarde, decidimos fincar a pauta que recebemos no trabalho do Consultório de Rua, projeto do Centro de Estudo e Terapia do Abuso de Drogas (Cetad/Ufba).
Trata-se de um consultório móvel, uma van, que visita a cada dia da semana bairros diferentes de Salvador e presta assistência a esses meninos e meninas em situação de rua. O trabalho: prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, distribuindo e ensinando a usar camisinha. Mas o pessoal do Consultório também se aproxima para falar sobre drogas, família, enfim, sobre a vida das pessoas que por algum motivo estão na rua.
O objetivo da matéria: acompanhar o Consultório em um desses bairros e relatar a experiência. Mostrar como a situação e o risco da rua podem ser driblados com o trabalho social. Então pegamos a carona e fomos para a Pituba, bairro visitado pela equipe nos dias de segunda-feira.
Percebemos como psicólogos, assistentes sociais, agente de saúde e estudantes atuam de maneira lúdica com os meninos, que esperam por eles, como um compromisso marcado. A experiência rendeu a matéria "Na Porta da Rua", publicada no Dez! na edição de 28 de novembro de 2002 (ver em anexo).
Na visita, criei vínculos. Percebi como o adjetivo usado na pauta elaborada pela Agência Nacional dos Direitos da Infância (ANDI) se encaixa com o que vi, ainda que tão rapidamente: são meninos e meninas (e mais tarde veria homens, mulheres, crianças, velhos, bebês) invisíveis para o resto da sociedade. Quantas vezes eu mesma não tinha passado ali e ignorado a presença deles? Ou sentido medo?
Meu vínculo e essa sensação de incômodo e apatia me fizeram voltar a visitar os meninos da Pituba outras vezes com o suporte do Consultório de Rua. E acompanhar mais de perto o trabalho da equipe e as histórias dessas pessoas.
Era meu penúltimo semestre na Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia e eu ainda não havia optado por um projeto experimental, que deveria ser feito no semestre seguinte. Então decidi unir as duas coisas. Relatar a experiência dessas visitas em um livro-reportagem.

Por que um livro reportagem e no que ele acabou se transformando

Desde que entrei na FACOM, no segundo semestre de 1998 e até mesmo antes disso, sempre gostei muito de escrever. As aulas de literatura e redação do colégio sempre foram minhas preferidas. Quando comecei o curso de Jornalismo, acredito que como muitos calouros, cheguei cheia desse espírito romântico, dessa visão com sede transformadora, de quem, se não vai mudar o mundo, pelo menos vai fazer muito para isso acontecer.


O primeiro semestre de aulas já me mostrou que as coisas não eram bem daquele jeito. Escrever como um jornalista exigia uma técnica e uma sensibilidade que eu não tinha a menor noção do que significavam. Fazia narizes e mais narizes de cera e não conseguia dizer o que queria. Mas ainda assim, continuava.
Disciplinas como Estética da Comunicação, Temas Especiais em Jornalismo, Ética na Comunicação e Comunicação Audiovisual foram me mostrando alternativas para entrar no que ainda era difícil entender como comunicação e mais especificamente como jornalismo. Um pouco mais para frente, a disciplina Comunicação e Tecnologia ministrada pelo professor André Lemos me ajudou a compreender o discurso acadêmico, mas também midiático e social.
O vídeo, o rádio, a TV, a fotografia e a web como linguagem tiveram suas influências sobre mim, cada um à sua maneira. Mas eu ainda tinha nítido que o que queria mesmo era escrever. Apesar de que, quando fiz a disciplina Elaboração de Projeto Experimental, com o professor Albino Rubim, em 2000, tenha elaborado um anteprojeto cujo formato era um vídeo.
Mas essa idéia logo foi abandonada. Acho que porque eu tive tempo para amadurecê-la durante o ano em que fiquei afastada da faculdade. Esse ano foi importante porque tive a chance de me deslocar e observar o curso de fora, refletir sobre meus objetivos e sobre o que tinha feito até então. Penso que foi um ano de reposicionamento. E quando chegou realmente o momento de fazer o meu projeto, já me sentia realmente envolvida com a idéia de um relato escrito sobre o Consultório de Rua.
Quem sabe ali não fosse a chance de aprofundar a matéria que fiz para o jornal? Seria, na minha concepção, a oportunidade de viver mais de perto aquelas e outras histórias e relatá-las depois. Foi assim que expressei a Míriam Gracie Plena, coordenadora do Consultório de Rua, a minha intenção em permanecer com as visitas e futuramente transformar a experiência em um livro-reportagem.
Minha idéia inicial era promover uma oficina de literatura e desenho - especificamente na área da Pituba (porque naquele momento ainda não conhecia as outras áreas visitadas pelo Consultório) - e a partir da produção dos meninos, elaborar o meu livro. Seriam os relatos deles pontuados pelas minhas observações. Sobre o que eles contaram e viveram. Sobre o que experimentamos juntos.
Essa proposta foi encaminhada ao Cetad em fevereiro de 2003, mas por desencontros com a equipe, só consegui receber o aceite (e a permissão para voltar com as visitas) em junho desse ano. Acontece que eu considerei junho uma data muito próxima para promover as oficinas, fazendo outra ressalva, de que ainda não havia sido deflagrada a greve dos servidores públicos. Até aquele momento eu estava literalmente lutando contra o tempo.
Vale ressaltar que nos meses de dezembro, janeiro e parte de fevereiro, as atividades do Consultório ficaram paradas por conta das festas de fim de ano e carnaval. Minha saída então foi manter o esquema de observadora (e por sugestão de Míriam visitar as outras áreas junto com o Consultório) e depois elaborar uma série de reportagens sobre essas visitas.
Desde o início sabia, porém, como queria o trabalho. Estava encantada com a idéia de jornalismo gonzo, estimulada em mim pela amiga e jornalista Iansã Negrão. Apostava que aquela era uma experiência de desamarrar os entraves clássicos do jornalismo aprendido até então. A ordem lead-sublead seria substituída por um relato mais livre. A idéia de objetividade, imparcialidade e neutralidade, tão estudadas na disciplina Teorias do Jornalismo iam me dar licença para deixá-las um pouco de lado.
Influência do gonzo de Hunter Thompson e o jornalismo literário que o antecedeu. O foco narrativo flutuante, mas honestamente centrado em mim como agente e observadora, a imersão no que seria relatado, a liberdade na escolha da linguagem, desprendida de regras e conceitos. É nessa parte do gonzo e na poesia do new jornalismo que eu quis apoiar o que fosse fazer.
Eu não queria amarras, padrões pré-estabelecidos, não queria olhar para aqueles meninos como estatísticas fora do contexto. Queria me admitir ali, perto deles, não como uma entidade que vai distanciadamente colher suas histórias e soltá-las para o mundo depois. Percebi que as histórias deles se misturavam a nossa vivência como grupo. A aspirante à jornalista aqui não estava a quilômetros de distância, tentava estar ao lado.
Nessa época, a leitura do livro “Paraíso na Fumaça”, do jornalista americano Chris Simuneck, foi uma alternativa interessante. Não tanto pelo seu conteúdo quanto pela sua forma. O editor da polêmica revista High Times (que trata de maneira muito liberal a cannabis sativa) vivia experiências com a droga, fazia viagens, misturava-se a suas fontes e depois contava suas histórias. Sem as falsas distância e objetividade.
A idéia de imersão do repórter no que ele vai transformar em história depois era o que estava querendo. Para mim sempre foi muito mais honesto admitir que não havia chance de ter o distanciamento radical do jornalismo clássico. Eu estaria na rua com pessoas que não conhecia, ouvindo suas histórias, vivendo com elas suas vidas naquele momento, então fatalmente estava envolvida.
Não ao ponto de me transformar em suas histórias também, como as vezes certo exagero do gonzo permite, chegando ao bizarro. Mas eu tinha a possibilidade de fazer um relato sendo fiel à realidade incluindo as minhas percepções dentro desse relato.
Com o tempo e o material que tive para escrever, não considero esse produto final como um livro-reportagem. Mas uma série de reportagens, que prefiro chamar de relatos, sobre o que experimentei. É como a descrição de um estado de espírito. Foi uma produção, para mim, muito sinestésica. Digo série de reportagens porque considero que a produção final está mais despretensiosa do que um livro, apesar do cuidado na apuração, na execução, enfim, em todas as etapas de uma reportagem.
Mas o livro seria algo mais complexo, talvez propusesse uma discussão com a sociedade a respeito do assunto, recorresse a outras fontes. Mas o meu objetivo, sendo honesta com o tempo e a oportunidade que tive acabou se transformando em uma viagem centrada nesses relatos. Nas visitas com o projeto e das experiências compartilhadas.
Ter acesso a livros-reportagem de ex-alunas desta faculdade como “Anjos e Demônios da Insensatez”, de Karina Rbinovitz e Camila Novais e “Coração Suburbano”, de Glayds Pimentel ajudou a guiar os meus objetivos. De misturar jornalismo com literatura e assumir essa mistura não como uma atitude romântica, mas humanizadora das histórias que queria contar e do formato que escolhi para fazer isso. Aos poucos fui definindo qual era o jornalismo que eu acreditava e queria fazer.
Ter espaço para o fazer etnográfico ao qual o professor Liráucio Giardi Jr. Se refere. Conviver com aquelas histórias antes de escrevê-las. Eu senti que a realidade me dava a chance de muitas narrativas, como a qualquer um que se proponha a contar histórias e aos poucos fui descobrindo que não existe a mais legítima. Existe sim, a que se preocupa em ser ética, justa, a que preza pela responsabilidade social.
Qual seria meu posicionamento como jornalista? Saber que é delicado fazer essa construção seletiva da realidade porque sempre vão existir milhares de formas de ver o mundo. Admitir isso foi me admitir autora do recorte. Isso é muito mais honesto com as fontes e os leitores do que a assepsia da distância. Estava disposta ao desafio, que inclusive estava vivenciando na minha experiência de trabalho.
Conviver, mesmo que na condição de colaboradora, com as idéias do jornalista Ricardo Noblat enquanto chefe de redação de A Tarde, me mostraram caminhos alternativos ao que eu poderia fazer na reportagem. Contar boas histórias, que estão nas ruas, interessam as pessoas e podem ser feitas além dos padrões e modelões vigentes. Saber que em algum momento (e isso é do gonzo também) eu teria que me posicionar sim. Não acredito de forma alguma que um jornalista precise vestir essa farda forjada de imparcialidade.
Porque eu levaria minha bagagem e minha vivência de mundo comigo para onde eu fosse e teria que descobrir como dosa-las com o que estava vendo, com as bagagens e vivências de outras pessoas, com realidades diferentes. O livro de Noblat, "A Arte de Fazer um Jornal Diário" foi uma leitura bem interessante nesse caminho.
Outra bibliografia que me fez pensar muito no que estava fazendo e me deu ainda mais vontade de ir por esse caminho foi escrita por Cremilda Medina (“Viagem ao Sol Poente” e “O Ato de Tecer o Presente”). Foi com muita felicidade que descobri nela mais um trampolim para me lançar no que estava acreditando. Em sua literatura estava a justificativa de minha escolha: a tentativa de criar uma narrativa da contemporaneidade. De colocar em prática a tríade sentir-pensar-agir.
“... é preciso abdicar dos padrões estáticos, por exemplo, da entrevista na comunicação e demais ciências humanas, para sair ao mundo e encontrar os protagonistas da cena viva, se reencantar e descobrir significados latentes em cada esquina, aliás, prática existencial que alimenta os criadores”.1
A proposta de Cremilda encaixou no meu trabalho, mais do que isso remodelou a minha maneira de fazê-lo. Deixou-me à vontade para esquecer a técnica burocrática do narrador distanciado e esquemático. Sim, eu apostei na sinestesia das cenas.
A minha tentativa com o trabalho nesse formato foi de abertura. Quis tocar, cheirar, abraçar, cantar, provar, beber, voltar para casa chorando, voltar para casa feliz, estar na rua, sentar no chão, tocar berimbau, vestir camisinha em prótese, contar história, desenhar, jogar capoeira, sentir cheiro de cola, ver a polícia chegando, ver o mar ali atrás.
Sim. Tive medo de alimentar estereótipos. O que não foi maior do que a minha vontade de experimentar. Sem linha editorial. Poder ser a minha baliza e minha editora. Saber ainda assim que tinha um compromisso ético; que tinha um compromisso social; que estava de posse da história da vida de pessoas. Assim como Cremilda fala em seus textos, estava afeta aos meus personagens.
Queria um relato que, apesar de jornalístico, pudesse abrigar metáforas, pudesse vez por outra estar vestido com um pouco de poesia. Arriscar outros formatos. Então vez por outra me senti livre para propor um roteiro de filme ou crônicas entre as histórias. Queria sustentar o que Cremilda diz ser a relação entre o jornalista e a sua fonte como sujeito-sujeito e não sujeito-objeto. Mostrar o cotidiano dessas pessoas comuns e excluídas da narrativa social. Eu quis o protagonismo anônimo.
A história de meninos como Jadson, Renatinho, Jaquison. A alegria espalhafatosa (e por vezes triste) de Michele Fáife e Andresa. A androgenia de Vó, a garra e eloqüência de Léo Carlos, a vida aberta de Plínio. A doçura de Binho. Todas elas me mostrando a cidade, como ensina Jorge Luis Borges, como a mesma e a outra. E as outras. Mais uma vez, nas palavras de Cremilda Medina:
“O autor abandona a arrogância de dono da verdade e mergulha com delicadeza no pântano incerto e não sabido”2
Deixando de lado o oficialismo, tendo como fontes a equipe do Consultório, mas como matrizes aqueles que estavam nas ruas. Que não saem nos jornais. Que não são notícia. Ou talvez ainda o sejam como no romance de Jorge Amado, “Capitães da Areia”, apenas estampados em páginas policiais com iniciais em maiúsculo, vírgula, idade. Os que ficam de fora. Os sem vez. Os menores.


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