Abuso de direito processual editora afiliada



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que não são passíveis de constrição (art. 942). Igualmente, a parte que age com dolo ou temeridade na propositura de ação cautelar, responde por perdas e danos (art. 688, parágrafo único).

A doutrina, de modo geral, reconhece abuso do direito de demanda nos casos de absolvição de instância (atualmente conheci- dos como causa de extinção do processo sem julgamento do mérito), mas desde que configurado o dolo ou a culpa. E certo que a parte tem direito ao processo. Mas ele não lhe foi dado para realização de objetivos outros, diversos da atuação da vontade da lei (Chiovenda)26 ou da justa composição da lide (Carnelutti). 27 Assim, a ausência de condições da ação, dos pressupostos processuais, da outorga uxória (nos casos em que a lei exige) e da caução às custas, tanto quanto o abandono da causa, a inépcia da inicial e a inércia na citação de terceiros (arts. 91, 179 e 201), são circunstâncias que, na dependência da maneira como procede o autor, podem levar à configuração do abuso. 28 Da mesma forma, quando o réu argúi preliminares manifestamente infundadas, com o claro objetivo de ludibriar ou procrastinar o feito, ou quando ardilosamente nega o fato, configura-se o desvio do processo de sua destinação normal. Pode ocorrer também que o réu, reconhecendo o fato alegado na inicial, venha a apresentar exceções ou interpretações da lei manifestamente descabidas, com o que, quando menos, estar configurado o erro grosseiro, equivalente ao dolo.29

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(26) Giuseppe Chiovenda, Instituições de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. I, Edição Saraiva, 1965, p. 37.

(27) Idem, p. 46.

(28) José Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 1 18-139; no dizer de Luiz Antônio da Costa Carvalho, quando o proponente da ação, dispondo apenas de um simulacro de direito, é portador de uma pretensão aparentemente justa, mas não tem o direito e socorre-se de um interesse legitimo a sua atividade processual será indiscutivelmente ilícita, por que antissocial e injusta. E essa atividade ilícita, cuio fim intencional será o prejuízo de outrem, pode ser culposa ou dolosa, conforme a forma de manifestação do abuso do direito seja resultante de simples culpa ou de má-fé do agente (op. cit., p. 303).

(29) Jose Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 139-142.

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Em segundo lugar, estão as hipóteses de responsabilidade objetiva. E o caso da execução provisória, pendente apelação recebida apenas no efeito devolutivo, que corre por conta e risco de quem a promove (arts. 882, 11 e 883, II).° José Olímpio de Castro Filho entende que, por igual razão, a prática de qualquer ato de força, initio litis, quer no processo de execução, quer em qualquer dos processos especiais, impõe o dever de indenizar, desde que, a final, o direito invocado não seja reconhecido pela sentença. Assim sucede com o ato de penhora do qual advenha comprovado prejuízo,31 bem como nas hipóteses de medida liminar, concedida, inauditur altera pars, em ações possessórias (arts. 371 a 378), cominatórias (arts. 304 a 305) e na ação de nunciação de obra nova (art. 384).32 Em se tratando de ação cautelar, há responsabilidade objetiva, por expressa disposição legal, nos casos em que a parte deixa de propor a ação principal no prazo de trinta dias, com o que se opera a perda da eficácia da medida liminar (art. 677). Fora daí, não se pode cogitar de responsabilidade senão a título de dolo ou culpa (art. 688, parágrafo único).33 O arrematante, ou o fiador, que não pagar o preço da

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(30) Os irmãos Mazeaud, reconhecendo a responsabilidade daquele que promove a execução provisória, entendem que estaria ela fundada na imprudência de executar-se uma sentença ainda não definitiva (Traité de la responsabilité Civile, Delictuelle et Contractuelle, Paris, 1 93 1, vol. 1, p. 294-297, apud Pedro Baptista Martins, O abuso do direito e o ato ilícito, 3. ed., 1997, p. 79, e Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 1, Rio de Janeiro, Forense, 1940, p.44 e 45). Todavia, na doutrina, é pacífico o entendimento de que não se trata de ilícito, porquanto o próprio ordenamento jurídico confere ao titular da ação o direito de fazer valer a sentença ainda não transitada em julgado, ainda que com algumas Iimitações.

(31) Idem, op. cit., p. 172-176; nesse particular, José Olímpio de Castro Filho afasta-se dos autores que fundam a responsabilidade por excesso de penhora no erro grosseiro, equivalente ao dolo, ou na culpa (idem, p. 171), como é o caso de Jorge Americano (op. cit., p. 24).

(32) Idem, p. 172-177.

(33) Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VIII, Rio de Janeiro, Revista Forense, 1959, p.439 a 443), tanto quanto José Olímpio de Castro Filho (op. cit., p. 176-182), consigna que, nesta

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arrematação em três dias, independentemente de culpa ou dolo, está obrigado ao pagamento de multa (art. 978).

Importante dizer que, qualquer que seja o fundamento da responsabilidade pelo dano causado à parte, e independentemente da previsão de multa, custas agravadas etc., haverá sempre o dever de indenizar, quando for reconhecido o abuso do direito de demanda.34 E, nisto, o Código de 39 representa um verdadeiro marco, no qual avultam, a um só tempo, a concepção publicista do processo e um sentido finalístico, 110 dizer de MoacyrAmaral Santos.35 Essa orientação teleológica inspirou, recentemente, uma terceira fase metodológica da teoria do processo, que segue na senda aberta por Liebman, enfatizando a instrumentalidade do processo, que não pode mais ser visto como resultado de um direito de ação puramente abstrato. Sobreleva uma análise mais pontual da pertinência subjetiva do processo (legitimaçäo para agir). A máquina judiciária, cujo custo social tem de ser considerado, não pode, ademais, ser movi- mentada sem que haja um resultado socialmente útil (interesse de agir). Assim, não se cogita mais de uma absoluta independência do processo em relação ao direito material, que se realiza através da prestação da tutela do Estado.36

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questão, viu-se afastada a tese de Calamandrei, que propugnava pela responsabilidade objetiva daquele que, provocando danos à parte adversa, ficasse vencido em ação cautelar. Para o processualista italiano, essa responsabilidade buscava fundamento no fato de que a medida preventiva tem a mesma natureza jurídica da execução provisória.

(34) José Olímpio de Castro Filho, op. cit., p. 200.

(35) MoacyrAmaral Santos, op. cit, p. 215 e 216.

(36) A respeito da terceira fase metodológica do processo, ver, no Brasil, Cândido Rangel Dinamarco, A instrumentalidade do processo, 2. ed., São Paulo, RT, 1 990; José Roberto dos Santos Bedaque, Pressupostos processuais e condições da ação, in Justitia, São Paulo, Ano 53, out./ dez. 1 99 i, vol. 1 56, p. 48-66. Essa visão é caudatária de um movimento pela universalização da justiça, iniciado com Cappelletti, a partir do qual se passou a fazer uma releitura do caráter publicístico da ação, para nele reconhecer também um instrumento eficaz de acesso à ordem jurídica Justa, fruto das necessidades do Estado democrático de direito (Mauro

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A dogmática processual penal também não ficou indiferente à discussão travada entre concretistas e abstracionistas, que surge, dentre outras, na referência feita por Giovanni Leone. Depois de traçar um breve panorama de cada uma destas correntes, o processualista italiano invoca a solução intermediária de Giuseppe Sabatini, para quem titular da ação não é quem tenha razão, nem quem não a tenha, senão somente aquele que tem interesse na eficiência do mandato jurídico.37 Esta posição é muito próxima daquela sustentada por Liebman, que também se encontra a meio caminho, entre concretistas e abstracionistas. Para Enrico Tullio Liebman, o interesse de agir, uma das condições da ação, diz com a idéia de necessidade do recurso às vias judiciais e adequação do meio utilizado.38 Para Tullio Delogu, por sua vez, o interesse de agir é a causa do pedido, pelo que — conclui José Frederico Marques — ausente o interesse de agir, falta justa causa para a propositura da ação penal.39 Assim, tal como ocorre no processo civil, a ação penal, conquanto seja um direito abstrato, está relacionada à pretensão de direito material (causa petendi), que, neste caso, é o fato criminoso contido na imputação. Quando a acusação é manifestamente infundada, falta justa causa para o processo penal.40

Coube a Ada Pellegrini Grinover, no Brasil, o mérito de rever essa perspectiva teórica. A processualista de São Paulo sustenta que

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Cappelietti e Bryant Garth, Acesso à justiça, Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1 .988.

(37) Giuseppe Sabatini, Il publico ministero nel diritto processuale penale, vol. 11, Torino, 1 948, p. 1 1 0, apud Giovanni Leone, Tratado de derecho procesal penal, vol. 1, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa America, 1961,p. 116-118.

(38) Enrico TulIio Liebman, L’azione nella teoria del processo civile in Problemi del Processo Civile, Napole, 1 962, p. 22 e ss.

(39) Tullio Delogu, Contributo alla Teoria della lnammissibilità nel Diritto Processuale Penale, 1 938, p. 82, apud José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal, vol. l, Campinas, Bookseller Editora e Distribuidora, 1997, p. 294.

(40) José Frederico Marques, Elementos de Direito Processual Penal, vol. 11, Campinas, Bookseller, Editora e Distribuidora, 1997, p. 155, 156, 360e361.

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o interesse de agir não tem nenhuma relação com a pretensão de direito material, pois é condição de admissibilidade da ação e não de procedência do pedido, conceitos que, sob a ótica abstracionalista, não podem ser confundidos. Ajusta causa, de outra forma, assim como a fumaça do bom direito no processo cautelar, é conceito que implica uma cognição provisória sobre o mérito, o que se explica pela própria natureza do processo penal, que interfere com direitos da personalidade, espoliando o indivíduo da intimidade e, frequentemente, da dignidade mesma. Daí porque, para evitar a lide temerária, necessária a demonstração da plausibilidade do direito invocado.41

De qualquer forma, quer se identifique justa causa e interesse de agir quer se sustente que o conceito implica antecipação do juízo de mérito, certo é que o processo penal se apresenta como campo fértil para o desenvolvimento da teoria do abuso do direito de demanda, quanto mais quando se considera que aqui vige o princípio inquisitivo, orientando-se a cognição na busca da chamada verdade real. No entanto, por paradoxal que possa parecer, são poucas as contribuições da doutrina e da jurisprudência nessa área dogmática.

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(41) Ada Pellegrini Grinover, As condições da ação penal— uma tentativa de revisão, São Paulo, José Bushatsky, Editor, 1977, p. 103-129. Piero Calamandrei entende que a questão do fumus boni iuris está relacionada com a verossimilhança do direito e dos fatos alegados. O exame cumpre, assim, urna função eliminatória e seletiva, permitindo ao juiz, já no nascedouro, prima facie, afastar as demandas infundadas, as lides temerárias, que representam pesada carga para os tribunais. Diz que, para a moderna teoria processual, na qual a ação aparece como direito cívico Constitucionalmente garantido, este exame não pode ser admitido como regra geral. Todavia, em certos casos, considerado o caráter escandaloso da questão discutida, o legislador italiano previu um juízo sumário acerca da pretensão deduzida, a exemplo do que ocorre nas ações de investigação de paternidade ou de maternidade e nos processos de interdição, pelo qual a demanda pode ser desde logo rechaçada (Piero Calamandrei, Derecho Procesal Civil, vol. 111, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1973, p. 326, 327 e 340-345). Estas idéias, segundo o processualista italiano, estão fundadas em Wilhelm Sauer, cuja obra, Allgemeine Prozessrechtslehre (Heymanns, V. 1 95 1), eleva o princípio da verossimilhança (Wahrscheinlichkeitsprinzip) à condição de uma das categorias básicas da teoria geral do processo (op. cit., 350).

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Isto se explica por duas razões. Em primeiro lugar, o abuso do direito de demanda é quase sempre confundido com a denunciação caluniosa (artigo 339 do Código Penal brasileiro). Trata-se de conceitos diversos, porquanto, como foi visto no primeiro capítulo, há de distinguir-se entre licitude e liceidade. No abuso do direito de demanda está configurado uso anormal de uma faculdade prevista em lei, o que não se confunde com prática criminosa. Em segundo lugar, é forçoso reconhecer que, desde o chamado Período Humanitário do Direito Penal, fruto do jusnaturalismo moderno, o homem tornou-se muito cioso das garantias fundamentais do processo.

Mas há de se convir em que o processo penal pode servir a práticas abusivas, tanto por parte do autor como do réu. Doutrina e jurisprudência têm exigido, para a configuração do abuso do direito de ação, a prova do dolo ou, quando menos, da culpa.42 Se alguém

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(42) A propósito, no caso em que companhia de seguro, fiando-se na palavra da ex-mulher do segurado, requereu instauração de inquérito policial, para apurar incêndio criminoso no estabelecimento comercial objeto da apólice de seguro, e mais que isto, ingressou em juízo contra o suposto criminoso, provocando sua derrocada moral e econômica, decidiu-se que somente intuitos inconfessáveis ou, quando menos, culpa, poderiam justificar a reparação do dano. O fato de o inquérito ter sido arquivado, de a seguradora ter decaído da ação criminal e de ter desisti- do da ação para reaver o valor da indenização, não implica que se reconheça a existência de abuso no direito de demanda. De outra forma — no dizer do acórdão — melhor seria que se fechassem os pretórios (Corte de Apelação do Rio de Janeiro, Terceira Câmara, acórdão de 21/1 1/1930, proferido nos autos da Apelação Civel 790, e publicado no Archivo Judiciário, vol. XVII, jan./fev./mar de 1931, Rio de Janeiro, 1931, p. 28- 33). Em outro repositório de jurisprudência, encontra-se comentário de Estevam Pinto, em que o autor critica a solução dada pelo tribunal. Ainda aqui, o reparo tem matiz nitidamente subjetivista (Revista Forense, vol. LVI, fasc. 327, BeIo Horizonte, janeiro de 1931, p. 275-278. Também de orientação subjetivista, exigindo prova de má-fé ou malícia daquele que dá Iugar à instauração de inquérito policial, é a jurisprudência mais recente, conforme registra Yussef Said Cahali (Dano e indenização, São Paulo, RT, 1 980, p. 1 26 e 1 27). A propósito dessa orientação mais recente ver também Jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo, São Paulo, Lex, Ano 27, setembro de 1993, vol. 148, São Paulo, p. 85-89.

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notícia à polícia a prática de um crime, agindo com leviandade e induzindo a autoridade em erro, ainda que falte algum requisito para a configuração do crime de denunciação caluniosa, responderá pelos danos causados.43 Mas na hipótese de notitia criminis que venha a se mostrar depois, no momento da sentença, infundada, dando lugar à absolvição por insuficiência de provas, desde há muito se entende que não cabe cogitar de abuso, a menos que induzido em erro o Ministério Público, porque é ele o titular da ação penal pública.44

Não se afasta também a hipótese de uso abusivo do poder de denúncia. O exercício da ação penal, já se disse, não existe para atormentar as pessoas, criar embaraços e dificuldades, mas sim para a defesa social. Se o resultado da denúncia é a sujeição de inocente à ação penal, em princípio está caracterizado o abuso.45 E certo que

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(43) J.M. de Carvalho Santos, Código de Processo Civil Interpretado, vol. l, Rio de Janeiro, Livraria e Editora Freitas Bastos, 1940, p. 103 e 104. O autor, passando revista na jurisprudência, diz que os julgados têm-se orientado no sentido de que a lei concede a qualquer cidadão o direito de denunciar os crimes e, para evitar abusos, pune a denúncia calumniosa. E o caso daquele que provoca a prisão de uma pessoa, induzindo em erro o magistrado, para o que lança mão de demarches temerárias e indicações pérfidas.... O mesmo acontece si o denunciante, embora sem agir com má-fé, procedeu com imprudência, acusando com Ieviandade. Cita precedente do Tribunal de Paris, datado de 26 de janeiro de 1 884. Claro está — acrescenta o autor — que do simples fato de a ação ser julgada improcedente não advém a responsabilidade do denunciante. De outra forma, se a ação é julgada procedente, ainda que a denúncia tenha sido feita de má-fé, não haverá lugar para indenização. Por último, desaparece de todo a possibilidade de se julgar temerária a lide criminal se na decisão da causa houve votos vencidos, dando razão ao queixoso, prova de que a iniciativa do denunciante não era desarrazoada.

(44) A respeito, ver parecer da Iavra de Pedro Baptista Martins, datado de 1 936 e publicado na Revista Forense, Rio de Janeiro, Ano XXXIII, vol. LXVIII, fasc. 599, p. 744-747.

(45) Voto proferido pelo Ministro Victor Nunes Leal em ação de Habeas Corpus impetrada pelo advogado Heleno Cláudio Fragoso, transcrito na Revista Trimestral de Jurisprudência, vol. 35, p. 53 1 apud Raimundo Pascoal Barbosa, Abuso de poder no oferecimento da denúncia, RT, São Paulo, Ano 58, agosto de 1969, vol. 406, p. 357-360. Veja-

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não se pode exigir do promotor de justiça prova pré-constituída. A instrução criminal serve exatamente para que a acusação possa pro- var o fato. Impedir o Ministério Público de fazê-lo, com rejeição da denúncia que aponta conduta típica e antijurídica, implica cerceamento do exercício do direito de ação, do qual aquele órgão é titular. 46 Importante, todavia, a noção de justa causa, há pouco desenvolvida.47 A questão extrapola os limites da teoria do abuso do direito, em sentido estrito, para encontrar deslinde, mormente nas hipóteses de recebimento da denúncia, no abuso de poder, tema que transcende os limites do presente trabalho, justificando, de per si, monografia específica, tamanhas suas implicações e desdobramentos, inclusive no que concerne à responsabilidade do Estado e de seus agentes. Quanto mais não fosse, aquilo que o senso comum reconhece como abuso do direito não tem necessariamente essa extensão.

No que concerne ao abuso na utilização dos meios de defesa, não há como imaginar possa o réu responder objetivamente pelos seus excessos, exatamente porque a defesa, por imperativo constitucional, é ampla. Dentro de um viés subjetivista, caberia indagar dos limites da versão apresentada pelo réu, em seu interrogatório, naquilo que possa interferir, de forma leviana, com bens jurídicos de terceiros. Também exigiria exame a fronteira que divide o ânimo de injuriar e o exercício do poder de convencimento por parte do advogado. Interessa também o questionamento acerca da conduta daquele que favorece a ocorrência de nulidades processuais para não ter de enfrentar o mérito, ou mesmo do advogado que sustenta, na base do princípio da eventualidade, dezenas de teses a fim de colher indevido proveito da omissão no exame de uma delas, com a anulação da sentença. Seria de se indagar, igualmente, da existência

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se, mais recentemente, Miguel Reale Jr., Denúncia abusiva e crime de calúnia, in RT, Ano 87, abril de 1998, vol. 750, p. 467-473.

(46) Neste sentido é farta a jurisprudência (RT 237/120; 277/182; 297/166; Jurisprudência Mineira, 2/355, apud Raimundo Pascoal Barbosa, op. cit. p. 357).

(47) A respeito do trancamento da ação penal por falta de justa causa, ver jurisprudência citada por Raimundo Pascoal Barbosa (op. cit., p. 358-360).

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de prática abusiva na argumentação capciosa, dirigida ao tribunal do júri, em nome da amplitude da defesa do réu. O mau vezo de instruir as testemunhas antes do depoimento é questão que também desafia exame. Sem dúvida, age de maneira abusiva aquele que pra- tica atos protelatórios visando, exclusivamente, à prescrição, com o que o processo se desvia de sua finalidade.

O abuso do direito de defesa também guarda estreita relação com as questões da dogmática penal. O princípio da ultra-atividade da lei temporária ou excepcional permite que, mesmo cessada a vigência da norma, sejam os fatos praticados ao tempo de sua incidência julgados de acordo com a norma temporária ou excepcional que, assim, continua a regê-los, mesmo quando revogada. Isto impede que a lei mais benéfica (em tese, retroativa) venha a ser aplicada na fase de julgamento, pois, de outra forma, ver-se-ia comprometida a finalidade repressiva e preventiva do Direito Penal. Bastaria que a defesa, através de expedientes astuciosos, conseguisse procrastinar o feito. 48

Na jurisprudência, há julgados que reconhecem como abusiva a indicação de testemunhas fictícias ou a substituição do rol com o intuito de procrastinar o desfecho do processo. A faculdade de produzir a prova é, a princípio, garantida pela norma (arts. 397 e 405 do CPP), desde que não configure deslealdade processual (TRF — 4.a Região, 1.a Turma, Autos n. 1998.04.01.031223-0-PR, rel.juiz Vladimjr passos de Freitas,j. 27. 10.98, v.u., DJU de 25. 1 1 .98, p. 349), pois a defesa não se confunde com o abuso do direito (STJ, 6a Turma, RHC 94.0004187-8-BA, rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiario, v.u., DJU de 6. l 1 .95, p. 37.594). Atos ou omissões que buscam dificultar a administração da justiça, interferindo na sua autoridade e dignidade, são conhecidos pela justiça norte-americana como contempt

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(48) Cfr. Exposição de Motivos do Código Penal (Decreto-Lei 2.848, de 07/12/40), item 8. A propósito, v. AníbaI Bruno, Direito Penal, 1, Parte Geral, tomo 1 .°, Introdução — Norma penal. Fato punível, 2. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1 959, p. 257 e 258. Tercio Sampaio Ferraz Jr. entende que se está tratando de norma cujos efeitos (eficácia) se projetam para além do período de vigência (Introdução ao Estudo do Direito — Técnica Decisão, Dominação, São Paulo, Atlas, 1 988, p. 1 79- 1 8 1 e 225-228).

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

ofcourt.49 Embora a prática processual, nos sistemas de origem romano-germano-canônica, seja pródiga em exemplos, falta ainda uma elaboração teórica, em matéria de abuso do direito de demanda no processo penal.

2.2 As dificuldades do subjetivismo de base psicológica

A capacidade de desvelar a face obscura da natureza humana não é tarefa que se possa exigir do comum dos homens. Penetrar o recôndito do espírito e da mente, vasculhando escondedouros e desvãos, é trabalho que se pode esperar do cientista, mas não do juiz. E certo, como bem o disse Ripert, que o jurista desde há muito opera com a noção de dolo, componente do ilícito e pressuposto da responsabilidade, pelo que o juiz não teria maiores dificuldades em identificar a malícia da parte. Ilusória se mostra — nas palavras do civilista francês — a tentativa de criar um direito puramente objetivo, que pudesse prescindir do exame das intenções na análise dos fatos.5° A noção de culpa, em sentido estrito, também é velha conhecida dos juristas. Ocorre que o conceito de abuso do direito pressupõe, diferentemente, a prática de ato lícito, com desvio da finalidade para o qual foi concebido. Mais que isto, não basta a simples intenção de prejudicar, presente em muitos campos da atividade humana que envolvem concorrência econômica e social, como lembra Pianiol.51 Faz-se necessário saber — sob a ótica subjetivista — da


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