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(82) Idem, p. 85-94. A respeito do abandono definitivo da distinção consta- tativos/performativos, ver a conferência 1 2, particularmente o que o autor diz na página 122 da sua obra.

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

amedrontar, intimidar, inibir novos abusos etc. Este efeito, produzido ou não, depende de fatores outros que não são propriamente lingüísticos e cuio testemunho só o endereçado da ordem pode dar. Está-se aqui no nívelperlocucionário, que consiste em se obter certos efeitos pelo fato de se dizer algo. Mais importante, do ponto de vista lingüístico, é o nível ilocucionário da linguagem, onde se encontra o conjunto de atos que se realizam, específica e imediata- mente, pelo só exercício da fala. Ao dizer advirto, além de anunciar a advertência, o juiz estará realizando a ação prevista na norma geral e abstrata, como por exemplo na regra do artigo 599, 11, do cPc.83

A partir deste novo paradigma, voltado para os efeitos provocados pelos atos de fala nos sentimentos, nas atitudes e ações das pessoas, a lingüística desloca-se da esfera do enunciado para o camp o da práxis simbólica. Embora se admita a importância da função referencial da linguagem, é forçoso reconhecer também que o as- pecto denotativo e cognitivo nem sempre é aquilo que mais interessa quando se trata de saber como a ciência constrói seu objeto. Esta reflexão se mostra sobretudo importante no campo das chamadas ciências praxeológicas, a exemplo da dogmática processual, cujas teorias são muito mais um arsenal de lugares comuns, topoi e con- dições retóricas de sentido do que propriamente um sistema de princípios explicativos. Como registra Austin, não importa a realização do ato de dizer algo (nível locucionário), mas sim o ato realizado ao dizer algo (nível ilocucionário).84 A distinção, dentre outras coisas, denuncia a falácia descritiva contida no imaginário da ciência neutra, desprovida de conteúdos ideológicos, pois quando se afirma alguma coisa está-se conjuntamente realizando atos locucionários e ilocucionários.

Raramente as mensagens verbais preenchem uma única função, vale dizer, possuem um único sentido. As palavras têm de ser até certo ponto explicadas pelo contexto em que são utilizadas na troca

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(83) Nesse exato sentido, v. Carlos Vogt, op. cit., p. 21 e 22.

(84) J. L. Austin, op. cit., p. 89. A distinção, aliás, dá título à décima conferência de Austin.

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

lingüística (ao dizer X, estava fazendoY ou fizY). Por isso, mesmo diante de sentenças constatativas, nem sempre se tem condições de dizer se determinada asserção é falsa ou verdadeira. É que na vida real, diferentemente das situações mais simples, consideradas na teoria lógica, há de levar-se em conta os fins, os propósitos da afir- mação. O enunciado A França é hexagonal talvez seja suficientemente claro para um general, mas não o será para um cartógrafo. Trata-se de uma declaração esquemática, de uma descrição aproxi- mada e não de uma descrição verdadeira ou falsa. O mesmo se passa quanto a dizer ou não a verdade, na condição de parte, em um processojudicial, pois o que sejulga verdadeiro em um tribunal pode não ser considerado do mesmo modo no mundo dos fatos reais.85

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(85) Exemplo disto é o caso do pai e da filha que movem, um contra o outro, ação revisional de alimentos (na qual a filha figura como ré), e ação de execução de alimentos (na qual o pai figura como executado). Na ação de execução, a filha, representada por sua mãe, declinou domicílio na Cidade de ltapecerica da Serra, onde a genitora exerce o comércio, figurando como sócia com poderes de gerência (arts. 98 e 100, 11, do CPC e art. 36, caput, do CC de 1916). Entretanto, citada por hora certa na ação revisional, a menor suscitou a incompetência do Juízo da Comarca de Itapecerica da Serra, alegando, para os fins previstos no art. 94 do CPC, ser domiciliada em Curitiba, cidade na qual inclusive residia em companhia da mãe, O autor requereu fosse a filha condenada como litigante de má-fé, pois faltara com a verdade na ação de execução, ao declinar seu domicílio em Itapecerica. Defendeu-se a menor, dizendo que já na época da propositura da ação de execução de alimentos residia em Curitiba, local de onde sua genitora administrava a empresa, valendo-se dos recursos da informática. Disse que abriu mão do foro especial, na execução de alimentos, declinando domicílio na Cidade de Itapecerica, porque nesta localidade sua mãe exerce atos de comércio. Seguiu-se decisão no sentido de que, ainda que não se possa cogitar de pluralidade de domicílios (pois não há de se falar em domicílio necessário daquele que pratica atos de comércio), e muito embora não se justificasse a declaração de domicílio na Cidade de Itapecerica da Serra, pois o foro especial é estipulado em favor de quem promove a execução de alimentos (no caso, a filha), certo é que a exeqüente não abusou do seu direito quando propôs a demanda no domicílio do pai, ainda que sob desnecessária e ambígua justificação. Outrossim, está provado, por farta documentação, que a menor reside mesmo, comojá residia, em Curitiba,

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Em outros termos, os enunciados jurídicos tem de ser interpretados no nível ilocucionário. Não basta o aspecto locucionário, a noção supersimplificada de correspondência com os fatos. Quando a parte, ou seu advogado, faz uma afirmação nos autos, é necessário estabelecer, a propósito por exemplo da aplicação do dispos- to no artigo 14, I, do cpc ou do disposto no artigo 34, XV, da Lei 8.906/94, a relação entre aquilo que foi dito e os diversos tipos de atos ilocucionários. Em resumo, não basta saber o que a parte ou o advogado disse, mas sim o que fizeram ao dizê-lo (uma petição, um protesto, um registro, um desafio, uma exortação, uma reclamação, um desabafo, uma advertência, uma declaração, uma descrição, um relato, uma interpretação, uma estimativa etc.).86

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em companhia da mãe, foro competente para a ação revisional de alimentos — art. 94 do CPC (TJSão Paulo, 7. Câmara de Direito Privado, AI 2 1 1 .370-4/6, ReI. Julio Vidal, . 3 1 . 1 0.200 1). Como diz Austin, é necessário entender que verdadeiro e falso, assim como livre e não Iivre, não designam, de forma alguma, algo simples. Tais palavras só representam uma dimensão geral de que, nas circunstâncias dadas, em relação a um determinado tipo de ouvinte, para certos fins e com certas intenções, o que foi dito era adequado ou correto, em oposição a algo incorreto. Neste ponto, Austin deixa claro que não há aqui qualquer referência às teorias pragmáticas de verdade, definidas por filósofos americanos como Peirce e William James, segundo as quais, a grosso modo, o critério de verdade de uma sentença são os resultados de sua aplicação prática. Tampouco se está sustentando um ponto de vista utilitarista (verdadeiro é o que dá bons resultados). O que Austin sustenta é que a verdade ou a falsidade de uma declaração não depende unicamente do significado das palavras, mas também do tipo de atos que, ao proferi-las, estamos realizando e das circunstâncias em que os realizamos (J, L. Austin, op. cit., p. 1 19). O significado também não depende de ser falsa ou verdadeira a expressão. Duas sentenças, com o mesmo sujeito e o mesmo predicado, uma verdadeira e outra falsa, são contraditórias. Não obstante, pode ocorrer que as duas tenham sentido. O contexto dos fatos dirá qual delas é verdadeira e qual é falsa (Alaôr Caffé Alves, op. cit., p. 355 e 356).

(86) Dispõe o artigo 14, I, do CPC: Compete às partes e aos seus procuradores expor os fatos em iuízo conforme a verdade. Outrossim, dispõe o artigo 34, XV, da Lei Federal 8.906/94: Constitui infração disciplinar fazer, em nome do constituinte, sem autorização escrita deste, im-

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

Veja-se que a infelicidade não é atributo exclusivo dos proferi- mentos performativos, aplicando-se também aos constatativos, às declarações. Por isso, a burocracia e a justiça são muito ciosas do emprego de determinadas fórmulas tais como pelo presente advirto, pelo presente declaro, pelo presente consigno. No dizer de Austin,87 estas expressões introdutórias servem para indicar de maneira clara a realização do ato de advertir, declarar, consignar, etc. Contudo, estes performativos explícitos e altamente formais não são regra no direito. No mais das vezes, um certo grau de ambigüi- dade e de vagueza faz parte do discurso jurídico. Há um vasto leque de interpretações desse espaço retórico no campo do direito, que vão desde a impostura, expressão da manipulação flagrante e grosseira promovida pelas instituições burguesas, até o chamado realismo jurídico, sob cuja denominação encontram-se as diversas vertentes do psicologismo (a exemplo do realismo americano de Jerome Frank), da linguística e do culturalismo.88

O próprio curso da presente exposição deixa entrever o mecanicismo contido nas leituras marxistas que reduzem o direito à pura

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putação a terceiro de fato definido como crime. Austin, particularmente na sétima conferência (aqui ainda na base da dicotomia constatativos/ performativos) e na décima segunda conferência, tenta formular uma classificação de verbos com base na sua força ilocucionária. Chega, assim, a cinco classes: veriditivos, exercitivos, comissivos, comportamentais e expositivos, mencionando, com relação a cada um deles, uma série de exemplos (Austin, op. cit., p. 77 a 83 e p. 121 a 132). Registra o autor que uma teoria geral dos atos de fala haverá de prescindir da noção da pureza dos performativos, com o que se desfaz a dicotomia há pouco mencionada.

(87) J. L. Austin, op. cit., p. 60.

(88) Q realismo psicológico representa uma das formas de superação da Escola da Exegese, processo que se iniciou com as críticas que a Escola do Direito Livre (Ehrlich e Zitelmann) e a Escola da Livre Investigação Científica (Geny) lançaram contra ajurisprudência dos conceitos. O realismo psicológico, deixando de lado o eiemento normativo e axiológico da experiência jurídica, acaba reduzindo o sentido da norma à vontade do juiz. Este reducionismo implica a recusa do reconhecimento de qualquer aspecto racional na elaboração das sentençasjudiciais, orientadas tão só por fatores irracionais, sentimentos e preconceitos.

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dominação. Outrossim, o corte epistemológico que vem sendo delineado desde o início do presente trabalho exclui considerações que estão no campo do psicologismo. Não basta saber o que se passa no âmago do julgador, indagar dos seus sentimentos e preconceitos. Esta análise é ainda parcial, pois substitui a mítica da razão pelo subjetivismo do julgador. De outra forma, é preciso entender de que maneira as partes e o juiz interagem no processo, na base de fórmulas tópicas orientadas para a decisão. E apraxis, desenvolvida atra- vés de uma linguagem intersubjetiva, que permitirá identificar os limites entre o uso normal e o uso abusivo do direito de demanda. A verdade processual, tal qual sucedia na retórica clássica, tem de ser procurada na alteridade, na relação entre os atores do processo. Os critérios para distinguir ilícito e abuso estão no mundo da ação prática, pelo que a significação do abuso processual somente pode ser mostrada e não demonstrada.

Hägerström, fundador do chamado realismo escandinavo, uma das correntes do realismo lingüístico, sustenta, de um ponto de vista antimetafísico e empirista, que certas categorias jurídicas, a exemplo do direito subjetivo e do dever jurídico, são palavras ocas porque não podem ser identificadas com nenhum fato. Sem embargo, devido a certas razões psicológicas (que não cabe aqui explicar) as pessoas têm a ilusão de que esses conceitos estão ligados, de alguma forma mística e sobrenatural, àrealidade. Vilhelm Lundstedt, partindo da investigações de Hägerström, Iançou uma vigorosa crítica à teoriajurídica, também de um ponto de vista da teoria refe- rencial do significado. Desqualificou o direito como ciência, enveredando por uma análise psicologista da coação, a partir da qual busca explicar o sentido social do direito subjetivo e do dever jurídico. Mas o que a análise da chamada Escola de Upsala revela de significativo é que as categorias jurídicas, destituídas de referência à realidade, cumprem determinadas funções na aplicação do direito. Neste sentido se desenvolve a reflexão de Karl Olivecrona, que seguindo as trilhas da filosofia analítica, mostra como determinadas palavras e conceitos jurídicos acabani estimulando ações e atitudes.89

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(89) Karl Olivecrona, Lenguajejurídico y realidad, Buenos Aires, Centro Editor de América Latina S.A,, BuenosAires, 1 968 (Colección Filosofia

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

Com efeito, certos conceitos, apesar de não terem referência, dão a impressão de transmitir informações acerca do real, estimulando ações, omissões, provocando sentimentos. As chamadas palavras ocas, para usar a expressão de Hägerström, cumprem im- portantes funções sociais, do que é exemplo a unidade monetária, categoria que permite todo tipo de intercâmbio de bens e serviços.90 No campo jurídico, a locução abuso do direito processual é típico exemplo de uma expressão semanticamente vazia. A tentativa de buscar seu sentido em uma álgebra booleana do tipo verdadeiro/ falso ou lícito/ilícito leva àquilo que Austin chamou de perplexi- dade. A expressão abuso do direito não descreve nada. Em vão, seguem os processualistas analisando-a como se fosse utilizada para descrever fatos. De outra forma, é preciso reconhecer que, quando ojuiz declara abusiva uma determinada conduta, está realizando um ato de criação. Aqui, dependendo do contexto, a prestação jurisdicional pode inclusive transpor os limites objetivos da demanda, frus- trando a expectativa das partes (art. 129 do CPC). Mas é necessário que o julgador esteja atento às condições de uso dos proferimentos, que determinam o significado. Não importa a verdade do que se passou no mundo fenomênico, contanto que o editor da norma consiga legitimar o conteúdo da sentença que declarou abusiva a con- duta das partes, garantido, assim, a eficácia do ato, aquilo que Austin

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y Derecho, vol. 2), p. 20-59. Diga-se que o autor segue os lineamentos do positivismo lógico, ao considerar que apenas as expressões que fazem referência à realidade fática têm sentido. Mas é inegável que alguns enunciados metafísicos, destituídos de base empírica, acabam justificando decisões judiciais de um ponto de vista supostamente racional, como será visto no próximo capitulo.

(90) Assim funciona a economia e nunca ocorreu a quem quer que fosse perguntar acerca dos supostos objetos designados pela palavra Real ou Libra. Como diz Olivecrona, a função da palavra que designa a unidade monetária é técnica, interferindo com outros conceitos que transcen- dem o aspecto semântico, a exemplo do cheque, das letras de câmbio, dos contratos bancários etc. (Olivecrona, op. cit., p. 37 e 38). A forma como os recentes planos econômicos brasileiros interferiram na vida das pessoas, sob todos os aspectos, é a mais clara demonstração do sigflificado das chamadas palavras ocas.

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

conhece comofelicidade. De outra forma, corre-se o risco de criar uma questão recorrente, onde as partes passam a acusar o juiz de abuso de poder ou, o que se revela ainda mais desagregador, passam a investir contra a própria autoridade judicial.91

Ao lado do caráter mágico das formas e fórmulas processuais, que remontam aojogo daprova, aojuízo das ordálias e ao juramento, expressões do processo arcaico tão bem retratadas na Ilíada, como visto no segundo capítulo, é importante reconhecer o caráter intersubjetivo das expressões jurídicas performativas, que transforma simples ações do cotidiano, ou um jogo de palavras destituído de sentido, em condutas juridicamente relevantes, das quais decorre uma série de conseqüências, quando praticadas ou proferidas dentro de um determinado contexto. Embora não se possa cogitar da verdade dos enunciados jurídicos, que não são analíticos e nem podem ser comprovados empiricamente, é perfeitamente possível falar em uma relação de conformidade do uso desses enunciados com regras jurídicas e sociais. Os conceitos jurídicos, a exemplo do abuso dos direitos processuais, funcionam, pois, como núcleos aglutinadores de sentido que operam paráfrases e redefinições de um ponto de vista realizativo (para usar o neologismo empregado por Austin). Desse ponto de convergência partem, em numerosas linhas, regras sobre responsabilidade civil, responsabilidade penal etc. Sem esta perspectiva, seria necessário construir numero- sas linhas diretas, numa espécie de teia de relações de significado,

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(91) Tercio Sampaio Ferraz Jr., em sua pragmática da comunicação normativa, reconhece aqui duas atitudes: a rejeição, que se coloca ainda no campo das regras institucionais, desafiando soluções que podem ser encontradas no âmbito do sistemajurídico, e a desconfirmação, que coloca em crise a própria autoridade e, por via de conseqüência até mesmo o sistema (Teoria da Norma Jurídica: ensaio de pragmática (da comunicação normativa, Rio de Janeiro, Forense, 1978, p. 56 e 57). Olivecrona considera que não há sentido na indagação acerca da verdade ou da falsidade dos cnnceitos jurídicos, das chamadas palavras ocas. Importante, isto sim, é a crença das pessoas na realidade de um direito de propriedade, de um deverjurídico, enfim, a crença na função informativa do discurso jurídico. (Olivecrona, op. cit., p. 50 e 52).

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AS TEORIAS PRAGMÁTICAS

o que dificultaria sobremaneira o consenso em torno de determinadas questões.92

O modelo epistemológico sugerido pela teoria dos atos de fala desemboca, entretanto, em um dilema, pois propõe o exame dos pob1emas filosóficos na base da análise do uso das palavras envolvidas nesses mesmos problemas, o que coloca a teoria da ciência na rnira das críticas que ela se propôs a formular. Em outras palavras, torna-se difícil a distinção entre a metalinguagem epistemológica (teoria crítica da ciência) e a ciência empírica da linguagem, o que em última análise revela a dificuldade em estabelecer a fundamentação última do pensar e do agir.93 Estas reflexões têm um grau de

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(92) Karl Olivecrona, op. cit., p. 57 e 58. Alf Ross sugere a mesma imagem, em um texto curioso, no qual procura reproduzir, na base da alegoria de uma tribo primitiva (cujo suposto nome é o anagrama de fantasia, habitante de uma ilha cuja denominação, por sua vez, é o anagrama de ilusão), o tema das chamadas palavras ocas. Apresenta o caso como verídico, dizendo que a tribo fora descoberta por um missionário sueco, que ficou impressionado com o poder mágico das palavras utilizadas pelos primitivos, capazes de desempenhar as mesmas funções da língua natural, muito embora tais palavras (a exemplo de tû-tû, que dá nome ao texto) fossem destituídas de qualquer referência semântica. Depois de esclarecer que tudo não passava de uma fábula, diz que o tal missionário era uma alusão a Lundstedt, a quem se deve o mérito de ter acentuado este poder operacional das palavras ocas no campo do direito. A fonte de inspiração para a alegoria foi reconhecidamente a analogia que Olivecrona estabelece entre essas palavras ocas e o pensamento mágico primitivo. A partir daí, Alf Ross passa a analisar as diversas ligações que se pode estabelecer entre cada um dos conceitos jurídicos, semanticamente esvaziados, e uma pluralidade de consequências jurídicas, chegando à conclusão de que aquelas cumprem, dentro da ciência jurídica, o objetivo de simplificar as relaçõesjurídicas, a exemplo do que ocorre com núcleos significativos tais como crédito, território, propriedade, os quais têm a rnesrna função da palavra tû-tû (Alf Ross, Tû-Tû, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1 976). Ainda sobre o papel dos núcleos significativos, v. Tercio Sampaio Ferraz Jr., Introdução ao Estudo do Direito — técnica, (lecisão e dorninação, São Paulo, Atlas, 1988, p. 104-109.

(93) Esta questão é levantada por Danilo Marcondes de Souza Filho, Filosofia, Linguagern e Comunicação, São Pauio, 1 984, p. 1 7, apud Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit., p. 169.

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

refinamento do qual ainda não se aperceberam os juristas. Aliás, o problema do conhecimento jurídico já se coloca no nível da relação ciência-objeto, que embora seja anterior à relação teoria da ciência-ciência, com ela muitas vezes se confunde. E o que se vê, por exemplo, na Teoria Pura do Direito. Está claro, entretanto, que uma teoria instrumental da linguagemjurídica sugere as mesmas dificuldades enfrentadas por Austin, as quais abrem caminho para a análise dos pressupostos de uma teoria processual dentro do agir comunicativo.

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A RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA DO ABUSO DOS DIREITOS PROCESSUAIS



SUMÁRIO: 5. 1 A razão instrumental e os direitos absolutos — 5.2 A racionalidade instrumental e as novas demandas sociais — 5.3 A retórica no campo da ação estratégica e da ação comunicativa — 5.4 A possibilidade do agir comunicativo no processo judicial.

5.1 A razão instrumental e os direitos absolutos

A discussão acerca do abuso do direito, desenvolvida pela dogmática jurídica, tem nítida feição instrumental, que se insere no contexto do pensamento jurídico da sociedade industrial como cálculo do dissenso generalizado, uma espécie de désarmer dos conflitos sociais que se revelam como exprssão das contradições do modo de produção capitalista. A chamada teoria do abuso do direi- to surge, assim, no cenário das grandes cidades que integram o pro- jeto do controle econômico e político da classe burguesa, vale di- zer, da classe dos capitalistas modernos, que possuem os meios de produção social e os empregados assalariados. Com o surgimento dos grandes centros urbanos — dizem Marx e Engels — a burguesia coloca obstáculos cada vez maiores à dispersão da população, dos meios de produção e da propriedade, com o que promove a centralização política. Províncias independentes, províncias com interesses, leis, governos e sistemas de impostos separados foram aglomeradas em um bloco, em uma nação com um governo, um código de leis, um interesse nacional de classe, uma fronteira e uma tarifa alfandegária... A burguesia subjugou o país às leis das cidades. Criou cidades enormes; aumentou em grande escala a população urbana,

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se comparada à rural, e assim resgatou uma considerável parte da população da idiotia da vida rural. 1

O nascedouro dessa dominação legal é o ideário liberal-burguês do Estado de Direito. Ajttstiça que os iluministas perseguem tem pontos de contato com a concepção marxista. No Manifesto Comunista colhe-se a idéia de que os homens são propensos à cooperação, desde que não submetidos a relações alienantes, O proletaria- do, como classe universal, seria capaz de superar a sociedade de classes, rumo à sociedade comunista, despida de qualquer forma de alienação. Para Marx, a idéia de justiça excluía o direito posto, porque ele está submetido à estmtura econômica. O direito, para serjus- to, tem de ser universalmente válido e etemo. De outra forma, o direi- to posto é particular, realizando apenas interesses das classes domi- nantes Vê-se, pois, implícita em Marx, a noção de um direito natural, que também é o ponto de partida das elaborações iluministas.2

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(1) KarI Marx e Friedrich Engels, O manifesto comunista, Coleção Leitura, 3. ed, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1998, p. 15 e 16.


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