A voz do passado



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Em seus textos históricos publicados, os Webb citavam ape-nas as fontes documentais. Porém, dependiam em grande medida de seu trabalho de entrevista para a interpretação global e para o tratamento que davam aos fatos. Cada visita em campo resultava numa avaliação global de determinada organização e num con-junto de retratos muito bem observados das personalidades a ela pertencentes. Os Webb cuidaram de transmitir seu método para a escola britânica de história operária, de que foram fundadores. Page Arnot, por exemplo, seguiu esse método nos trabalhos his-tóricos que realizou sobre os sindicatos de mineiros. As notas sobre a atividade de entrevista que Beatrice Webb publicou em My Apprenticeship (1926) continuam a merecer respeito. E foi por certo seu exemplo que inspirou o importante historiador eco-nômico J. H. Clapham, em 1906, a exigir o treinamento de entre-vistadores para coletar "as lembranças de empresários" que, de

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seu ponto de vista, eram "as melhores autoridades originais" re-lativamente à história econômica recente, e "com eles morrem freqüentemente alguns dos mais importantes registros da histó-ria do século XIX".24 Nada disso, porém, aconteceu; e, na ver-dade, os Webb iriam ter poucos continuadores diretos, até mesmo na história operária.


Contudo, não foi por acaso que essa obra histórica inova-dora realizada pelos Webb fez parte de urna vida inteira dedicada à mudança social e à prática política. Outras notáveis experiên-cias na utilização de material oral por historiadores nesse período se deram em contextos tipicamente excepcionais e, muitas vezes, literalmente nas fronteiras. Assim, à medida que os britânicos ex-pandiram seu controle imperial na África, os missionários e os servidores civis coloniais começaram a registrar as tradições nati-vas locais; e nos anos iniciais deste século, particularmente em Uganda e entre os iorubás nigerianos, prosperaram, entre os pró-prios povos conquistados, textos históricos extraídos em grande parte de sua própria tradição oral. No Pacífico, o missionário norte-americano Sheldon Dibble organizou sua classe de seminário como um grupo de pesquisa de estudantes, enviando-os para "os mais velhos e mais sábios entre os chefes e as pessoas", equi-pados com perguntas que esclarecessem "os fatos principais da história do Havaí", para elaborar sua History of the Sandwich Islands (1843). Na década de 1860, mais ambiciosamente ainda, H. H. Bancroft, cuja firma familiar era a maior proprietária de livrarias, papelarias e editoras do extremo oeste norte-americano, decidiu coletar material em larga escala para seus estudos históri-cos sobre a costa pacífica da Califórnia recentemente colonizada. Por um período de cinqüenta anos, empregou ao todo seiscentos auxiliares que montaram, indexaram e ficharam sua biblioteca. Além de comprar todos os documentos que pudesse encontrar e de enviar seus representantes para importunar famílias e empre-sas em dificuldades financeiras, mobilizou todo um exército de repórteres para obter declarações de testemunhas sobreviventes. O mais hábil desses talvez tenha sido Enrique Cerruti, que falava

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o espanhol. O próprio Bancroft afirmava que sua biblioteca con-tinha "duzentos volumes de narrativas originais de reminiscên-cias de outros tantos antigos californianos, nativos e pioneiros, escritas por eles mesmos, ou recolhidas de seus lábios (...) Havia mil, 5 mil testemunhas ainda vivas da história inicial desta costa, das quais, como antes sugerido, o sr. Bancroft resolveu ver e in-terrogar todos os que fosse possível; mil ele viu e mil seus auxi-liares viram, escrevendo as vívidas nartativas de suas experiên-cias recolhidas de suas próprias bocas"25 Os métodos de Bancroft tinham evidentemente muitas fraquezas, e ele se mostrou incapaz de elaborar o material que colheu de forma suficientemente con-vincente. Porém, com sua disposição de utilizar a evidência oral, estabeleceu um precedente que foi seguido, posteriormente, tanto nos estudos sérios quanto no jornalismo popular local. Em parte, foi desse modo que Frederick Jackson Tumer chegou a sua fa-mosa tese sobre a significação da fronteira aberta. De modo se-melhante, a partir da década de 1920, foi política regular do Re-publican, do Arizona, colher relatos para publicar, entre os "antigos" presentes às reuniões anuais de pioneiros. E certa-mente o próprio Bancroft tivera condições, graças a sua riqueza pessoal, de organizar um dos mais primorosos empreendimentos de pesquisa puramente histórica do século XIX, antecipando al-guns dos gigantescos projetos financiados pública ou privada-mente que ocorreram cem anos depois.


Talvez seja salutar advertir que, muito embora sua biblio-teca constitua hoje em dia o centro do grande campus universitá-rio de Berkeley, Bancroft é muito pouco lembrado como historia-dor. Nisto, difere nitidamente de outro pioneiro da história oral, o historiador francês Jules Michelet. Michelet é lembrado por muito boas razões; e, a esta altura, é preciso que se diga algo mais a respeito do uso que fez da evidência oral. Ele é uma figura notável: não só o principal profissional de sua época, como tam-bém um grande historiador popular; e de grande imaginação para perceber as possibilidades tanto dos arquivos documentais, quanto da tradição oral. Além disso, foi um dos primeiros historiadores a

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introduzir em sua obra uma compreensão da terra e da paisagem. Sua influência foi ampla. Pode-se observá-la em W. G. Hoskins, que acompanha, ao longo das cercas vivas, a formação da paisa-gem inglesa, The Making of the English Landscape (1955); ou, na França, no grande medievalista Marc Bloch, que mescla suas pesquisas nos arquivos com os estudos de padrões, toponímicos e folclore do campo, viajando por toda a zona rural francesa e con-versando com os camponeses que, em inícios do século XX, ainda trabalhavam a terra com alguns dos recursos e com o espí-rito de seus antepassados medievais. O próprio Michelet utilizou a evidência oral, particularmente na História da Revolução Fran-cesa, na qual se deu conta de que os documentos oficiais conser-vavam apenas um dos lados da história política. Em 1846, havia também publicado O povo, notável ensaio sobre o impacto da mecanização sobre as classes sociais da França. O prefácio dessa obra contém uma surpreendente - de fato apaixonada - expo-sição sobre como chegou a seu método e como se beneficiou dele. Estivera colhendo informações fora de Paris durante dez anos, começando em Lyon e, depois, passando a outras cidades das províncias e à zona rural. "Minha investigação entre docu-mentos vivos", escreveu ele, "ensinou-me muita coisa que não se encontra em nossas estatísticas (...) Dificilmente se dará crédito à massa de informação que consegui obter desse modo e que não se encontra em nenhum livro." Foi assim que observou, pela pri-meira vez, o enorme aumento no uso de artigos de linho entre as famílias pobres, e deduziu daí urna importante alteração da estru-tura da própria família:


Esse fato, importante em si mesmo como um progresso no asseio (...) demonstra uma estabilidade cada vez maior nos lares e nas famílias -sobretudo a influência da mulher, que, pouco ganhando por seus pró-prios meios, só pode fazer essa despesa apropriando-se de parte do salá-rio do marido. A mulher, nessas casas, representa a economia, a ordem e a parcimônia (...) Essa foi uma útil indicação da insuficiência dos docu-mentes recolhidos das estatísticas e de outras obras de economia polí-tica, para entender o povo; documentos como esses oferecem resultados

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parciais e artificiais, visões obtidas a partir de um ângulo estreito, que podem ser interpretadas erroneamente.


Michelet sentia-se excepcionalmente à vontade com esse tipo de pesquisa. Isso se deve, em pane, a ter começado a vida na família de um impressor parisiense. Entrevistar levava-o de volta para perto de suas origens sociais, de que se havia afastado pela educação. "Fiz este livro comigo mesmo, com minha vida, e com meu coração. Ele é fruto de minha experiência (...) Ele provém de minha observação e de minhas relações com amigos e vizi-nhos; e o recolhi nas estradas." Aparentemente, sentia-se muito mais feliz conversando com os pobres do que com pessoas da classe a que havia ascendido:
Depois da conversa com homens de gênio e de profunda erudição, a conversa com o povo é certamente a mais instrutiva. Se não se tem possibilidade de conversar com Béranger, Lamennais ou Lamartine, deve-se ir para o campo e bater papo com um camponês. O que há para aprender com a classe média? Quanto aos salons, nunca saí de um deles sem que sentisse o coração apertado e abatido...
Ainda assim, não foi nada fácil para Michelet chegar a uma aceitação franca desse sentimento. Jovem, competitivo, ascendendo socialmente pela educação, tomara-se profundamente fechado. "A experiência feroz na faculdade alterara meu caráter - tomam-me reservado e fechado, tímido e desconfiado (...) Cada vez menos de-sejava a companhia dos homens." Sua redescoberta dos outros e de si mesmo veio com a docência na École Normale:
Aqueles jovens, gentis e confiantes, que acreditavam em mim, re-conciliaram-me com a humanidade (...)

O escritor solitário mergulhava novamente na multidão, escutava seu ruído, e registrava suas palavras. Eram exatamente o mesmo povo (...)

Sem o saber, (meus alunos) haviam me prestado imenso serviço. Se, como historiador, tivesse algum mérito especial que me mantivesse no nível de meus ilustres predecessores, deveria isso à docência que, para mim, foi amizade. Os grandes historiadores foram brilhantes, ponderados e prufundos; quanto a mim, amei mais.

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Os historiadores do século XIX não eram dados á auto-aná-lise. Por isso, Michelet propicia, nos poucos e brilhantes parágra-fos desse prefácio, uma vigorosa indicação de uma barreira cada vez maior para a prática da. história oral: a classe. O século XIX foi, em toda pane, urna época de consciência cada vez maior de classe e de status. Os historiadores, eles mesmos, estavam evo-luindo para uma categoria profissional fechada, recrutada me-diante educação. Os muito raros que, vindos de origens relativa-mente humildes, abriram caminho para o interior dela, muito provavelmente, devido á penosa experiência da mobilidade so-cial, permaneceriam retraídos, como Michelet no início da idade adulta. Dentre esses, Michelet foi excepcional: foram poucos os que tiveram o compromisso político e a personalidade que o fize-ram capaz de voltar a ter contato fácil com o povo. Como vere-mos, o profissionalismo exclusivo, de que foi exemplo a Ale-manha, mostrou ser mais contundente. E exatamente a fecundidade da produção de fontes orais secundárias tomou mais possível, em meados do século XIX, que um grande historiador escrevesse sem utilizar qualquer "documento vivo".


O próprio Michelet sabia disso, como qualquer um de sua época. Em 1831, foi nomeado chefe do setor histórico dos Arqui-vos Nacionais da França, uma coleção imensa que havia sido composta quando a Revolução Francesa "despejou o conteúdo dos mosteiros, castelos e outros locais de guarda em um só local comum". Ele o utilizou para a sua História da França (1833-67), e o posfácio que fez para o segundo volume dessa obra propor-ciona um insight psicológico igualmente notável, desta vez da personalidade do historiador que trabalha com arquivos. É uma espécie de ode fantástica:
A vitória será nossa, pois somos a morte. Tudo gravita para nós e cada giro se faz em nosso benefício. Mais cedo ou mais tarde, conquistado-res e conquistados vêm a nós. Possuímos a monarquia, sã e salva, do alfa ao ômega (...) as chaves da Bastilha, a ata da declaração dos direitos do homem (...)

Quanto a mim, quando entrei pela primeira vez nestas catacumbas de manuscritos, nesta admirável necrópole de monumentos nacionais,

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teria de bom grado exclamado ( Este é meu descanso eterno; aqui habitarei, pois isso é o que tenho desejado!".



Contudo, não tardei a distinguir, em meio ao aparente silêncio destas galerias, um movimento e um murmúrio que não eram os da morte. Estes papéis e pergaminhos, há tanto tempo abandonados, nada mais desejavam do que ser restituídos à luz do dia: pois não são papéis, mas sim vidas de homens, de províncias e de nações (...) Todos viviam e falavam, e rodeavam o autor numa multidão que falava uma centena de línguas (...)

À medida que soprava seu pó, eu os via levantar-se. Erguiam-se do sepulcro, um, a cabeça, o outro, a mão, como no Juízo final de Michelan-gelo, ou na Dança da morte. Essa dança galvânica que realizaram à minha volta foi o que pretendi reproduzir nesta obra.


A idéia de que o documento não é mero papel, mas reali-dade, converte-se aqui num delírio gótico macabro, num pesa-delo romântico. Não obstante, constitui um dos pressupostos psi-cológicos que sustentam a tradição empírica documental na história em geral, e não apenas na França. De forma muito mais cautelosa, mais velada, o mesmo sonho se encontra, por exemplo, naquela antiga obra-prima de erudição profissional inglesa, o Do-mesday Book and Beyond (1897), de F. W. Maitland. "Para que se compreenda a história inglesa é preciso dominar a lei do Do-mesday Book2 Maitland aspira ansiosamente por um futuro em

que os documentos tenham sido todos reorganizados, revistos, analisados. Somente então, escreve ele, "muito gradualmente, se tomará possível que os pensamentos de nossos antepassados, seus pensamentos comuns sobre coisas comuns, sejam pensados uma vez mais...". E, neste caso, o sonho está no próprio título. "O Domesday Book parece-me, de fato, não como o conhecido, mas como o conhecível. Para além, ainda há muita escuridão: mas o caminho para lá é por meio da crônica normanda."26


Foi essa tradição documental que emergiu, durante o século XIX, corno a disciplina fundamental de uma nova história profis-sional. Suas raízes remontam ao ceticismo negativista do Ilumi-nismo, bem como aos sonhos dos românticos relativos aos arquivos. Já estivemos com o historiador escocês William Robertson tomando o café da manhã com o dr. Jobnson. Robertson, em sua

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History of the Reign of Charles V (1769), repreendia publicamente Voltaire por deixar de citar suas fontes. Ele próprio esten-deu-se de maneira incomum para fundamentar sua History of Scotland (1759) em documentos originais, e pôde citar sete ar-quivos dos mais importantes, entre os quais o Museu Britânico, muito embora "aquela Nobre Coleção" não estivesse "ainda aberta ao público.(...) Os arquivos públicos, bem como os repositórios de pessoas privadas, foram esquadrinhados (...) Porém, muitos papéis importantes escaparam à observação de (outros) (...) Era meu dever buscar por eles e julguei essa desagradável tarefa um encargo de imensa utilidade (...) Consultando-os, tive condições, em muitos casos, de corrigir as imprecisões de historiadores ante-riores". Naquele estágio, a pesquisa em arquivos era, pois, enca-rada essência]mente como um dever corretivo desagradável, e não como habilidade criativa. E é esse mesmo ceticismo negati-vista que leva Robertson a rejeitar de saída toda a tradição oral da antiga história escocesa, desprezando-a como "os relatos fabulo-sos de (...) cronistas ignorantes". A história da Escócia anterior ao século X não era digna de estudo. "Para além daquele curto pe-ríodo coberto por crônicas históricas bem comprovadas, tudo é obscuro (...) a região da mera fábula e conjetura, e deve ser intei-ramente desprezado."27


Menos fácil é perceber por que essa abordagem cética teria triunfado no século XIX. Paradoxalmente, o mesmo romantismo que insuflou vida ao método documental pôs em marcha a coleta de folclore por toda a Europa, e recuperou, para as grandes epo-péias e sagas de tradições orais, o respeito que mereciam. Na Grã-Bretanha, o movimento de folclore desenvolveu-se inde-pendentemente da história profissional, em bases literárias ou de estudos de antiguidades, em grande medida de forma amadorís-tica, e adotou, partindo de Darwin, sua própria teoria evolucio-nista particular das "sobrevivências". Na França e na Itália -onde o interesse pode ser localizado no passado pelo menos desde o historiador filósofo Vico, no século XVIII - o folclore tomou-se um ramo de estudo muito mais respeitado. Mas o

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maior apoio que obteve foi na Escandinávia e na Alemanha. Ali, como na Grã-Bretanha, houvera casos anteriores de coleta e pu-blicação, mas a esse interesse inicial pelas coisas antigas sucedeu a elaborada metodologia da etnologia, que utilizava um quadro de referência histórico-geográfico para a documentação e a com-paração sistemáticas. Sob essa forma, como veremos, ela contri-buiu diretamente para o moderno movimento da história oral. Ao mesmo tempo, acabou sendo encarada como um modo impor-tante de recuperar um espirito e uma cultura nacionais perdidos, não só na Escandinávia, mas também na Alemanha.


De igual importância foi o fato de que o movimento român-tico levou, na filosofia da história, a uma aceitação amplamente difundida da importância da história cultural e da necessidade de compreender os diferentes padrões de julgamento de épocas ante-riores e, finalmente, de outras sociedades. Mais uma vez, isto se deu especialmente na Alemanha, onde, quase desde o início, o racionalismo universalista limitadamente ousado do Iluminismo enfrentara resistências, de modo especialmente notável em Her-der, com sua crença de que a essência mesma da história estava em sua plenitude e variedade. Já estavam aí os primeiros passos para um relativismo cultural. E foi de Viena que se originou, em fins do século XIX, a moderna compreensão da personalidade individual por meio da psicologia, acarretando as implicações de uma atitude menos julgadora e mais relativista em relação aos indivíduos na história. Infelizmente, os filósofos da história ale-mães tiveram pouco interesse consistente pela psicologia. Mas certamente já estava ali a possibilidade de uma nova compreen-são do valor histórico das histórias de vida individuais, e pelo menos um filósofo alemão, Wilhelm Dilthey, chegou por vezes muito perto dela, como demonstram algumas de suas reflexões sobre o significado da História:
A autobiografia é a forma mais elevada e mais instrutiva em que nos defrontamos com a compreensão da vida. Nela se encontra o curso exterior, fenomênico, de uma vida, que constitui a base para compreen-der o que a terá produzido no interior de determinado meio ambiente (...)

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Quem busca os fios de ligação na história de sua vida já terá criado, de diferentes pontos de vista, uma coerência naquela vida que agora está pondo em palavras (...) Em sua memória, já terá separado e salientado os momentos que experimentou como significativos; outros, terá deixado perderem-se no esquecimento (...)



Assim, o primeiro problema, de captar e apresentar as conexões históricas, já estará meio resolvido pela vida.28
Como se perdeu essa oportunidade? O que levou o método documental a seu triunfo restritivo, poucas vezes amenizado, exatamente nessas mesmas décadas do exemplo alemão? Eis uma questão que deve ser examinada mais a fundo. Parte da ex-plicação, porém, encontra-se, sem dúvida, na mudança da posi-ção social do historiador. ~O desenvolvimento, no século XIX, de uma profissão académica do historiador trouxe consigo uma po-sição social mais definida e consciente. Isso exigiu também que os historiadores, do mesmo modo que outros profissionais, tives-sem algum tipo de formação diferenciada. E tanto o doutorado em pesquisa quanto o ensino sistemático da metodologia histó-rica tiveram origem na Alemanha. A formação em pesquisa foi iniciada por Leopold von Ranke, após sua nomeação, em 1825, como professor em Berlim. Ranke já tinha 30 anos, mas viveria até os 90 e, no decorrer das décadas seguintes, seu seminário de pesquisa tornou-se o mais importante campo de treinamento em história da Europa. Sob alguns aspectos, ele era uma figura desa-tualizada, um cético, ao mesmo tempo que um romântico, a des-peito de seu fascínio pela Alemanha medieval. A rejeição dos romances de Scott corno não confiáveis fatualmente foi a pri-meira coisa que o levou a decidir que, em seu trabalho, haveria de evitar toda invencionice e ficção, e de apegar-se rigorosamente aos fatos. Mas em sua primeira grande obra-prima, as Histórias das nações latinas e germânicas (1824), apesar da famosa des-truição que ali fez da credibilidade de Guiccardini, e de sua má-xima de que a história devia ser escrita wie es eigentlich gewesen ist (como realmente foi), também se declarou contrário á pes-quisa pela pesquisa; apenas na etapa final de sua obra é que re-correra a arquivos em busca de confirmação. E muito embora a

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História dos papas (1837) se baseasse numa abordagem mais ativa, certamente jamais partilhou da indubitável fascinação pelos arquivos de seu contemporâneo Michelet. De fato, em fase mais avançada de sua vida, estabeleceu uma rotina que evitava qualquer contato direto com arquivos. Os documentos lhe eram trazidos em casa por seus assistentes de pesquisa, que os liam para ele em voz alta. Quando instruído por ele nesse sentido, o assistente fazia uma cópia do documento. Ranke trabalhava dia-riamente das 9h30 da manhã até as duas da tarde com seu pri-meiro assistente, e a partir das 7 da noite com o segundo; no intervalo, fazia uma caminhada pelo parque com um empregado, jantava e repousava um pouco. O que mais importava era a inflexibilidade de seu espírito crítico sistemático. Formou diretamente mais de urna centena de eminentes historiadores universitários alemães. Em seu seminário de pesquisa, embora fosse permitido a cada um escolher o próprio tema, ele os instigava ao trabalho documental medieval, simplesmente por ser este o mais difícil de domar. E quando a formação profissional começou a se disse-minar, primeiro para a França, na década de 1860, e a seguir para outras partes da Europa e para os Estados Unidos, ela se baseava nos pressupostos de Ranke. C. V. Lannglois e Charles Seignobos da Sorbonne iniciaram seu manual clássico, introdução ao estudo da história (1898), com esta afirmação sem reservas: "O historiador trabalha com documentos. (...) Não há substituto para os do-cumentos: se não há documentos, não há historia."29


O método documental não só oferecia um campo ideal de treinamento, como também oferecia três outras vantagens essen-ciais para o historiador profissional. Em primeiro lugar, o teste da capacidade de um jovem acadêmico podia passar a ser a redação de uma monografia, o estudo de um recanto do passado, minús-culo talvez, mas baseado em documentos originais e, por isso, pelo menos nesse sentido, original. Em segundo lugar, isso dava à disciplina um método que lhe era próprio, o qual - diferente-mente da utilização da evidência oral - podia afirmar-se como uma especialidade, não partilhado por outros. Essa auto-identifi-79

cação em torno de um método distinto como a escavação ar-queológica, o levantamento sociológico, a viagem de estudos do antropólogo - é típica do profissionalismo do século XIX e possuía a função adicional de tomar assunto interno a avaliação da competência, não sujeita a julgamento de pessoas de fora. Em terceiro lugar, para o crescente número de historiadores que pre-feriam trancar-se em seus gabinetes a misturar-se quer com a so-ciedade dos ricos e poderosos, quer com as pessoas comuns, a pesquisa documental constituía uma proteção social inestimável. Isolando-se, podiam também arrogar-se uma neutralidade obje-tiva e, pois, chegar até mesmo a crer que seu isolamento em rela-ção ao mundo social era uma virtude profissional positiva. Tam-bém não foi por acaso que o berço desse profissionalismo acadêmico tenha sido a Alemanha do século XIX, onde os professores universitários constituíam um grupo aristocrata restrito de classe média que, pelo isolamento em pequenas cidades de província, pela impotência política e pela aguda consciência de hierarquia existente na Alemanha, estavam, de maneira especialmente ní-tida, isolados das realidades da vida política e social.


Na Grã-Bretanha, o pleno desenvolvimento dessas tendên-cias chegou relativamente tarde. Muito embora os documentos da Constituição tenham sido venerados de maneira bastante firme pelo bispo Stubbs, eminentes estudiosos do final do século XIX, como Thorold Rogers e J. R. Green, não se preocuparam em co-locar notas de rodapé em suas principais obras, e até mesmo a Cambridge Modern History, publicada por lorde Acton em 1902, como "o estágio final na situação do estudo histórico", foi pro-gramada para não ter notas de rodapé30. A instituição acadêmica ainda estava amplamente ligada, por parentesco e carreiras pes-soais, á sociedade londrina e ao mundo político. Assim, Beatrice e Sidney Webb, em meio a seu trabalho político em favor da Poor Law Commission, também estavam escrevendo o capítulo sobre movimentos sociais para a Cambridge Modern History; enquanto R. C. K. Ensor, que escreveu o volume de Oxford, de grande êxito, sobre England 18 70-1914 (1936), passou a maior parte da

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vida no jornalismo, na política e no trabalho social. A famosa destruição da antiga escola whig de história por Lewis Namier em The Structure of Politics at the Accession of George II! só foi publicada em 1929. Somente após a expansão das universidades, posterior à Segunda Guerra Mundial, é que o doutorado em pes-quisa se tomou o método padrão para ingressar na carreira de historiador. Suas grandes vantagens e desvantagens constituem, pois, relativa novidade para os historiadores britânicos.


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