Abuso de direito processual editora afiliada



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(160) Piero Calamandrei, Derecho Procesal Civil, vol 3, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1973, p. 319. A respeito, o autor cita Voltaire (Dictionnaire philosophique, voz Verité), para quem Ies verités historiques ne sont que des probabilités. A respeito das relações entre verdade histórica e verdade jurídica, ver também KarI Engisch, Introdução ao pensamentojurídico, 7. ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996, p. 90 e 91.

(161) Idem, p. 317-319 e 349. Neste ponto, o processualista italiano diz que, mesmo diante do fato, será difícil ao magistrado afirmar que está diante da realidade, porquanto o que vemos é só aparência (idem, p. 319). Calamandrei suscita aqui (sem aprofundar o debate) uma clássica disputa filosófica, travada entre realistas e idealistas, questão que será objeto do terceiro capítulo deste trabalho. Ainda a propósito da distinção entre verdade processual e verdade eínpírica, Calamandrei observa que a coisa julgada impiica apenas a idéia de uma certezajurídica, diversa da certeza psicológica. No momento em que a sentença passa em julga- do, a crise de consciência do juiz perde todo significado. A sentença é um ato de vontade, que se desprende das premissas lógicas. Editada que for, passa a ser norma jurídica. Os fatos continuam sendo os mesmos, e não é certo dizer que, cobertos pelo manto da coisajulgada, haveria quanto a eles presunção de veracidade. A coisa julgada recai sobre relações jurídicas e não sobre o mundo sensível (idem, p. 320-321). A pro- pósito desta discussão, v. nota 1 36. Niklas Luhmann, jurista alemão que desenvolve reflexões no campo da teoria dos sistemas, estabelece distinção entre expectativas cognitivas (que são fáticas) e expectativas normativas (que são contrafáticas). A normajurídica, ainda que manifestamente desconforme às expectativas sociais, impõe-se sob um critério de racionalidade diverso daquele que preside o processo de conhecimento

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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

Está claro que todo juízo de probabilidade e verossimilhança tem um caráter eminentemente relativo. Assim, o direito processual opera com graus de aproximação progressiva da 162 Isto levaria a crer que a distinção entre verdade e verossimilhança, muitas vezes feita pelo legislador (art. 273, caput, do cPC, v.g.), é um nonsens. A doutrina considera, entretanto, que a verossimilhança diz respeito à alegação da parte, ao passo que o juízo de verdade (ainda que reduzido, em última análise, a um juízo de semelhança, sob o ponto de vista psicológico e sociológico), é uma estimativa final, que versa sobre toda a prova produzida. A alegação da parte é a interpretação que ela retira dos fatos. Serve, no processo dispositivo, para fixação do themaprobandum. Não é prova, mas delimitação dos fatos a serem provados. O juízo definitivo de verdade, de outra forma, está pautado no exame da prova que nestes limites foi produzida.163

Ainda que convencido de que a natureza humana é incapaz de alcançar a verdade absoluta — diz Piero Calamandrei — é dever de honestidade empenhar-se com todas as forças para tentar

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(Sociologia do Direito 1, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1983, Bi- blioteca Tempo Universitário, vol. 75, p. 45-76). Este modelo de aná- Iise é significativo para que se possa entender a distinção entre verdade processual e verdade empírica.

(162) Santiago Sentis Melendo, (op. cit., p. 40-59).

(163) Piero Calamandrei, Derecho Procesal Civil, vol. 3, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1973, p. 326-330. A propósito, o autor invoca as lições de Calogero (La lógica del giudice e il suo controllo in cassazione, Padova, Cedam, 1937, p. 57) e de Wilhelm Sauer (Allgemeine Prozessrechtslehre, Heymanns, V., 195 I). Neste ponto, Calamandrei chama a atenção para as restrições que o sistema processual estabelece no que diz respeito a certos tipos de prova (op. cit., p.334- 336), a exemplo do que dispõem as regras dos arts. 400, 11, e 401, ambos do CPC, e a regra do artigo 155 do CPP; no mesmo sentido, Francesco Carnelutti, Estudios de Derecho Procesal, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1952 (Colección Ciencia del Proceso, 20), p.1 14 e 1 15. A respeito, ver o que foi dito na nota 22.

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

aproximar-se, o mais possível, desta meta inatingível.164 Neste sentido, a noção de verdade processual aproxima-se do campo moral. Probatio, a exemplo do verbo probare vem de probus, que quer dizer bom, reto, honrado.165 Estas considerações remetem novamente à questão do dever de lealdade processual. Aqui, dentre outras indagações, retoma-se a discussão acerca do dever de completude, que consiste em saber se a parte estaria obrigada a apresentar até mesmo fatos contrários à sua pretensão, reflexões que se inscrevem em um campo mais abrangente e compreensivo, sugerindo a distinção entre argumentação, adequada às ciências culturais, e demonstração, adequada às ciências ideais, físicas e naturais.

Com efeito, o senso comum dos processualistas orienta-se no sentido de que todos os atores processuais têm o dever de colaborar para que se aplique com exatidão e justiça o direito objetivo. Impregnado, pois, o processo de acentuado sentido ético. E de se ressaltar, porém, que a relação processual, quando se forma, encontra as partes conflitantes em situação psicológica pouco propícia para manter um clima de concórdia.166 Há um senso de disputa que faz lembrar umjogo, na referência de diversos processualistas. Mas na competição, em que pese uns serem mais hábeis do que os outros, também não são permitidas trapaças.167 Entretanto, como reconhece

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(164) Piero Calamandrei, Derecho Procesal IIL Buenos Aires, Edicionesju- rídicas Europa-América, 1973, p. 351.

(165) Santiago Sendes Melendo, op. cit., p. 33.

(166) José Frederico Marques, Instituições de Direito Processtial Civil, vol. 11, Rio de Janeiro, Forense, 1958.

(167) Francesco Carnelutti, Diritto e Processo, Milano, Morano Editore, 1 958, p. 203-205; no mesmo sentido, Guido Calogero, Probità, lealtà, veridicità nelprocesso civile, in Rivista di Diritto Processuale Civile, vol. 1 6, Parte 1, Ano 1 939, XVII-XVIII, Padova, Cedam-Casa Editríce Dott, Antonio Milani, p.1 36- 1 38, e Piero Calamandrei (op. cit., p. 267-279). Também utilizando-se da figura de linguagem, que fez escola na doutrina italia- na, Amíicar de Castro diz que no período do liberalismo, o iuiz não participava do processo: limitava-se a assistí-lo, como se fosse um ár- bitro esportivo, assinalando as faltas dos contendores e controlando as

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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

Calamandrei, principalmente no processo do tipo dispositivo, é muito difícil estabelecer o limite entre uma sagaz defesa e o logro, a trapaça.168

A deslealdade, em seus diversos matizes, tem como ponto comum o objetivo de conseguir provimento jurídico sem que estejam presentes os pressupostos, de fato e de direito, previstos em lei.169 Couture entende que a parte está em juízo para dizer o que

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regras dojogo, paraafinai proclamaro vencedor (op. cit., p. 106). Esta metáfora é comum na doutrina (Gian Antonio Micheli, op. cit., p. 169; Francisco Ramos Méndez, ¿Abuso de derecho en el proceso?, in José Carlos Barbosa Moreira, org., Abuso dos direitosprocessuais, Rio de Janeiro, Forense, 2.000, p. 6; Humberto Theodoro Jr., Abuso de direito processual no ordenamentojurídico brasileiro, in José Carlos Barbosa Moreira, org., Abuso dos direitosprocessuais, Rio de Janeiro, Forense, 2.000, p. 101 e 1 10).

(168) Piero Calamandrei, Derecho Procesal Civil, vol. 3, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1 973, p. 267-269. Diz o processualista que alguns estudiosos, considerando o fato de que, no pro- cesso dispositivo, é a iniciativa das partes que dá o ritmo da sucessão dos atos, consideram as tergiversações, as molestações, os diferimen- tos, vale dizer, toda sorte de chicana, como refinado de boa prática fòrense (idem, p. 275 e 276). Francisco Ramos Méndez sustenta que o processo não é um jogo de crianças nem um instrumento acadêmi- co, mas sim um instrumento para criação do direito. Não há razão nenhuma para implantar neste campo normas de cortesia ou compor- tamento distinto daqueles que regem outros campos sociais. No pro- cesso, que encarna a luta pelo direito, refletem-se as mesmas tensões do resto da sociedade. O razoável é assumi-las (op. cit., p. 6). Susten- ta ainda o autor que não há Iugar para uma ação autoritária dojuiz pois o processo não é uma disputa entre cavalheiros, cheia de flores e mesuras (idem, ibidem). Contra este chamado liberalismo proces- sual está a Escola Eficientista do Processo Civil (Jorge W. Peyrano, Abuso de los derechos procesales, in José Carlos Barbosa Moreira, org., Abuso dos direitos processuais, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 75 e 76).

(169) Idem, p. 270. Pedro Baptista Martins diz que, de acordo com a orienta- ção do Código de 39 (que prevalece no atual), é indiferente a perda ou êxito da ação, para que fique ou não configurado o abuso do direito do

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

sabe, ainda que isto não venha ao encontro daquilo que efetiva- mente queira. Na base da distinção entre saber e querer, diz que nada impede, dentro da racionalidade do sistema dispositivo, que a parte diga o que sabe para depois, em continuação, tentar convencer o juiz do acerto do seu direito, vale dizer, daquilo que quer.170 Sustenta que o dever de dizer a verdade é um princípio implícito, independente de previsão normativa, porque a realiza- ção da justiça, fim perseguido pelo processo, não pode se apoiar na mentira.171

Assim argumentando, o processualista uruguaio coloca a questão da verdade no campo moral. Sugere dois exemplos. O marido promove ação de divórcio, alegando incompatibilidade de gênios, muito embora a infidelidade fosse o verdadeiro moti- vo da ruptura conjugal. E assim o faz para preservar o equilíbrio emocional dos filhos. Estaria, ao faltar com a verdade, proceden- do de maneira desleal? O outro exemplo está no campo do chamado dever de completude. Uma parte pode conduzir o proces- so dizendo objetivamente a verdade e subjetivamente a mentira. Basta que apresente fatos que a favoreçam, omitindo outros que lhe sejam desfavoráveis. Haveria deslealdade processual? Para contornar estas dificuldades, o texto definitivo do Código de Processo italiano, no lugar do dever de dizer a verdade — como

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autor. Conta o caso de uma parte que alterou a via do instrumento de contrato que tinha consigo, supondo que assim melhor consolidaria seu direito. O fato não interferiu no resultado da demanda, da qual se sagrou vencedora. Contudo, mesmo assim, configurada restou a má-fé, pela qual haveria de responder (Comentários ao Código de Processo Civil — Decreto-Lei 1.608, de 18 de seteinbro de 1939, vol. l, Rio de Janeiro, Revista Forense, 1940, p. 200).

(170) Eduardo J. Couture, Estudios de Derecho Procesal Civil, tomo 111, 2. ed., Buenos Aires, Ediciones Depalma, p. 246 e 247.

(171) Idem, p. 249-250. Diz Amílcar de Castro que ninguém dirá que seja uma perfeição processual esgravatar uma demanda, urdir uma cavilação, sutiiizar uma trampa, inventar um engano, fazer uma rede de burlas... para, no seu malvado interesse, enganar o iuiz, sem que este o possa desmascarar (op. cit., p. 107).

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O ABUSO DO DIREITO DAS PARTES

previsto no Projeto Solmi — estabeleceu: As partes, seus procuradores e defensores têm o dever de atuar com probidade e lealdade. 172 Há aqui uma referência à questão da boa-fé, com a qual se encerrou o primeiro capítulo.

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(172) Idem, p. 252-253; a propósito da dificuldade da doutrina em conciliar a base ética do processo com a necessidade da solução prática, v. J.Ramiro Podetti, Teoria y técnica de proceso civil y trilogia estructural de Ia ciencia delproceso civil, Buenos Aires, Ediar, S. A. Editores, 1963, p.142-150. Francesco Carnelutti, tratando do anteprojeto do Código Alemão, não faz referência expressa às dificuldades tão bem aponta- das, acima, por Couture (Estudios de Derecho Procesal, vol. 50, Buenos Aires, Ediciones Jurídicas Europa-America, 1952, p. 171 e 172). E cer- to, todavia, que, integrando comissão também composta por Redenti e Calamandrei, tratou de aiterar a redação do Projeto do Ministro Solmi, comojá registrado (Eduardo J. Couture, op. cit., p. 253). É igualmente certo que, nessa mesma obra (Estudos), Carnelutti adverte para a difi- culdade que o dever de verdade oferece ao construtor do processo civil. Diz que o problema técnico desemboca em um problema ético (idem, p.185e 186).

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A TEORIA DO SIGNIFICADO



SUMÁRIO: 3.1 A cosmovisão da Antiguidade — 3.2 A teoria representativa — 3 .3 A superação da dicotomia idealismo e realismo — 3.4 A consciência reflexiva e a razão alargada.

3.1 A cosmovisão da Antiguidade

Nos dois primeiros capítulos, buscou-se conhecer o senso co- mum teórico dos juristas acerca do abuso do direito, saber como a doutrina e ajurisprudência, na base do caso concreto, constroem esse conceito operacional visando à solução dos conflitos. A elaboração dogmática não se resume a um sistema de conceitos, a uma atividade heurística. Por trás dela estão representações do mundo, imagens que o operador do direito tem de si próprio e do trabalho que produz. Por isso, mais importante que perguntar sobre o conceito de abuso do direito é indagar acerca das diversas concepções, dos diversos empregos que se faz dessa expressão, fórmula sintética, aglutinadora de um sentido que ultrapassa a esfera das definições universais, o plano da consciência, para colocar-se no campo da linguagem. Não se persegue a natureza do conceito de um ponto de vista representativo, como entidade existente fora da prática discursiva, buscando-se entender, isto sim, como as partes utilizam essa categoria jurídica para alcançar determinados objetivos.

O discurso jurídico, como já reconhecia Michel Foucault, move-se muito mais no campo da persuasão do que propriamente no terdo conhecimento. Às vezes, torna-se difícil separar teoria e prática porque, tanto no campo da elaboração teórica quanto na esfera da praxis, está-se diante de enunciados que não se Iimitam a descrever, prescrevendo, outrossim. A análise lingüística do abuso

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

do direito processiiale o uso desse conceito na prática jurídica implicam uma distinção entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação. Não interessa investigar o itinerário percorrido pela mente dos sujeitos processuais para saber como eles elaboram a noção de abuso, nem tampouco vasculhar sua consciência para saber de uma vontade orientada para a verdade ou para a mentira. Em lugar disso, importa conhecer o significado construído pelas práticas sociais, pela situação comunicativa concreta, vale dizer, a maneira pela qual os sujeitos processuais argumentam para justificar uma determinada conduta.

As premissas da crítica ora enunciada serão desenvolvidas neste e nos dois tópicos seguintes. O fio condutor da exposição, como já se fez sentir no cotejo das práticas judiciais com os modelos de verdade, é a dicotomia ernpirismo-racionalismo, que diz com a origem do conhecimento, e realismo-idealismo, que tem a ver com a essência do conhecimento. Para os empiristas, a experiência é a origem única do conhecimento, que só é válido quando verificado por fatos metodicamente comprovados. De outra forma, os racionalistas entendem que a razão tem papel preponderante no processo cognoscitivo. Os fatos, isoladamente, não oferecem condições de certeza. Na concepção realista da razão e do conhecimento, o objeto tem prioridade sobre o sujeito, ao passo que na concepção idealista, a prioridade é do sujeito, ou seja, do pensamento sobre o objeto.

A discussão acerca do significado surge mais propriamente com Platão, muito embora o tema não fosse novo. Dele trataram os sofistas,

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(1)Ajustiflcação é questão de ordem lógica e é feita por meio de um argu- mento, no qual o enunciado, que deve serjustificado, figura como con- clusão. A descoberta do enunciado, em contraste, é um processo psi- cológico que Ieva à sua concepção, defesa e aceitação (Wesley Salmon, Lógica, 6. ed., Rio de Janeiro, Zahar, p. 25). No mesmo sentido, Irving Marmer Copi (lntrodução à Lógica, 2. ed., São Paulo, Mestre Jou, 1 978, p. 20 e 2 1 ). A respeito dessa distinção no campo do direito, ver Recaséns Siches, Tratado General de Filosofia del Dei•echo, 2. ed., México, Edi- torial Porrúa, S.A., 1 96 1, p. 385 e 387, e Manuel Atienza, As razões do direito, São Paulo, Landy, 2000, p. 22-26, 50-52, 84, 177 e 213.

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A TEORIA DO SIGNIFICADO

além de Heráclito, Demócrito e Antístenes. Segundo os comentaristas, o que mais impressiona em Crátio, obra na qual Platão se dedicou ao exame das origens da linguagem, é a veia artística do filósofo ateniense, a sua dialética impecável, que bem se mostra no colóquio entre Crátilo, Hermógenes e Sócrates. A conversa entre eles serve, como sempre, de pretexto para que Platão possa exercitar seu rcfinado espírito de investigação. Trata-se de um diálogo da alma consigo mesma. No lugar de lançar, ex cathedra, princípios e doutrinas, a forma dialogada permite-lhe despertar as idéias que dor- mem no fundo da alma.2 Sócrates é quem dá o tom da conversa. Como sucede nos outros diálogos platônicos, é ele quem conduz o assunto, ouvindo com parcimônia, mas sempre interferindo, quando necessário reconduzir os polemistas às questões que realmente importam.

Crátilo considera que os nomes são exata representação dos objetos, estabelecidos em conformidade com a natureza das coisas, ao passo que Hermógenes, fiel discípulo de Sócrates, sustenta que a linguagem é resultado de uma convenção. Platão, na palavra de Sócrates, inicia fazendo uma defesa da tese do realismo. Chega ao ponto de afirmar que as letras e sílabas incorporarn a forma de cada objeto, muito embora reconheça a influência do tempo e do uso na alteração dessas formas. Depois, faz cair sobre a tese realista todo o peso de sua argumentação, passando à defesa do nominalismo. O nome e o objeto nomeado são coisas distintas. Sendo o nome uma

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(2) A propósito, ver o prefácio de Dias Palmeira à tradução portuguesa da obra de Platão (Crátilo — diálogo sobre (ijusteza dos nomes, 2. ed., Coleção de Clássicos Sá da Costa, Lisboa, Livraria Sá da Costa Edito- ra, 1994, p. 70, 71, 83, 87 e 104). Nele, o teólogo e filósofo português esclarece a interessante relação entre a maiêutica, forma da qual primeiramente se utilizou Sócrates, e o idealismo platônico, que tem na teoria da reminiscência, na tese da transmigração das almas, seu postulado in- dispensável (idem, p. 54, 55 e 57). Segundo registro de Aristóteles, Platão fora discípulo de Crátilo, antes de conhecer Sócrates (Aristóteles, Obras, Metafísica, Livro 1, Cap. 6, 986b/1 987b, Madrid, Aguilar S.A., Ediciones, 1967, p. 919). Anota Francisco de Paula Samaranch, responsável pela tradução das obras de Aristóteles diretamente do grego para a Iíngua espanhola, que Crátilo, por sua vez, foi um dos discípulos de Heráclito e um dos primeiros mestres de Platão (idein, ibidem).

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

imitação do objeto, há possibilidade de o homem se enganar, atri- buindo a um objeto uma imagem que não lhe convém, vale dizer, um nome inexato, falso. Assim, o nome não passa de uma imagem e como tal não pode ser uma reprodução exata do objeto. Segue-se daí que não podemos prescindir das convenções lingüísticas.3

Segundo interpretação de Dias Palmeira, que traduziu o Crátílo para a Iíngua portuguesa, é difícil saber até que ponto Platão expõe sua firme convicção acerca da origem da linguagem, ou até que ponto exercita sua veia humorística, presente sobretudo nas referências irônicas à conformação dos nomes às coisas, a propósito das quais acumula as mais engenhosas e absurdas explicações.4 De qualquer forma, o estudo lingüístico desenvolvido por Platão guarda a marca de seu idealismo, ou também chamado realismo, variações que podem confundir, se não se atentar para o fato de que, na concepção platônica, existe um nome ideal, próprio, natural de cada coisa. A justeza do nome tem em conta, portanto, a coisa em si, como exis- tente no mundo das idéias, na morada da razão, composta de formas eternas e imutáveis, e não o fenômeno da natureza, pertencen- te ao mundo dos sentidos, que está em contínua mudança e que, por isso, é incognoscível.5 Neste ponto, pode-se dizer que Crátilo é

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(3) Platão, Crátilo — diálogo sobre ajusteza dos nomes, 2. ed., Coleção de Clássicos Sá da Costa, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1994, p. 18-80, l 12-154.

(4) Dias Palmeira, Prefácio a Crátilo — diálogo sobre ajusteza dos nomes, 2. ed, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1994, p. 107. Estas explicações ba- seiam-se na correspondência entre a estrutura gramatical e a estrutura ontológica, donde resulta que a construção da Iíngua não é arbitrária (Manfredo Araújo de Oliveira, Reviravolta lingüístico-pragmática na filosofia contelnporânea, Coleção Filosofia, São Paulo, Loyola, 1996, p. 20).

(5) A propósito, v. Platão, A República, Livro VII, S.R, Atenas, 1 958, espe- cialmente p. 245-252, e Livro X, especialmente p. 386-394. Esta interpretação, segundo Dias Palmeira (op. cit., p. 26, nota 10), vem ao en- contro de uma passagem do Hipias Maior onde se lê: Responda-me, Sócrates: todas as coisas que tu chamas belas seriam elas tais, se não existisse o belo em si? De fato, há um idealismo gnoseológico (moderno) e um idealismo ontológico (transcendente). A teoria das idéias

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A TEORIA DO SIGNIFICADO

percursor de Parmênides.6 Entrementes, como dito há pouco, Platão não prescinde da importância das convenções, no que se afasta da pretensão a um isomorfismo entre linguagem e ser, entre estrutura gramatical e estrutura ontológica.7

A reflexão lingüística em Arístóteles não pode ser dissociada do profundo desprezo que nutria pelos sofistas, cujos paradoxos — segundo ele — estavam fundados precisamente na confusão estabelecida entre linguagem e objeto. E certo que Platão, no Górgias, também critica a retórica sofística, pondo a descoberto sua incon- sistência e aparência inofensiva.8 Porém, a compreensão da função designativa e da natureza instrumental da linguagem, que emerge da obra de Platão, coloca as críticas do filósofo em bases diferentes daquelas que orientam o pensamento de Aristóteles. O acesso ao mundo das idéias, na concepção platônica, dá-se independentemente da linguagem, ou seja, ser e linguagem são coisas distintas. Para Aristóteles, em que pese a distinção, certo é que o homem não tem acesso imediato ao ser, que é sempre mediado pela linguagem. Nesse passo, os estudiosos reconhecem uma certa ontologia. Isto porque, conquanto Aristóteles sustente que a linguagem não é a manifesta- ção do real, mas apenas um símbolo, que não toma o lugar da coisa, também admite que os estados da alma, mediadores da linguagem e do ser, têm correspondência com o real. A palavra é símbolo — e não signo — exatamente porque a convenção em torno dela é doadora

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de Platão implica o reconhecimento de que a prévia existência das idéias é que condiciona a possibilidade de ser e conhecer no mundo empírico. Na perspectiva do idealismo moderno, de outra forma, o homem se eleva ao plano das idéias a partir de processos de conhecimento. Em Platão, o idealismo reduz o real ao ideal, o ser à idéia. As idéias passam a ser realidades últimas (Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1 1. ed., 1 986, p. 1 1 9). No mesmo sentido, ver Alaôr Caffé Alves, Lógica —pensamen- toformal e argumentação — elementos para o discurso jurídico, São Paulo, Edipro, 2000, p. 53 e 54.


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