A voz do passado



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Eu dormi embaixo das pontes, dormi na entrada das casas, com os tapetes, e o gatos na soleira, e dormi em guaritas dos guardas. Dormi nos abrigos da escola (...) Nas docas, eu dormia nos barracões, com os ratos andando em volta (...) Por pouco não fui jogada no porão de um navio. Num vagão de carvão (...) eu puxei a lona em cima de mim, sabe (...) Eles iam justamente despejar o carvão no porão de um navio -quando o homem do guindaste me viu (...)
Daí, aquela tia velha (...) ela costumava implicar com minha ma-drasta por causa do que ela fazia comigo (...) Ela conseguiu pegar a gente e levou a gente embora e lavou nossa cara e ensaboou a gente inteiro e fez o que pôde por nós. Mas ela tinha que trabalhar. E sempre que voltava de noite, não achava a gente, sabe (...)
E então naquela noite, eu estava dormindo na entrada da casa dela (...) Mas chegou uma senhora e eu estava dormindo fundo ali na soleira. Ela me acordou e fez uma porção de perguntas (...) me levou para a casa dela, me carregou para cima, e me lavou, me limpou e me pos na sua própria cama (...) Ela me fez sair na manhã seguinte, tinha me dado comida, pôs tantas roupas bonitas em mim (...) E ela me deu acho que foi um penny (...) Meu pai estava num pátio, numa entrada, bem ali em frente (...) Ele assobiou e eu olhei (...) Achei aquilo legal. E vou para o meu papai. Você não adivinha o que aconteceu. Ele arrancou de mim tudo que eu tinha (...) Foi para a primeira loja de penhores, pôs tudo no prego. Pôs no prego. E lá estava eu na rua de novo (...) Voltei para aquela mulher. Contei que meu pai tinha tirado tudo de mim (...) Depois, o que lembro é que estava no tribunal (...)
No fim - embora não tivesse nem oito anos - foi levada para um asilo da igreja, e seu irmão foi mandado para um navio-escola.32
Exatamente do mesmo modo que, na seleção de informantes, não existem regras absolutas, mas antes um certo número de fa-tores a considerar, assim também no final há apenas orientações úteis para indicar quando as fontes orais podem ser utilizadas

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fidedignamente, exatamente como há para outras fontes históri-cas. Os testes básicos de fidedignidade, que examinaremos por-menorizadamente no capítulo final - busca de consistência in-terna, conferência cruzada de detalhes de outras fontes, confronto da evidência com um contexto mais amplo -, são exatamente os mesmos que para outras fontes. Todas elas são falíveis e sujeitas a viés, e cada uma delas possui força variável em situações dife-rentes. Em alguns contextos, a evidência oral é o que há de melhor, em outros, ela é suplementai; ou complementar, à de outras fontes.
No campo da história da família, por exemplo, os padrões internos de comportamento e de relações são geralmente maces-síveis sem a evidência oral. O mesmo também ocorre, ao estudar urna greve, quanto aos detalhes da organização formal local, ou do comportamento desviante como o do fura-greve, ou os recur-sos comuns, como furto de combustível, que ajudavam as famí-lias a sobreviver sem renda nenhuma. O caso extremo é a história do movimento subterrâneo, como as organizações judaicas secre-tas em território nazista, no tempo da Segunda Guerra Mundial. Yad Washem, o grande Arquivo do Holocausto, em Jerusalém, além de perto de 30 milhões de documentos escritos relativos a perseguição e ao extermínio de comunidades judaicas durante o período fascista, coletou mais de 25 mil testemunhos orais. A coleção teve início já em 1944 e, logo depois do fim da guerra, foram instalados escritórios em muitos locais da Alemanha, e em outras partes do mundo, para a coleta de evidência. Vários desses centros ainda estão em atividade. Eles coletaram uma série enorme de material sobre a vida social e cultural, em parte para preservar algum registro sobre comunidades cuja história, se não fosse assim, teria morrido com elas. Muito mais notável foi a capacidade de reconstruir os relatos, tanto da perseguição quanto da resistência a ela; e isso passo a passo, com a exatidão e a paciência exigidas pela evidência que pode precisar ser provada diante de um tribunal - e ela foi regularmente testada desse modo. Quando, posteriormente, grande parte da evidência do jul-gamento de Nuremberg foi perdida pelos russos, Yad Washem````

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teve condições de reconstruir três quartas panes dos documentos faltantes. Como um dos pioneiros desse arquivo, Ball-Kaduri sabia, a partir de uma experiência de primeira mão em Berlim, que a documentação oficial não podia proporcionar um registro adequado da atividade dos líderes judeus e seus simpatizantes, os quais, para escapar à investigação da Gestapo, eram obrigados a encontrar-se sempre em segredo e a usar apenas a comunicação falada. Yad Washem foi de fato bem-sucedido na preservação de uma história que, como afirma ele, documentos escritos jamais poderiam representar - "Was nicht lii die archiven steht".33
O mais das vezes, o papel da evidência oral é menos sensa-cional, é complementar suplementar na reinterpretação de do-cumentos e no preenchimento de suas lacunas e fraquezas. O censo de ocupações profissionais, por exemplo, constitui um re-gistro muito insatisfatório sobre ocupações secundárias e de tempo parcial. Mediante entrevistas, é possível descobrir como um negociante combinava seu trabalho com a gestão de uma hos-pedaria, ou como um trabalhador biscateiro tinha uma série de ocupações sazonais, ou corno muitas mulheres, descritas como donas-de-casa, executavam certos trabalhos remunerados em casa, ou saíam para empregos de tempo parcial. O ajudante, "esse título vale-tudo preferido pelos recenseadores, acaba, em muitos casos, não tendo sido absolutamente um ajudante, mas alguém com profissão bem definida - um vigia nos estaleiros, um operador de guincho nas docas, um poceiro ou encanador na zona rural, um carregador ou um abridor de valas". Inversa-mente, como observou, em 1912, um inspetor de minas: "Você pode ter um cavouqueiro perfeitamente bom trabalhando por três semanas ou um mês mima pedreira, e em outro momento ele é lavrador numa fazenda, ou está trabalhando num serviço inteira-mente diferente".34 Essas complexidades não poderiam ser capta-das por um único item do formulário do censo, mesmo que o recenseador fosse sensível a elas. E uma vez que, para períodos mais recentes, os registros individuais não são acessíveis de modo algum, nesse meio tempo pode também ser mais necessá-177

rio, tanto em sentido quantitativo quanto qualitativo, utilizar a evidência oral:


Qual o valor de se saber que 30% dos trabalhadores de determi-nada fábrica eram poloneses, se sabemos, por investigações anteriores, que essa unidade geográfica era grande demais para ser significativa? Por outro lado, a resposta de um informante de que um único departa-mento, digamos o de polimento, possuia uma mão-de-obra que era 90% polonesa, podia estar errada de alguns pontos, ou mesmo de 10% ou 15%, mas estaria muito mais próxima da verdade do que a estimativa do censo, a qual não teria condições de ir além de especificar que 30% dos trabalhadores da fábrica eram poloneses.35
Analogamente, enquanto os arquivos judiciários e os jornais podem oferecer a melhor evidência relativa a uma disputa sobre direito de servidão, ou ao número de ladrões sentenciados mês a mês, as fontes orais podem ser fundamentais para descobrir de que modo as servidões eram em geral utilizadas, ou como de fato se organizava o sistema de roubos, com seus receptadores, regu-lares ou ocasionais. Em seu estudo sobre Headington Quarry, Ra-phael Samuel achou a história oral mais útil para explicar a estru-tura social e o padrão de vida quotidiana, e menos útil para a compreensão de uma crise, tal como um tumulto político, e uma prolongada controvérsia a respeito da disciplina escolar, em rela-ção aos quais a documentação escrita da época era mais com-pleta. Não obstante, as entrevistas provavelmente proporcionam o melhor método para avaliar os meios comumente utilizados pelos professores de todo o país para manter a disciplina em sala de aula. Um crítico de The Edwardians, argumentando que "re-miniscências interessantes não devem ser apresentadas como substituto para uma compreensão clara das coisas", afirmou que "é muito equivocado dizer que os professores primários edwar-dianos recorriam en masse à punição corporal. O debate sobre a punição corporal nas escolas do Estado havia começado na dé-cada de 1890, se não antes, e muitos Conselhos Escolares haviam começado a restringir seu uso, ainda que o NUT (National Union of Teachers) reclamasse contra sua completa abolição. O conhe178

cimento da revista do NUT, The Schoolmaster, teria indicado isso". Realmente, essa revista mostra que existia o debate. E tam-bém se pode ficar sabendo, pelo School Board Chronicle, que os professores exigiam o direito de empregar a vara como punição. Porém, certamente não é possível obter, desses documentos, ne-nhuma espécie de evidência da proporção em que a punição cor-poral era normalmente tolerada por toda parte, como se pode conseguir a partir dos testemunhos das próprias crianças. 36


Contudo, como sabe qualquer historiador experiente, a sim-ples afirmação ou contra-afirmação de que as fontes da história oral são fidedignas ou não, verdadeiras ou falsas, para este ou aquele fim, obtidas desta ou daquela pessoa, encobrem as ques-tões de real interesse. A natureza da memória coloca muitas ar-madilhas para os incautos, o que freqüentemente explica o ceti-cismo daqueles menos informados a respeito das fontes orais. Porém, oferecem também recompensas inesperadas para um his-toriador que esteja preparado para apreciar a complexidade com que a realidade e o mito, o "objetivo" e o "subjetivo", se mes-clam inextricavelmente em todas as percepções que o ser humano tem do mundo, individual e coletivamente.
O lembrar, numa entrevista é um processo recíproco, que exige compreensão de parte a parti.. O historiador precisa sempre perceber como uma pergunta está sendo respondida da perspectiva de uma outra pessoa. Por exemplo, indagação genérica a respeito daqueles bons - ou maus - velhos tempos estimula mitos e impressões subjetivos e coletivos; enquanto perguntas de pormenor podem conseguir os fatos específicos da vida quotidiana que o historiador pode estar procurando. Porém isto não significa que os mitos e impressões careçam de qua1quer validade. O mal-entendido provém, em parte, exatamente do fato de que o historiador está tentando enxergar mudança de um outro ângulo geração após outra, em vez da de um 'único ciclo de vida. Quando os idosos dizem que se divertiam mais quando crianças, ou que os vizinhos eram mais amigos na-quele tempo, podem perfeitamente estar avaliando de maneira

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adequada sua própria vida, quer as crianças de hoje achem, ou não, os vizinhos igualmente amigos. De maneira semelhantes historiadores se esquecem com muita facilidade de que a maioria das pessoas está menos interessada nos anos do calendário do. que em si mesmas, e que não organizam suas memórias demarcadas por datas.
De modo geral, uma das chaves disso está no interesse comum. Assim, um homem podia estar fascinado pela evolução tecnológica do motor de explosão, durante os anos em que foi mecânico de automóveis, mas consideravelrnente menos infor-mado a respeito da criação de seus filhos. Mas também é verdade que o superinteresse pode também apresentar problemas. Uma preocupação demasiada em justificar o papel por eles desempe-nhado, bem corno um excesso de conhecimento de segunda mão, constitui, sem dúvida, urna das razões por que os políticos são capazes, principalmente se não forem interrogados rigorosamente, de fornecer relatos de certa forma banais sobre incidentes da maior importância. "Minha experiência é de que as memórias são, regra geral, muito falíveis quanto a acontecimentos específi-cos", comenta R. R. James, "e muito iluminadoras quanto ao ca-ráter e à atmosfera, coisas em relação às quais os documentos são inadequados".37 Porém, se o orgulho pessoal e o interesse político tornam necessária cautela na avaliação das recordações dos polí-ticos, com as pessoas comuns é provável que a mera falta de interesse afete suas recordações de acontecimentos nacionais. Melvyn Bragg, por exemplo, descobriu que era inútil tentar cole-tar informações sobre acontecimentos importantes mas históricos, corno leis do Parlamento, ou incidentes internacionais, dos quais o povo de Wigton estava completamente afastado:
Alguém falará da Segunda Guerra Mundial, não em termos de Rommel ou Montgomey ou Eiscnhower, mas de um modo que todos os que serviram sob as ordens desses generais entenderiam. E a pobreza na década de 1930, para uma mulher com seis filhos, não seria em termos dc governos de coalizão e de legislação social e reivindicações sindicais, mas sim de sopa-dos-pobres, sapatos para a família, a lembrança de um dia que foram à praia - o que há de mais comum na vida quotidiana.38

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Deve-se em parte a um menor interesse, mas também a muito menor ensejo de incorporá-los á memória, o fato de que se observa uma tendência geral de se lembrar muito melhor de pro-cessos recorrentes do que de incidentes singulares. Assim, um lavrador, ao se lembrar de um desentendimento com o fazen-deiro, pode achar difícil situar o acontecimento no tempo, e tal-vez confunda os detalhes com os de outra situação semelhante. Mas se se perguntar a ele exatamente como manejava os cavalos quando arava a terra, será muitíssimo raro que se engane. As lembranças infantis do dia da coroação do rei Eduardo VII serão provavelmente muito menos fortes do que as dos locais e dos companheiros de brinquedos costumeiros. Em relação a muitos eventos, as pessoas não sabiam, na ocasião, o que estava aconte-cendo, de modo que seus relatos retrospectivos se basearão, não tanto em sua própria participação, mas no que ficaram sabendo pelos jornais ou por outras pessoas. De fato, justamente por serem essas impressões de segunda mão mais fortes do que sua experiência direta do incidente efêmero original, especialmente se este se tornou um pedaço tradicional da memória da comuni-dade, é que algumas pessoas acabam acreditando que realmente assistiram ao incidente, como um ataque aéreo, que, de fato, ape-nas vivenciaram de segunda mão, por meio dos jornais ou das conversas locais. Como observa David Jenkins sobre as comuni-dades de aldeias do Sudoeste do País de Gales, "o que é lem-brado com maior precisão é o que foi periodicamente relembrado e, em geral, isso é um material que diz respeito às pessoas; a memória é muito menos fidedigna quando relativa a eventos que não se repetiram nem foram constantemente relembrados".39


Certamente é possível reconstruir um evento com evidência oral. Mas provavelmente se mostrará tarefa mais difícil e, a menos que se compreenda essa tendência geral, isso pode levar a graves equívocos. No estudo que realizou sobre o desenvolvi-mento do automóvel popular, produzido em série, de Henry Ford, Allan Nevins teve condições de fazer um uso precioso de evidên-cia oral para dar substância à história que encontrou nos docu181

mentes da companhia. Nevins comenta, como historiador oral veterano, que "toda recordação por alguém de acontecimentos passados não é digna de confiança". Mas ele sabe como utilizar a evidência eficientemente. Por exemplo, pôde utilizá-la para esta-belecer os métodos pessoais de trabalho de Ford na fábrica, como o fato de esquivar-se ao trabalho burocrático e a responder cartas; e para distinguir os diversos papéis dentro da equipe de trabalho que levaram ao projeto fundamental do Modelo T. Contudo, ao datar a introdução da linha de montagem móvel, descobriu que alguns dos trabalhadores da Ford confundiam a primeira "verda-deira tentativa" de 1912 com um "episódico (...) experimento com tração por corda" de quatro anos antes. Outros confirmaram, acer-tadamente, que não houvera urna linha de montagem móvel regu-lar antes da data mais tardia.40


Essa condensação na memória de dois eventos distintos em apenas um constitui fenômeno muito comum. Para alguns fins, a tarefa do historiador será tentar separá-los, levando sutilmente o interrogatório mais a fundo; para outros, porém, justamente essa reorganização da memória será urna indicação preciosa de corno se constrói a consciência de uma pessoa. Assim, quando Sandro Portelli entrevistou Dante Bartolini, veterano militante da cidade industrial de Temi, ao norte de Roma, este lhe contou como, em 1943, os trabalhadores derrubaram os portões da fábrica de muni-ções, pegaram todas as armas e fugiram para as montanhas para juntar-se aos guerrilheiros. De fato, muitos dos trabalhadores ha-viam se juntado aos guerrilheiros, onde instalaram sua própria zona libertada, mas eles não saquearam a fábrica em 1943; muito embora o próprio Bartolini tenha sido um dos que tomaram as armas na fábrica, depois da prisão do líder comunista italiano Togliatti, em 1949. Para Bartolini, a resistência e a luta industrial do pós-guerra fazem ambas parte de urna só história, que se transmite de maneira eloqüente em sua narrativa simbólica. Dentro de um espírito semelhante, quase metade dos metalúrgicos que Portelli entrevistou contaram a história das greves do pós-guerra, localizando a morte de um trabalhador pela polícia

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em 1953, e não em 1949; e também deslocaram o contexto desse incidente de urna manifestação pela paz para os três dias de barri-cadas e de combates nas ruas que se seguiram à demissão de 2 700 homens das usinas metalúrgicas. Na verdade, ninguém foi morto naqueles três dias de 1953. Contudo, como afirma Portelli, os fatos não são o que interessa a respeito do episódio. "A morte de Luigi Trastulli não significaria tanto para o historiador se fosse lembrada 'corretamente'. Afinal de contas, a morte de um trabalhador nas mãos da polícia na Itália do pós-guerra não cons-titui evento tão incomum (...) O que o torna significativo é o modo como ele funciona na memória das pessoas." Trinta, qua-renta anos depois, na longue durée da memória, a morte de Tras-tulli ainda repercute na imaginação popular. "Os fatos de que as pessoas se lembram (e se esquecem) são, eles mesmos, a substân-cia de que é feita a história." A mesma subjetividade que alguns vêem como urna fraqueza das fontes orais pode também fazê-la singularmente valiosa. Pois "a subjetividade é do interesse da história tanto quanto os 'fatos' mais visíveis. O que o informante acredita é, na verdade, um fato (isto é, o fato de que ele acredita nisso) tanto quanto o que realmente' aconteceu."41
Podemos ilustrar isso com urna lembrança da história do mo-vimento operário britânico que, uma vez mais, é "falsa", mas não obstante significativa. Lindsay Morrison e Roy Hay estavam in-vestigando uma greve que ocorreu em 1911 na fábrica da Singer, em Glasgow. Com a ajuda do único trabalhador sobrevivente do operariado da época (com mais de 100 anos de idade) e de seu filho,
montamos uma narrativa sobre como a Singer tentou acabar com a greve. Segundo a versão deles, que ouvimos depois de outras fontes in-dependentes, a companhia pagou aos correios para que fizessem uma entrega especial de cartões-postais a todos os que estavam em greve. A entrega foi feita no domingo á tarde e os cartões comunicavam que se consideraria que todos os que deixassem de se apresentar ao trabalho na segunda-feira de manhã haviam abandonado o emprego na companhia...

Ora, conferimos essa história o mais que pudemos com fontes es-critas, jornais, uma história manuscrita da companhia e relatos da época. Descobrimos que houve uma remessa de cartões-postais, mas que fora

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feita de modo normal e que a mensagem que continham era algo dife-rente. A companhia dizia que quando 60% dos cartões fossem devolvi-dos, significando a disposição dos trabalhadores a voltar ao trabalho nas condições anteriores, então a fábrica seria reaberta. Obviamente, neste caso também existia a pressão, e a firma fazia uma clara tentativa de passar por cima do sindicato. Mas talvez de modo menos desleal. Não obstante, e esse é o ponto que quero acentuar, depois disso, as relações de trabalho na Singer parecem ter ficado condicionadas mais pela pri-meira versão, que parece ter tido ampla circulação e merecido crédito, do que pela segunda. Para algumas finalidades, a ficção captada na evidência oral pode ser mais importante do que "a verdade".42


Os boatos não sobrevivem, a menos que façam sentido para as pessoas. Olhando deste ângulo, como diz Portelli, "não há fon-tes ora is 'falsas'. Uma vez que se haja conferido sua credibili-dade factual com todos os critérios tradicionais da crítica filoló-gica histórica que se aplica a todo documento, a diversidade da história oral encontra-se no fato de que constatações 'não-verda-deiras' continuam a ser psicologicamente 'verdadeiras' e que esses 'erros' anteriores são mais reveladores, por vezes, do que rela-tos factualmente precisos (...) A credibilidade das fontes orais é uma credibilidade diferente (...) A importância do testemunho oral pode estar, muitas vezes, não em seu apego aos fatos, mas antes em sua divergência com eles, ali onde a imaginação e o simbolismo desejam penetrar".43 Em suma, a história não é ape-nas sobre eventos, ou estruturas, ou padrões de comportamento mas também sobre coma são eles vivenciados e lembrados na. imaginação. E parte da história, aquilo que as pessoas imaginam que aconteceu, e também o que acreditam que poderia ter acon-tecido - sua imaginação de um passado alternativo - e pois de um presente alternativo -, pode resultar fundamental quanto aquilo que de fato aconteceu. A construção de uma memória co-letiva pode resultar numa força histórica por si só de imenso poder; como, de maneira tão eloqüente e trágica,, atestam as .lutas épicas dos mineiros, ou as sucessivas perseguições dos judeus, ou a obstinação dos bôeres, ou os três séculos de luta religiosa na Irlanda do Norte

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A construção e a narração da memória do passado, tanto coletiva quanto individual, constitui um processo social ativo que exige ao mesmo tempo engenho e arte, aprendizado com os ou-tros e vigor imaginativo. Nisto, as narrativas são utilizadas, acima de tudo, para caracterizar as comunidades e os indivíduos e para transmitir suas atitudes. Como observou Jobn Berger, a função das narrativas sobre passado e presente, que são contadas numa pequena comunidade, "esse mexerico que é, de fato, uma história fechada, oral e diária", é a de definir a si mesma e a seus membros. "Toda imagem que uma aldeia tem de si mesma é construída (...) de palavras, faladas e lembradas: de opiniões, nar-rativas, relatos de testemunhas visuais, lendas, comentários e boatos. E é uma imagem sempre em elaboração; jamais se pára de trabalhar sobre ela." 44 A autobiografia individual é menos rica de recursos. Ela recorre, dentro de um intervalo de tempo finito, àquilo que alguém vivenciou e aprendeu; e o cerne dela deve ser a experiência direta. As narrativas, porém, em geral são também utilizadas para contar vidas individuais, visando transmitir valo-res; e o que elas transmitem é a verdade simbólica e não os fatos do incidente descrito, que é o que menos importa. A encapsula-ção de antigas atitudes dentro de uma narrativa constitui uma proteção que as torna menos passíveis de representar uma refor-mulação presente e, por isso, faz delas uma evidência especial-mente boa de valores passados. E isso continua a ser assim quando - como ocorre muito comumente na tradição oral cole-tiva e também, por vezes, na narração de vidas individuais - a narrativa recorre não só à reconstrução da experiência imediata, mas também a lendas e narrativas mais antigas. Uma de minhas primeiras entrevistas foi com um morador de Shetland, nascido em 1886, Willie Robertson. Perguntei-lhe quanto de contato ti-nham as pessoas com os lairds (os proprietários de terra) - per-gunta relacionada com o grau de consciência de classe delas. Ele me contou, como se fosse uma história verdadeira, nomeando um determinado proprietário, um conto popular de sepultamento am-plamente difundido na Escócia:

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Ele era Gifford of Busta. Era um dos proprietários de terra do condado - o laird. E antes de ele morrer, deixou instruções de que não devia haver ninguém para assistir seus funerais que não fosse de sua classe, os lairds. Pois bem, toda essa gente tinha que vir de muito longe para os funerais e não havia transporte a menos que viessem a cavalo. E eu tinha estado num funeral no meu tempo, onde eles davam um lanche para a gente: davam uísque, um copo de uísque, ou você podia tomar um copo de vinho. Ora, esses lairds que vieram para o funeral de Gifford ganharam lanche, bebidas; talvez alguma outra coisa também. Daí, ti-nham que levar os restos mortais, o funeral, por quatro ou cinco milhas até o cemitério. Bem, eles sempre paravam e tomavam mais bebida. Daí, um caiu; dois caíram; até que, no fim, só ficaram dois; e eles deitaram ao lado do caixão. Então eles estavam acabados. Daí, um velho lavrador se aproximou e viu os restos mortais do sr. Gifford no caixão largado ali no chão, e aqueles dois homens. Voltou em casa e pegou uma grande corda; ergueu uma das pontas do caixão e pôs a corda cm volta dele; e levou-o até a sepultura e o enterrou sozinho. E os de sua classe não estavam autorizados a comparecer ao funeral. E foi ele que enterrou o laird.


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