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fiel à metodologia positivista, dá à noção de consciência coletiva interpretação diversa.
Partindo do conceito durkheimiano de solidariedade, Léon Duguit sustenta que ela está fundada no sentimento de sociabilidade e no sentimento de justiça, realidades recolhidas a partir da observação dos fatos. Para ele, a formulação de Durkheim é causalista, visto que, embora a norma social resulte do fato, assim como a lei biológica resulta do organismo vivo, certo é que os indivíduos, aos quais a primeira se aplica, têm consciência de seus atos. Não bastasse, a norma social cumpre uma finalidade.9 Léon Duguit entende
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grupo. Diga-se mais: se existe uma moral, um sistema de obrigações, é preciso que a sociedade seja uma pessoa moral qualitativamente distinta das pessoas individuais. Poderá ocorrer, no entanto, que a par da moral constituída, que se mantém pela força da tradição, novas tendências surjam. A ciência dos costumes permite tomar partido entre elas, porquanto é possível que os velhos costumes correspondam a um esta- do de coisas que desapareceu, ou que está prestes a desaparecer, situação em que as idéias novas passam a representar as mudanças ocorridas nas condições da existência coletiva. O homem não é, pois, obrigado a submeter-se docilmente à opinião moral. Entretanto, de forma alguma poderá aspirar a uma moral diferente daquela que é exigida pelo estado social (Emile Durkheim, Sociology and Philosophy, New York, The Free Press, 1974, p. 4-6, 12,13,24,27, 29, 32, 51,52,60 e 61).
(19) Léon Duguit, Traité de Droit Constitutionnel, troisième édition, Paris, Ancienne Librairie Fontemoing & Cia, Editeurs, tome premier, 1927, p. 66, 67, 78, 79, 82 e 84-89. A crítica de Duguit procede, do que são prova algumas passagens da obra de Durkheim: Nada pois de mais estranho que o desprezo com que nos censuram, algumas vezes por um certo materialismo. Muito pelo contrário, do ponto de vista em que nos colocamos, se chamamos de espiritualidade a propriedade distintiva da vida representativa no indivíduo, deveremos dizer, com relação à vida social, que ela se define por uma hiperespiritualidade; entendemos com isso que os atributos da vida psíquica aí se encontram, mas elevados a uma potência bem mais alta, constituindo algo de inteiramente novo. Apesar de seu aspecto metafísico, a palavra não designa nada mais que um conjunto de fatos naturais, que devem ser explicados por causas igualmente naturais. Mas ela nos indica que o mundo novo que assim se abre à ciência ultrapassa todos os outros em complexidade; que não é simplesmente uma forma ampliada dos reinos inferiores, mas que nele
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também que os grupos sociais não são distintos das vontades individuais que os compõem. A crença na existência de uma vontade coletiva superior às consciências individuais, e a elas irredutível, só pode estar fundada em um princípio superior, em uma concepção metafísica. Assim, se o causalismo, por um lado, desconsidera a evidente diferença entre fatos sociais e fatos físicos, a crença em uma vontade sobrenatural, por sua vez, desconsidera os valores que cada indivíduo tem.20
Não faltou quem reconhecesse nas elaborações do jurista francês o mesmo viés metafísico por ele identificado nas teorias de Durkheim. Para François Geny — cujas críticas foram expostas pelo próprio Léon Duguit, em seu Tratado — a noção de sentimento de sociabilidade e de sentimento dejustiça é um conceito a priori, que recorre a princípios superiores da razão pura, com o que se garante a passagem do fato à norma. Duguit responde às objeções dizendo que a interpretação de Geny, sim, está fundada em pressupostos metafísicos, deixando entrever que o sentimento de justiça e o sentimento de sociabilidade, dois elementos que concorrem para a for- mação da massa dos espíritos, teriam um sentido hegeliano, idealista. As críticas — segundo a réplica de Duguit — partem de um mal entendido. A justiça não é um ideal racional, absoluto, revelado pela razão humana, o que não impede dizer que todos tenham pelo menos uma idéia aproximada do justo.21
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há forças das quais ainda não suspeitamos e cujas leis não podem ser descobertas exclusivamente pelos processos de análise anterior (Sociology and Philosophy, New York, The Free Press, 1 974, p. 34).
(20) Léon Duguit, Traité de Droit Constitutionnel, troisième édition, Paris, Ancienne Librairie Fontemoing & Cia, Éditeurs, tome premier, 1927, p. 82-89.
(21) Idem, p. 75-77, 80-82 e 116-121. Miguel Reale, a propósito da noção de massa dos espíritos, diz que o conceito revive a idéia de espírito do povo de Savigny, um retorno ao eu coletivo de Rousseau (Miguel Reale, Filosofia do Direito, 1 1. ed., São Paulo, Saraiva, 1986, p. 447). Embora Duguit insista em que os princípios que fundamentam o direito são consagrados pela sociedade, não resultando apenas da natureza humana, entende-se — no dizer de Miguel Reale — que suas elaborações, longe de uma construção puramente naturalistica e positivista do direito, acabam
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Bem se vê que a noção de consciência coletiva — quer resultante ou não da combinação das consciências individuais — evocando a idéia de uma faculdade originária, não advinda da experiência, está muito próxima do racionalismojusnaturalista.22 Como bem o disse Horkheimer, os direitos do indivíduo, expressão da racionalidade humana, concebida como conjunto de percepções intelectuais fundamentais, inatas ou desenvolvidas pela especulação, conquistaram gradativamente o primeiro plano nas sociedades industriais, com a conseqüente supressão de outras categorias fundamentais no universo da razão objetiva. Mas o mesmo processo trouxe à superfície as contradições entre esses direitos absolutos e a idéia de nação. A lógica de uma razão formalizada não pode conviver com as conseqüências anárquicas do individualismo exacerbado. Isto explica por que a crise da razão objetiva representa também a crise do indivíduo.23 O recurso a uma cons- ciênciajurídica coletiva, ao mesmo tempo em que resgata noções
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readaptando, com roupagens novas, velhas teses da concepção metafí- sica do direito. De fato, não há como refutar, na teoria de Duguit, a aproximação cada vez maior a certas doutrinas que exageram a contribuição de certas forças irracionais (Miguel Reaie, op. cit., p. 452).
(22) Não deixa de ser significativo, neste sentido, que um autor de inclinação jusnaturalista, como Giorgio DeI Vecchio, tivesse sustentado, na virada do século xIx, uma tal idéia de consciência coletiva, como sentimento do justo e do injusto. Para o jurista e filósofo italiano, a consciência coletiva mais não é senão a evolução de uma forma espontânea e irrefletida da elaboração do direito (que fixa regras de convivência de maneira difusa, em bases tácitas) para uma fase de elaboração deliberada, reflexiva e consciente. A evolução jurídica dá-se através da passagem de motivos psicológicos inferiores, impulsos imediatos e instintivos, como são o medo, a agressividade, para motivos psicológicos superiores, a exemplo do respeito e da solidariedade, com o que se Iimita o arbítrio individual. Por isso, o direito é fato do espírito humano, resultante de estratégias de persuasão, pelas quais se estabelecem a obediência e o consenso geral (DeI Vecchio, Lições de Filosofìa do Direito, 2. ed., Coimbra, Arménio Amado Editor, 1 95 1, p. 22 a 24; 130, 285, 297, 383-386, 394 e 395; DelVecchio,Ajustiça, São Paulo, Sarai- va, 1960, p. 73 e 74).
(23) Horkheimer, op. cit., p. 29.
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como justiça, igualdade e democracia, permite entrever — de uma perspectiva crítica — o quão triviais se mostram esses slogans, cuja vacuidade se revela assim que se busca indagar do seu significado específico na sociedade de massas.24
Quando as grandes concepções filosóficas estavam vivas — observa Horkheimer — as pessoas não exaltavam o amor fraternal, a justiça e a humanidade porque era realista manter tais princípios, extravagante e perigoso desviar-se deles. Como nos jogos infantis e nas fantasias de adultos, os homens acreditavam numa verdade suprema, que aos poucos foi sendo esvaziada de seu conteúdo objetivo, em nome de necessidades artificiais, que são confundidas com utilidades.25 Não por acaso, as primeiras concessões a uma concepção individualista do abuso do direito, como foi visto no primeiro capítulo (seção 1 . 3), têm em conta a conformidade do exercício do direito a sua finalidade econômica. O progresso tecnológico e a inserção das ciências no processo de produção do capitalismo industrial geram novas expectativas sociais. Dentro deste quadro, o fetiche da verdade ontológica, que fazia parte do lúdico, do imaginário coletivo, foi substituído por uma verdade procedimental, própria das organizações burocráticas, de início fundada em um princípio metafísico, como se vê no positivismo metodológico, e mais tarde em um pacta sunt servanda, como é próprio do jusnaturalismo implícito das teorias baseadas em um consenso ético.
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A indagação que orienta as reflexões finais do presente traba- Iho prende-se precisamente à possibilidade de conciliar o princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição com a garantia da efetividade do processo de um ponto de vista ético. Em outras palavras, trata-se de saber se ainda existe na sociedade pragmática, orientada por um procedimentalisrno que faz do respeito às próprias regras o critério último de aplicação dajustiça, espaço para um significado que não se revele apenas na dimensão da sua utilidade, lugar para um processo judicial que longe de ser a expressão de um
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(24) A propósito dessas idéias, v. Horkheimer, op. cit., p. 40, 155-159.
(25) Horkheimer, neste ponto, trata da perda de conteúdo dos conceitos, dis- correndo também sobre o padrão utilitarista (op. cit., p. 34, 40-44).
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instrumentalismo orientado pela relação meio-fim, seja ele próprio um momento de integração entre os diversos atores sociais, interagindo comunicativamente. Em resumo seria de se indagar se uma revisão crítica da teoria dos abuso dos direitos processuais — longe de rejeitar a razão subjetiva em nome de um individualismo histori- camente obsoleto, que leva ao desprezo pelas massas, ao cinismo e à confiança em forças obscuras26 — estaria em condições de garantir o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo, de assegurar os interesses destoantes da maioria conduzida pela mídia eletrônica capitalista, na base de uma razão dialógica, em que os significados sejam consensualmente elaborados e reciprocamente respeitados. Fala-se aqui de um agir comunicativo, em contraste com uma razão instrumental.
5.2 A racionalidade instrumental e as novas demandas sociais
No modelo do Estado minimalista a questão da justiça distributiva praticamente não aparece. O processo judicial, identificado com a pretensão de direito material, revela uma relação comutativa na qual o Estado não interfere senão para garantir as regras dojogo, as relações de troca. O aumento da complexidade social e a progressiva funcionalização dos conceitos deram lugar a novas fórmulas
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(26) Eis aqui a crítica que Horkheimer dirige a um heróico individualismo metafísico com que certos autores buscam neutralizar os estragos produzidos pela razão instrumental. Nesse passo, cita Aldous Huxley, que escrevendo em 1 932, já antevia um futuro no qual o homem seria transformado em simples peça da engrenagem tecnológica. O Admirável mundo novo não teve a pretensão de ser mais que um romance de ficçäo científica. Mas se outro valor não tem, serve quando menos como testemunho de que às vezes a vida realmente imita a arte, do que é prova a maneira com a qual Huxley retrata um mundo em que o domínio quase integral das técnicas e de uma determinada concepção do saber científico acaba por dar origem a uma sociedade totalitária e desumana. A crítica de Horkheimer dirige-se ao fato de que o romance, ao mesmo tempo em que ataca uma organização mundial, um capitalismo mono- polista que está sob a égide de uma autodissolvente razão subjetiva, exalta a figura de um homem cultivado, não contaminado pela civilização total (Horkheimer, op. cit., p. 63 e 64).
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de composição dos conflitos, do que resultou a autonomia do processo, que se desprende daquela base material. Esta emancipação insere-se no contexto da própria instrumentalização do direito, como foi visto na seção anterior, permitindo ao Estado interferir na frag- mentação dos conflitos, que agora ganham uma expressão coleti- va. Mas é inegável que essa neutralização do conteúdo, se de um lado permite a realização de umajustiça distributivaprocessual, que se legitima a partir da simples observância de formas e fórmulas, por outro, não pode recusar, em situações-limite, o confronto com as questões valorativas. Está posta, assim, em outros termos, a di- cotomia razão subjetiva — razão objetiva.
Os horrores da Segunda Grande Guerra, as manipulações técnicas e científicas abriram lugar para os chamados direitos sociais de terceira e quarta gerações. Conforme observa Horkheimer, a natureza hoje é concebida como um simples instrumento do homem, cuja insaciabilidade é fruto de necessidades impostas pelos próprios padrões de acumulação capitalista. Mas a tentativa de um retorno à natureza, por uma revivescência das velhas doutrinas ou pela criação de novos mitos, não representa propriamente a negação de uma razão formalizada. 27 Cada vez menos algo é feito por si mesmo, independentemente de sua ligação com outros fins. Uma inclinação que tire um homem da cidade e o leve para as margens de um rio ou para o topo de uma montanha seria irracional, se julgada pelos padrões utilitaristas. Segundo o ponto de vista de uma razão formalizada, uma atividade só é racional quando serve a outro propósito, como, por exemplo, a saúde ou o descanso, que ajude a recuperar a energia produtiva.28 Em poucas palavras, os valores objetivos foram instrumentalizados.29
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(27) Horkheimer, p. ¡ 12-130.
(28) Idem, p. 44.
(29) As discussões acerca da relação custo-benefício, que orientam a polêmica em torno da pena de morte, da pena privativa da liberdade, dão a exata dimensão do trágico contexto em que estão inseridos os valores humanos. A teoria da reparação do dano moral também é significativa, pois mostra que valores corno dignidade e felicidade podem ser mensurados economicamente. E o chamado preetium doloris.
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A formalização da razão permite entender assim como se opera aquilo que os processualistas conhecem como terceirafase metodológica do processo civil, que tem em conta a noção de instrumentalidade. Assim, o mesmo processo judicial que serviu para arbitrar as relações meta-individuais, próprias de uma sociedade liberal-burguesa, volta-se hoje para a solução de conflitos transindividuais, característicos das sociedades pós-industriais, numa tentativa de garantir a hegemonia do direito como forma de controle social. A transmigração do individual para o coletivo altera os padrões de argumentação jurídica, mas não interfere com a função principal da linguagem, mormente da linguagem utilizada no processo judicial, que é a de determinar as formas de comportamento que a parte assume ao falar emjuízo, o conjunto de atos que se realizam, específica e imediatamente, pelo simples exercício da fala.
A chamada terceira fase metodológica do processo civil está voltada para o desenvolvimento de mecanismos de institucionalização dos conflitos de larga escala. Partindo da tradicional concepção de que o processo visa à realização da paz através do direito, os processualistas buscam a domesticação das condutas desa- gregadoras, pautando-se pela idéia de um Estado Democrático de Direito. Assim, O processojudicial deve promover o equilíbrio das forças sociais, servindo como efetivo instrumento dejustiça social. Esta nova perspectiva implica uma releitura das noções de interesse de agir e de legitimidade para a causa. (art. 3.° do CPC), à vista dos interesses coletivos, dos interesses difusos e dos interesses individuais homogêneos. Alterou-se também o instituto da coisa julgada.30 A par da legislação esparsa, visando à tutela dos valores
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(30) o acesso universal à justiça tem previsão no texto constitucionaI de 1 988 (art. 50, LXXIV), tanto quanto a ampliação da Iegitimatio ad causam (art. 5•0, XXI). As previsões do artigo 8.°, 111, que estabelece a Iegitimidade do sindicato para a defesa dos interesses da categoria, do artigo 129, 111, e § 1.0, que cuida das funções do Ministério Público, e do art. 1 34. que institui a defensoria pública, também participam, indiretamente, da idéia de um acesso universal à justiça. Alterou-se também a disci- plina da coisajulgada que, em regra, passa a ter eficácia erga omnes, estendendo-se a todos os interessados. No caso de improcedência da ação por falta de provas, os efeitos da coisa julgada não se comunicam
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sócio-culturais (Lei 7.347/85), dos direitos do consumidor (Lei 8.078/90), do administrado (Lei 8.429/92) do deficiente físico (Lei 7.953/89), da criança e do adolescente (Lei 8.069/90), do investidor no mercado de valores mobiliários (Lei 7.913/89), do solo urbano (Lei 6.766/79), do patrimônio genético (Lei 8.974/95), há uma série de outros dispositivos legais voltados à realização desses direitos, a exemplo do mandado de segurança coletivo (art. 5•0, LXX, da C.E) do mandado de injunção (art. 50, LXXI, da C.F) e da ação popular (Lei 4.717/65), que teve alterado o seu campo de incidência (art. 50 LXXIII).
Como se teve oportunidade de registrar no primeiro e segundo capítulos, o abuso do direito de demanda tem lugarprivilegjado em toda essa legislação recente, voltada para o alargamento das vias de acesso ao judiciário. E isto porque conquanto a idéia de efetividade do processo esteja comprometida com a universalização da justiça, com o desenvolvimento de uma legislação mais inclusiva, há também um apego à noção de utilidade. Com efeito, a máquina judiciária não pode ser movimentada sem que haja um resultado socialmente útil.31 Nisto se revela o interesse de agir. A alteração da
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aos demais colegitimados. Tratando-se de interesses individuais homogêneos, oiulgamento de improcedência, seja qual foro seu fundamento, não tem efeito erga omnes (art. 16 da Lei 7.347/85 e art.103, I, 11 e 111, da Lei 8.078/90). O sentido dejustiça distributiva faz-se sentir, outrossim, na inversão do ônus da prova, que se coloca como possibilidade, à vista dos interesses da parte presumidamente mais fraca (art. 6.°, VI1I, da Lei 8.078/90), ou até mesmo como imperativo, na hipótese de acidentes de consumo, por exemplo (arts. 1 2 a 1 7 da Lei 8.078/90).
(31) A doutrina, quando se ocupa dos escopos sociais, políticos ejurídicos do processo, diz que fixá-Ios equivale a revelar o grau de sua utilidade (Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., p. 207). A propósito, já se decidiu que aquele que abusa do direito de petição consagrado no art. 5•0, XXXIV, a, da Constituição Federal, agindo sem interesse, fica obrigado a indenizar (TJ São Paulo, AI 280.992- 1, Tupã, 6. Câmara de Direito Privado, ReI. Ernani de Paiva, 08.02.96, v.u.). Interesse de agir nessa perspectiva instrumentalista, traduz-se em utilidade. Carece de ação o demandante, por falta de legítimo interesse, quando, a juízo do Estado, o custo social e individual das atividades que preparam o provimento jurisdicional não traz a perspectiva de retorno que, do
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disciplina da coisajulgada civil, que interfere com o ideário liberal burguês da certeza e segurança jurídica, também segue uma orientação instrumental, pois permite estabelecer um controle sobre a par. ticipação das massas no campo dos interesses transindividuais. Nessa medida, um mal desempenho da atividade processual não pode prejudicar os demais co-Iegitimados, que não participaram do processo.32
Essa visão pragmática também vem-se desenvolvendo na esfera do processo penal. Assim, por exemplo, diante da perspectiva da prescrição, considerada a pena em concreto, tem-se entendido que não há utilidade no provimento jurisdicional, pelo que injustificada a instauração de um processo.33 Isto, de certa forma, interfere com
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ponto de vista da utilidade pública, seja compensador (Cândido Rangel Dinamarco, op. cit., p. 244 e 245). A análise econômica do direito, levada a cabo nesses últimos anos, também de um prisma instrumentalista, tem ressaltado o custo social como critério fundamental para a solução dos conflitos sociais (Posner, EconomicAnalysis ofLaw, 2. ed., Boston Toronto, Little Brown and Co., 1 977).
(32) Cogita-se, na doutrina, até mesmo da possibilidade de colusão entre as partes, de sorte que a disciplina da coisa julgada secundum eventum litis viria então para impedir que o interesse dos demais co-Iegitimados pudesse ser atingido pelo abuso do direito de demanda (a respeito, v. Rodolfo de Camargo Mancuso, Manual do consumidor emjuízo, São Paulo, Saraiva, 1994, p. 102). A ser assim, veja-se que o regime legal das demandas coletivas inovou em relação à disciplina do Código de Processo Civil (art. 129 do CPC). A propósito do conceito de colusão ver o segundo capítulo (seção 2.2). O conceito de legitimidade adequada, desenvolvido pela doutrina a partir da regra do art. 5.° da Lei 7.347/ 85 e do art. 82 da Lei 8.078/90, revela também a preocupação de prevenir o abuso do direito de demanda (Ada Pellegrini Grinover et alii, C6 digo brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, Rio de Janeiro, Forense, 1994, p. 513).
(33) De duas uma: ou o Iegisiador reformula a idéia de prescrição retroati va ou o aplicador da norma terá de ceder às evidências, impedindo que pretensões natimortas ocupem o espaço da produção judiciária socialmente útil (Luiz Sergio Fernandes de Souza, A prescrição retroativa e a inutilidade do provimento jurisdicional, in RT, São PauloAno 8 l ,junho de 1 992, vol. 680, p. 435-438). Também a respeito do assunto, com far-
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a questão do abuso do direito de demanda. Também as críticas às teorias de deslegitimação do direito penal orientam-se por um discurso que tem sempre em conta afinalidade. Argumenta-se que a sentença penal condenatória opera efeitos na esfera civil, e mais, que o suspeito ou acusado teria direito de ver-se absolvido, pelo que não seria jurídico declarar prescrição que ainda não ocorreu. No fundo, aqueles que se voltam contra a tese de um direito penal mínimo temem o afrouxamento da persecução criminal. Mais que isto, apostam no fetichismo do processo, que por si só já serviria como uma espécie de expiação da culpa.34
Enfim, a dimensão ética do direito, e particularmente do processo judicial, vê-se cada vez mais funcionalizada. As grandes ques- tões filosóficas, expressão da razão objetiva, são resgatadas pelos processualistas apenas como lugares comuns, condições retóricas de sentido que animam uma particular racionalidade do processo. Essa formalização da razão explica o novo caráter mitológico da Iinguagem processual. Como foi visto no segundo capítulo, o direito, na sua origem histórica, está atrelado à questão da verdade; a princípio, a uma verdade revelada pelos deuses, como se vê nallíada, e depois, à verdade como reconstrução dos fatos, através do teste- munho, como está em Édipo. Nestas duas perspectivas, as fórmulas processuais, o proferimento das palavras da lei, ganham uma dimensão muito importante. Do emprego exato de uma expressão, da observância estrita de um procedimento passa a depender o resultado da demanda.35
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