Por detrás das questões de definição residem problemas centrais da filosofia. A maneira como se concebe a relação pensamento- signo-referente pressupõe uma tomada de posição acerca da essência do conhecimento, questão que divide idealistas e realistas. Intrinsecamente ligada a estas reflexões está a indagação acerca do sentido da vida, da justiça, da verdade etc. Já se disse que a experiência jurídica, longe de constituir monopólio do jurista, interessa também a outros estudiosos, que vão buscar nas reflexões filosóficas o ponto de apoio para a elaboração de seus conceitos regionais. Com o jurista não se passa diferente. Embora a dogmática jurídica desenvolva um estilo de argumentação infenso à problematização, na busca de soluções para o caso concreto, certo é que, no limite, diante da multiplicidade de significados da norma, o operador do Direito, esgotados os recursos de legitimação formal existentes dentro do próprio sistema jurídico (norma, doutrina, jurísprudência), haverá de recorrer às categorias universais da filosofia.
O exame da questão da verdade, que guarda estreita relação com a teoria do abuso do direito processual, não se faz aqui do ponto de vista da tradição filosófica. O que interessa é surpreender o uso da palavra na prática dos processualistas. Importa saber como a dogmática processual elabora o conceito de verdade e como os sujeitos processuais o utilizam, na tentativa de reconhecer significados que indicam determinadas atitudes culturais. E o processo judicial é campo fértil para toda esta reflexão, porque nele estão registradas
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(103) o exemplo é de Wesley C. Salmon (op. cit., p. 127).
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formas particulares de compreensão das coisas, que se revelam no julgamento do produto cultural de cada época. O processo é, assim, fato social, flagrante de um determinado momento histórico. Nele, fórmulas e regras ricas de sentido singularizam o modo de ser e de sentir de um determinado povo. A expressão do indivíduo na sociedade, o papel do Estado na vida das pessoas, tudo isto está refletido em dicotomias que, pelo uso corrente, já se tornaram clássicas na doutrina processual. Fala-se, assim, em concepção individual e social do processo; privada e pública; em princípio inquisitivo e dispositivo etc.104
A verdade, como fórmula metafísica, como um ideal de justiça, conspira contra a exigência social da rápida solução dos litígios. Daí porque os processualistas entendem que a verdade, dentro de uma perspectiva social do processo, é sempre relativa e não absoluta. 105
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(104) A propósito da implicação entre a poiítica e as diversas concepções do processo, v. Piero Calamandrei, Estudios sobre elproceso civil, Buenos Aires, Editorial Bibliografica Argentina, 1961, p. 122-130; Eduardo J. Couture, Estudios de Derecho Procesal Civil, tomo 1, 2. ed., Buenos Aires, Ediciones Depaima, 1978, p. 93- 95 e 169-175; NicetoAlcalá- Zamorra y Castilho, Estudios de Teoria General e Historia del Proceso, tomo 11, Mexico, Universidad Nacional Autónoma de México — Insti- tuto de lnvestigaciones Jurídicas, México, 1974, p. 1 15-128, 245, 249, 255-259, 264, 265 e 279; Mauro Cappelletti, Proceso, Ideologia, Sociedad, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1974, p. 33- 1 27; Erich Döhring, La investigación del estado de los fatos en el proceso. La Prueba, supráctica y apreciación, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1 972 (Colleción Ciencia del Proceso, 61), p. 6-9 e 452-453.
(105) Giuseppe Chiovenda (Instituições de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. 1, São Paulo, Saraiva, 1965, p. 43 e 44; na literatura jurídica nacional, veja-se Moacyr Amaral Santos (Limites às atividades das partes no processo, in RT, São Paulo, Ano 46, outubro de 1 957, vol. 264, p. 22 e 23), Arruda Alvim (Curso de Direito Processual Civil, vol. 11, São Paulo, RT, 1 972, p. 204-208), João Carlos Pestana de Aguiar (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. Iv, São Paulo, RT, 1974, p. 51 e 52) e Celso Agrícola Barbi (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, Rio de Janeiro, Forense, I 99 1, p. 1 74). Para J.M. de Carvalho Mendonça não se há de distinguir entre uma verdade processual
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Há muito mais um juízo de aparência de verdade, de verossimilhança, que se exaure na obediência à forma e ao rito. E o caso do procedimento das legis actiones e do formalismo germânico primitivo. Bastava que o litigante deixasse de reproduzir com absoluta fidelidade as palavras da Iei, ou que deixasse de praticar o ato na forma prescrita, para que perdesse a A verdade como conceito ideal está presente na concepção processual individualista. Aqui, age o juiz como se fosse possível conhecer o exato sentido dos fatos, livre das paixões e dos interesses em jogo. E o exemplo do pro- cesso formulário, de onde brotaram as grandes codificações de Teodosiano e Justiniano, as quais operam classificações na base da definição por gênero e diferença, conforme a lógica apodítica de Aristóteles. Pouco importam os ritos e fórmulas, como ponto terminal dos questionamentos. Interessa o conhecimento da verdade mesma, como categoria transcendental aos fatos sociais.107
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(pseudo-verdade) e uma verdade real (Código de Processo Civil Interpretado, vol. 1, Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1940, p. 108). Este tema será retomado na última seção do presente capítulo.
(106) A respeito, Michel Foucault registra que um erro de gramática, uma troca de palavras invalidava a fórmula e não a verdade do que se pretendia provar. A confirmação de que a prova, sob esta perspectiva, era uma espécie de jogo verbal, vem com o fato de que, no caso de um menor, de um padre ou de uma mulher, o acusado poderia ser substituído por outra pessoa que, mais tarde, como mostra a História do Direito, tomou- se o advogado, vale dizer, aquele que deveria pronunciar as fórmulas no Iugar do acusado. Se o terceiro errasse, o réu perdia o processo (op. cit., p. 59 e 60).
(107) A exposição que segue se inspirou no excelente ensaio de Galeno Lacerda (Processo e Cultura, in Revista de Direito Processual Civil, São Paulo, Saraiva Editores, Ano II,janeiro-junho de 1961, vol. 3, p. 74-86). Registre-se, todavia, o idealismo contido na noção de uma verdade absoluta, acessível somente ao cientista (em contraponto ao magistrado), que se pode colher naquele artigo (op. cit., p. 75 e 81). Em reforço à crítica que ora se apresenta, v. Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções cientificas, São Paulo, Perspectiva, vol. 1 15,1982 (Coleção Debates); AIan Chalmers, O que é ciência, afinal?, São Paulo, Brasiliense, 1993; Hilton Japiassu, Introdução ao pensamento epistemológico, 3. ed., São Paulo, Livraria Francisco Alves Editora S/A, 1979, e
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No direito comum da Idade Média, o processo mostra-se como imperfeita simbiose entre a concepção social contida na formalidade dos ritos, que coloca a tônica na verdade relativa, e a concepção individualista, que coloca a tônica na verdade absoluta. A noção romana da res judicata, mal compreendida, estendeu-se indevida- mente a toda e qualquer interlocutória. Isto deu lugar a um grande número de recursos, com pluralidades de instância, tornando as questões infindáveis. Ademais, qualquer infração formal implicava nulidade insanável. Assim, o processo, que deveria ser meio, tor- nou-sefim em si mesmo, situação que perdurou na Europa até o século XIX e que, no Brasil, até hoje tem repercussões. Explica-se concepção tão persistente e duradoura porque a noção deforma, a partir da ideologia individualista do iluminismo burguês, projetou- se sobre o processo de maneira equivocada.108
Com efeito, os revolucionários burgueses pensavam na garantia dos direitos dos cidadãos. Impressionados com o texto de Montesquieu, que abre o livro 29 do Espírito das Leis dizendo que As formalidades da Justiça são essenciais para a liberdade,
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O mito da neutralidade cientifica, 2. ed., Rio de Janeiro, Imago Editora, 1 98 1 ; Rubem Alves, Filosofia da Ciência — introdução ao jogo e suas regras, 17. ed., São Paulo, Brasiliense; Marilena Chauí, Cultura e Democracia (o discurso competente e outras falas), 3. ed., São Paulo, Moderna, 1982, e Convite à Filosofia, 2. ed., São Paulo, Atica, 1995, p. 252-262 e 278-285; Regina Lúcia de Moraes Morel, A pesquisa científica e seus condicionamentos sociais, Rio de Janeiro, Achiamé, 1979; István Meszáros, Filosofia, Ideologia e Ciência Social: ensaios de negação e afirmação, São Paulo, Ensaio, 1993; Alvin Gouldner, De los ideólogos a los tecnólogos, in La dialetica de la ideologia y la tecnologia, Madrid, Alianza, 1978; Maria José Faria Coracini, Um fazer persuasivo: o discurso subjetivo da ciência, PontesfEduc, 1991; Pedro Demo, Introdução à Metodologia da Ciência, São Paulo, Atlas, 1 994; Carlos Lungarzo, O que é ciência, São Paulo, Brasiliense, 1 989, p. 80 a 84 (Coleção Primeiros Passos, 220).
(108) Galeno Lacerda, op. cit., p. 82 a 84. Para uma crítica à recorribilidade das interlocutórias no Código de Processo Civil atual, que leva ao abuso do direito de recorrer, v. J. J. Calmon de Passos, Direito, poder justiça e processo: julgando os que nos julgam, Rio de Janeiro, Forense, 2000,p. 112.
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esqueceram-se da segunda advertência, contida em outro período, segundo a qual as formalidades não poderiam ser tantas a ponto de colocar em crise a segurança e certeza das relações jurídicas. O apego à forma, que lhering tratava por palladium da liberdade, invadiu o século seguinte, repercutindo no processo judicial brasileiro. Se esse formalismo bem pode servir a uma racionalidade funcional, voltada às finalidades sociais da jurisdição, também se presta à chicana e à má-fé processual, que são a mais egoísta expressão do individualismo.109
É bem de ver que a Reforma de 1994 e 1995, seguindo, neste particular, a orientação das alterações introduzidas pela Lei 6.771, de 27 de março de 1980, tratou de sublinhar a concepção social do processo, que tem em conta um modelo de justiça distributiva. O paradigma do individualismo liberal-burguês, que se inspira no modelo da justiça comutativa, preso a uma noção idealista de verdade, que não se confronta com as práticas sociais, foi aos poucos cedendo espaço para um significado mais compreensivo da realidade social.° Esta orientação se faz sentir no realismo da civil-law com seus diversos matizes, a exemplo do realismo Linguístico de Perelman, da pragmática deviehweg e do culturalismo de Recaséns Siches, Cóssio e Miguel Reale. O processo, como instrumento de
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(109) Idem, p. 84.
(110) Acerca da distinção entrejustiça comutativa ejustiça distributiva, v. Ética Nicomaquea, Livro V, cap. 2 e ss., in Aristóteles-Obras, Madrid, Aguilar S.A de Ediciones, 1967, p. 1226-1239; J.J Calmon de Passos, processualista de formação chiovendiana, criticando o apego da dogmática processual civil a fórmulas engessadas, que se definiram no início do século XX, no contexto da incipiente sociedade de massas, chama a atenção para o surgimento de uma nova racionalidade. Citando Habermas e Foucault, dentre outros filósofos contemporâneos, sustenta que o Direito está situado no universo do discurso e da ação. Somente existe como discurso e comunicação, Iinguagem, processo, fazer, operar... (Direito, poder justiça e processo: julgando os que nos julgam, Revista Forense, 2000, p. 7 a 25; 41-52 e 67-80). A análise pragmática do discurso jurídico inaugura-se, no Brasil, no início dos anos 70, com a obra de Tercio Sampaio Ferraz Jr. (Direito, Retórica e Comunicação: subsídios para uma pragmática do discurso jurídico, São Paulo, Sarai- va, 1973).
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composição dos conflitos, terá de realizar, a um só tempo, a pacificação social e ajustiça. Longe do valor mágico da palavra, do simbolismo da forma, o processo desenvolve-se no terreno da discussão, do debate e da controvérsia, que encontram limite na regra, posta por convenção. Daí porque a verdade é sempre um construído, parcial, relativa e limitada à perspectiva das partes.
A epistemologia de Michel Foucault, que mostra como o pensamento se forma a partir de uma prática do discurso e de uma prática social, permite entender, a partir da tensão entre prova e inquérito, como tais práticas engendram novos conceitos e novas técnicas, o que interfere com o sujeito e com o objeto do conhecimento. Dentre as novas formas de subjetividade, a praxis judiciária — na linha de análise do filósofo francês — está entre as mais importantes. O inquérito (enquête), na forma como foi praticado a partir do século XII, difundiu-se, após o Renascimento, em muitos domínios do saber. Trata-se de um instrumento de recuperação dos fatos, sempre fugidios na memória, que tem base no testemunho, diferente da prova.
Com efeito, a verdade, como aparece em Édipo, é o resultado da reunião, do encaixe, da imbricação de testemunhos diversos e fragmentários. Na obra de Sófocles, o testemunho de Jocasta e dos escravos, somado às lembranças de Edipo, é capaz de trazer a verdade não mais em termos de predição ou de prescrição profética, a exemplo daquela apresentada pelo deus Apolo, mas como reconstituição de uma história. O processo, na democracia grega, nada mais é do que a apropriação da verdade pelo povo, que passa a ter o direito de testemunhar. Não obstante, o método grego do inquérito não chegou à fundação de um conhecimento racional. Com a invasão
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(111) Esta análise foi desenvolvida por Michel Foucault, num ciclo de palestras promovido em maio de 1 973 pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. As reflexões do filósofo francês, que serviram como exercício para a elaboração de Vigiar e Punir, obra editada dois anos depois, foram inicialmente publicadas nos Cadernos da PUC e depois reunidas em único volume (A verdade e as formas jurídicas, Rio de Janeiro, Nau Editora, 1 996). As idéias que seguem estão expostas nas páginas 8, 1 1, 74,75 e 88 desse Iivro.
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dos povos bárbaros, obscureceu-se, ressurgindo depois, com grande vigor, na AIta Idade Média.
No período do velho direito germânico os Iitígios, tal qual sucedia no direito grego arcaico, eram regulamentados pelo jogo da prova.112 A ação, entre os germanos, não era pública.113 Tratava-se de um duelo, de uma oposição entre indivíduos, famílias ou grupos. Destarte, a noção de justiça e paz, que se encontra entre os processualistas modernos, era estranha àquela forma judiciária. No lugar dela, o processo era uma espécie de ritualização da luta, uma extensão dela, uma regulamentação dos gestos de vingança. Não havia aqui uma preocupação com a verdade. Entre os séculos V e X, o direito romano começa a se revitalizar. Sobre as ruínas do Império Romano, surge o Império Carolíngeo. Entretanto, o direito feudal ainda é essencialmente de tipo germânico. Subsistem as formas judiciárias arcaicas, o jogo da prova, o juízo das ordálias, o juramento, que assumia duas configurações, a mítico-religiosa e a social. Na primeira delas, tal como sucedia na Ilíada de Homero, pedia-se ao acusado que prestasse um juramento e, caso não ousasse ou he- sitasse, perdia o processo.4 Na segunda, pessoas vinham ajuízo para jurar que o acusado não praticara a conduta que lhe era atribuí- da. A despeito de não terem assistido aos fatos, vinham para dizer da idoneidade do acusado, palavra que poderia pesar ou não, na dependência da importância social, da influência da pessoa que tes- temunhava sob juramento.5 Havia também provas do tipo verbal,
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(112) Neste sentido também a exposição feita por Giuseppe Chiovenda (lnstituições de Direito Processual Civil, 2. ed., vol. 1, São Paulo, Saraiva, I965,p. I34ess).
(113) Exceção feita aos casos em que a pessoa era acusada de traição ou de homossexualismo (cf. Foucault, op. cit., p. 56).
(114) A propósito, v. Piero Calamandrei, para quem o juramento implica um exame preliminar de credibilidade, uma espécie de seleção prévia, com a qual se cerravam as portas do processo para a lide temerária. Este juízo de verossimilhança encontra, no processo moderno, outras formas de atuação (Derecho Procesal Civil, vol. 111, Buenos Aires, Ediciones Juridicas Europa-America, 1973, p. 341 e 342).
(115) Foucault, op. cit., p. 58 e 59.
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baseadas em fórmulas, em um jogo de palavras que, se pronuncia- das corretamente, funcionavam como indicativo de inocência.
Vê-se, assim, que nesse jogo binário (culpado ou inocente) era a sorte, a destreza, o vigor, a resistência física ou a agilidade intelectual que decidiam o processo. Não havia propriamente a figura do julgador, pois estes mecanismos desenvolviam-se automaticamente. A noção de processo, como persecução da verdade, surge apenas — como já se adiantou — no final do séc. XII e no transcorrer do séc. XIII. As repercussões, no campo científico, dessa nova forma de investigação judicial refletem a importância do Renascimento, como movimento de retomada dos valores da cultura greco-romana. Porém, o inquérito dos fins da Idade Média tem traços que o di- ferenciam da forma que se encontra em Édipo. Subsiste na prática judiciária da Idade Média a monopolização do processo, como instrumento dos poderosos, tal qual ocorria no período bárbaro. Entra em cena, então, a figura do procurador do Rei, que se impõe como poder político e como poder judiciário.
Essa nova figura interfere na forma de solução dos litígios. Surge a sentença, que tem base no flagrante delito ou na inquisitio. E que, quando a apuração do fato se dava tempos depois, era preciso reconstituir as coisas. E isto se fazia reunindo pessoas (sob juramento de dizer a verdade) que tinham visto o fato ou que sabiam por ouvir dizer. Era através de perguntas, Ionge do espectro da violência, da pressão ou da tortura, que se buscava a verdade.6 Esse sistema racional de cognição é fruto de toda uma transformação política, que se reflete em outras instâncias do conhecimento, a exemplo da Geografia, da Astrologia, da Medicina, da Botânica e da Zoologia. Dele se valeram ciências novas, tais como a Economia e a Estatística, entre os séculos XVII e XVIII. Todo o grande movimento cultural que começa a preparar o Renascimento, a partir do século XI, pode ser definido, em parte, como desenvolvimento do inquérito, forma geral de saber. Significativa, neste
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(116) Segundo Foucault, a origem da inquisitio, do saber por inquérito, remonta às chamadas visitas eclesiásticas que se faziam nas paróquias, dioceses e comunidades (op. cit., p. 71).
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sentido, a substituição da Alquimia, baseada no modelo da prova (afrontamento de forças do bem e do mal) pelas modernas ciências, que buscam a verdade.117 Note-se que mesmo as formas de tortura, que subsistem até o chamado Período Humanitário do Direito, do qual Beccaria foi o grande expoente, têm uma preocupação com a confissão, com a busca da verdade.
A partir deste ponto, Foucault desenvolve reflexões sobre as formas de vigilância e controle social, estranhas ao campo temático que se pretende aqui desenvolver. Importa considerar, todavia, a orientação do texto do filósofo francês, que se move no terreno do discurso e da ação. Discurso não mais como busca da verdade, mas como exercício do poder. Como diz Foucault, a grande oposição entre o retórico e o filósofo, como se colhe na tradição platônica, está no desprezo que o filósofo, o homem da verdade, o homem do saber, sempre teve por aquele que não passava de orador, o retórico, o homem de discurso, de opinião, aquele que procura efeitos, aquele que procura conseguir vitórias.118 Se para os sofistas falar, discutir, é procurar a vitória a qualquer preço, mesmo ao preço das mais grosseiras astúcias, é porque, para eles, a prática do discurso não é dissociável do exercício do poder.119
Trata-se agora de saber como a dogmática processual constrói o conceito normativo de verdade. Em que pesem as estreitas relações estabelecidas, no curso de toda a história do pensamento ocidental, entre a filosofia e a teoria geral do direito, é certo, como diz Foucault, que o filósofo sempre foi muito refratário à consideração
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(117) A disputatio, método marcante da filosofia escolástica, consistente na apresentação de uma tese que deveria ser refutada ou defendida na base de argumentos retirados da Bíblia, de Aristóteies, de Platão ou de padres da Igreja Católica, segue o esquema geral da prova, segundo o entendimento de Foucault, no que vai se confrontar com o saber enciclopédico do Renascimento, do tipo de Pico de Mirandola. Não se trata mais de utilizar os autores como autoridade, mas como testemunho; não interessa citá-los, mas sim tê-los lido, alcançando-Ihes o espírito e o sentido (op. cit., p. 77).
(118) Idem, p. 142.
(119) Idem, p. 140.
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da prática do direito, das formasjudiciárias.120 A estas observações deve-se acrescentar que, de sua parte, também o estudioso do direito, impressionado por uma formação legalista, muitas vezes procura manter-se a distância segura do filósofo, isto para não ver abalada sua crença numa suposta verdade objetiva da ciência do direito.121
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(120) Idem, p. 142.
(121) o pandectismo, levando às últimas consequências a formalização do historicismo da Ciência do Direito, acabou por identificar a dogmática jurídica como teoria do direito vigente. Esta teoria vale-se de algumas regras cuja operação, à vista do rigor técnico, somente se presta aos iniciados. A primeira regra do jogo dogmático é a aceitação acrítica do ordenamento vigente. O pressuposto teórico desta aceitação é a crença num princípio de autoridade. Isto conduz a uma segunda regra, da qual advêm importantes consequências, qual seja, a crença na racionalidade do legislador. Em nome desta premissa, o estudioso do direito abandona a simples descrição do ordenamento e passa a justificar o ponto de partida dogmático. Como atributos desta racionalidade é possível citar a singularidade do legislador a sua imortalidade, consciência, onisciência, coerência, onicompreensão, economia, operatividade e precisão. Imortalidade no sentido de que as leis continuam válidas mesmo que os legisladores, responsáveis por sua edição, tenham morrido há muito tempo; singularidade como expressão do fato de que, apesar de muitas normas serem sancionadas por órgãos colegiados, formados por uma pluralidade de pessoas, são elas havidas como emanação de uma única vontade; consciência no sentido de que o legislador racional tem conhecimento de todas as normas que edita, ainda que, em realidade, isto seja impossível; onisciência e onipotência para indicar que o legislador conhece todas as circunstâncias fáticas abarcadas pela lei. A sua vontade, manifestada na edição da norma, permanece vigente indefinidamente, a menos que o próprio Iegislador estabeleça um Iimite; coerência na medida em que sua vontade não pode se contradizer por si própria; onicompreensão no sentido de que nenhuma situação jurídica deixa de ser regulada; economia como indicativo da ausência de redundância entre normas; operativídade numa clara referência ao fato de que as normas expressas pelo legislador são sempre auto-aplicáveis; e, por fim, precisão, para indicar que a vontade do Iegislador tem uma direção unívoca, expurgada de imperfeições linguísticas. Em função destes atributos, surgem algumas consequências de ordem hermenêutica, que serão aqui apenas enunciadas: a) o ordenamento jurídico não tem contradições, lacunas ou equívocos; b) o ordenamento jurídico é operativo,
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