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ta citação bibliográtïca nacional, ver Maurício Antonio Ribeiro Lopes, Reconhecimento antecipado daprescrição dapretensãopunitiva, in RT, São Paulo, Ano 85, fevereiro de 1996, vol. 724, p. 522-536 e o acórdão pioneiro do Juiz Walter Theodósio (RT, São Paulo, Ano 80, junho de 1991, vol. 668, p. 289-291).

(34) A respeito das diversas teorias de deslegitimação do discurso jurídico penal, como resposta à criminologia tradicional, ver Eugenio Raúl Zaffaroni, Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistemapenal, Rio de Janeiro, Revan, 1991.

(35) Como observa Horkheimer, no contexto da funcionalização das idéias e da verdade, a linguagem, considerada como mero instrumento, retor-

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

O individualismo liberal-burguês — como também foi visto no segundo capítulo — deixou-se impregnar daquele apego à forma, com o que supunha garantir a liberdade, a segurança e a certeza das relações jurídicas. Em bem pouco tempo, a razão iluminista e a verdade deixaram-se subjugar pela racionalidade das massas. O poder de imaginação e as formas ricas de significado cederam lugar para uma lógica funcional, que se bem se presta à consecução de finalidades socialmente úteis, também dá lugar à chicana e à má-fé processual. A absoluta separação entre fatos e valores e a correspondente distinção entre o uso representativo e o uso argumentativo da linguagem traduzem-se, no campo jurídico, também pela emancipação do processo judicial, que se desprende das relações jurídicas materiais. As proposições éticas, como ressaltado pelas correntes neoposititivistas, cumprem um propósito, têm uma finalidade, O significado delas, então, está diretamente ligado a certas situações de uso. O sucesso dos proferimentos performativos, o êxito daquilo que se faz enquanto se diz, passa a depender da adequação da conduta dos atores processuais a um determinado procedimento. Isto explica o es- vaziamento do conteúdo ético das normas processuais, que cumprem uma função operacional.36

A expressão abuso do direito processual é muito mais uma fórmula sintética, uma abreviação de itens aos quais o conceito se re- fere — na expressão de Horkheimer — do que propriamente uma idéia,

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na ao seu estágio mágico, aos tempos em que cada palavra era considerada uma força poderosa, capaz de destruir a sociedade e pela qual aquele que fala deve ser responsabilizado (Horkheimer, op. cit., p. 31).

(36) A classificação feita pela doutrina, no segundo capítulo (seção 2.2), a propósito dos diversos tipos de conseqüência do abuso processual, é ilustrativa daquilo que Austin desenvolve quando trata das condições de felicidade do ato defala (seção 4.4). Assim é que, dependendo da forma de transgressão das condições de sucesso dos proferimentos performativos, pode-se cogitar de nulidade ou de simples inexistência do ato. Com efeito, algumas condutas abusivas da parte implicam não propriamente a imposição de sanção, mas a nulidade do ato (art. 13, I, do CPC) ou mesmo a desconsideração dos efeitos produzidos pela conduta abusiva (arts. 181, 243, 245 e 808, 11, todos do CPC). São hipóteses de injlicidade do ato de fala.

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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

um pensamento dotado de sentido próprio. Aqui está um flagrante do aspecto ideológico do processojudicial, que se revela na funcionalização daforina de vida voltada para as questões éticas, na colonização da razão objetiva por uma razão formalizada. Por detrás do conceito de abuso do direito processual, dessa “palavra oca”, para lembrar Hägerström, mostram-se, de um prisma crítico, múltiplas relações ocultas que a simples aparência não permite apreender.37 Veja-se, a propósito do senso comum dos juristas acerca do abuso do direito, quantas incursões foram feitas, no primeiro e segundo capítuos, até que se pudesse chegar à apreensão dessa fórmula sintética, operacional, que mais não é senão um feixe de amplas relações sociais, cuja trama mais se entretece à medida do avanço tecnológico. Resta saber, repetindo Georges Bernanos, na França contra os robôs, se um mundo ganho para a técnica está efetivamente perdido para a liberdade, ou seja, se há espaço, nessa textura pragmática, para considerações de ordem ética.

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(37) Nesse passo, Alaór Caffé Alves diz que ver o Direito como uma expressão ideológica que não tenha somente um conteúdo operacional para a solução dos conflitos intersubjetivos que surgem na superfície do corpo social, tal como o concebe a consciência ingênua, compreende e exige um ato de uitrapassagem crítica do momento aparentemente concreto da vida jurídica cotidiana, que só se torna possível, a nosso ver, com a perspectiva de uma análise dialética onde os elementos empíricos e teóricos sejam explorados de forma a fazer sobressair seu conteúdo latente vinculado organicamente às condições estruturais do processo social... O estudo da ordem jurídica ou de quaisquer outras manifestações institucionais pelas quais o Estado se objetiva não pode, em nosso entender, ser feito tendo como ponto de partida a idéia de que a inteira realidade se expressa ao nível de nossa experiência imediata. No entanto, é exatamente isso que ocorre com o senso comum dos juristas e de outros cientistas sociais quando imaginam conhecer todo o seu objeto de aná- Iise na precisa forma e expressão de sua manifestação concreta, aplicando apenas a razão analítica, pela qual conseguem, não raro com sofisticação, uma sondagem de superfície dos elementos desdobráveis em puro encadeamento lógico de conceitos, coerentemente dispostos segundo as conexões visíveis oferecidas pela experiência imediata (Alaôr Caffé Alves, Estado e ideologia: aparência e realidade, São Paulo, Brasiliense, 1987, p. 339-340).

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

As escolas jusnaturalistas acentuam o aspecto axiológico da teoria do abuso do direito processual, como se vê nas elaborações de Eduardo Couture, desenvolvidas no segundo capítulo (seção 2.4). Entretanto, como dito há pouco, a consciência individual e a verdade ontológica, que se inserem no campo da razão objetiva, vão sen. do capturadas por uma razão instrumental à medida que a sociedade se torna cada vez mais complexa. Os juízos de valor, que antes faziam referência a princípios morais genuínos, à abstração idealizada, ganham novo significado no contexto dos problemas e das situações da vida real, onde as coisas só têm sentido se orientadas para uma finalidade. O direito, reduzido à norma, passa a compor um organismo cibernético, bem descrito pelas teorias sistêmicas de Talcott Parsons e de Niklas Luhmann, estas últimas influenciadas pela concepção da Biologia, particularmente pelo modelo desen- volvido por Humberto Maturana.38

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(38) Maturana, Henrique e Francisco Varela, Autopoiesjs and Cognitions, Dordrecht, Reidel, 1 983. Niklas Luhmann, formado em Direito e Administração, fixou seu campo de interesse na sociologia, influenciado pelo funcionalismo de Talcott Parsons (1920-1979). A teoria sistêmica parte do ponto de vista de um terceiro observador, procurando aplicar os conceitos da cibernética ao estudo da ação social. A sociedade aparece então Como um sistema sócio-cultural que se diferencia do meio através de mecanismos de seleção das possibilidades existentes nos sisternas complexos. A estrutura do sistema social Composta destes mecanismos, que permitem reduzir a complexidade do sistema, garantido assim a sua estabilidade. Cada um destes mecanismos pode ser concebido como sistemas parciais que integram o sistema comunicativo global, que é a sociedade. O direito, por exemplo, aparece como um dos sistemas funcionais do sistema global, com a tarefa de reduzir a com- plexidade do ambiente, absorvendo a contingência do comportamento dos atores sociais. A redução da complexidade do sistema social dá-se através de dois mecanismos estruturais, quais sejam, a expectativa cognitiva, que é fática, e a expectativa normativa, que é contrafática. Estas formas de controle social, das quais o direito participa (como integrante do sistema global que é a sociedade) permitem exercero controle sobre as representações e interpretações do mundo (Niklas Luhmann, Sociologia do Direito I, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1983, Coleção Biblioteca Tempo Universitdrio, vol. 75, p. 48-66 e 167-224). A propósito dos conceitos desenvolvidos pela cibernética, v. Norbert Wiener,

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RAZÃO COMUNICATIVA E A PRAGMÁTICA

O direito, visto dessa ótica, mostra-se como um sistema aberto — em permanente contato com o sistema social — cujo repertório é composto por normas obrigatórias, postas por uma autoridade, e cuja estrutura é formada por um conjunto de regras que permitem estabelecer relações entre os diversos elementos daquele repertório. A performance do sistema está na dependência da sua capacidade de controlar as contingências, vale dizer, a incerteza quanto à realização ou frustração das expectativas sociais. O esvaziamento do conteúdo, o corte em relação à realidade, próprio de umajustiça distributiva processual, que se legitima na base da simples observância das regras procedimentais, tem, entretanto, seus limites. Por isso, quando o simples controle exercido através de atitudes cognitivas e normativas se revela deficitário, o próprio sistema desenvolve mecanismos para dispersão do dissenso, que se revelam precisamente nas palavras ocas, naquelas expressões que não se confrontam com a realidade, mas que funcionam como código doador de sentido.

Dessa perspectiva funcional, a concepção do abuso do direito fundada numa consciênciajurídica coletiva, que por sua vez busca alicerce em princípios gerais de direito, faz lembrar a referência de Horkheimer à hipocrisia da sociedade industrial, onde a mesma voz que prega sobre as coisas superiores da vida, tais como a arte e a amizade, exorta o ouvinte a escolher uma marca de sabão.39 José

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Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos, 5. ed., São Paulo, Cultrix, 1 978. Como será possível analisar na seção seguinte, o modelo sistêmico-funcionalista tem uma indisfarçável marca conservadora, que nem mesmo a tentativa de substituir o conceito de informação porsignificado consegue contornar. E que o significado aparece aqui não como construção dialógica, mas como expressão de valores e normas internalizados, padrões de comportamento institucionalizados monologicamente.

(39) Nesse ponto, Horkheimer lembra a anedota do menino que, olhando a Lua, pergunta ao pai o que ela está anunciando. Assim, a natureza foi despojada de todo seu valor ou significado intrínseco...Quando pedem a um homem que admire algo, que respeite um sentimento ou atitude, que ame uma pessoa por ela mesma, ele fareja sentimentalismo e sus- peita que estão querendo Ievá-Io na conversa ou tentando vender alguma coisa (op. cit., p. 1 05 e 1 06). Em outro trecho, o autor observa:

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ABUSO DE DIREITO PROCESSUAL

Carlos Barbosa Moreira, tratando dos interesses difusos e coletivos, diz que se enganam aqueles que menosprezam a dimensão técnica do direito, tanto quanto os que o reduzem a essa mesma dimensão. Diversamente do que sonha um romantismo ingênuo, o ordenamento jurídico não se reduz à manifestação de princípios éticos... Mas tampouco seria reconhecível uma imagem do direito que o figurasse totalmente estranho a inspirações da moral... Pouco importa que princípios morais sejam a cada passo hipocritamente invoca- dos para justificar manobras do egoísmo, da ânsia de dominação, do medo de perder privilégios ou de sofrer abalo em posição de mando. Que se abuse de uma idéia não é o bastante para contestar- lhe a validade.40

O movimento pela desburocratização da justiça, que se inscreve no modelo da instrumentalidade do processo, vem ao encontro da crítica formulada por Galeno Lacerda, no segundo capítulo (seção 2.3), contra uma formalidade perversa, que no lugar de servir a finalidades sociais, pode comprometer a efetividade da prestação da tutela jurisdicional. Esse empenho em libertar o conteúdo da forma também tem-se mostrado numa certa tendência de aproximação entre o direito processual e o direito material.41 A par dessas orientações, que revelam uma tentativa de legitimar a razão instrumental em termos de uma ordem justa, assiste-se a uma crescente politização dojurídico e a uma juridicização do político.42 Tudo isto

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“Outrora era o esforço da arte, da literatura e da filosofia para expressar o significado das coisas e da vida, para ser a voz de tudo que é mudo.... Hoje, a língua da natureza foi arrancada. Outrora pensava-se que cada expressão, palavra, grito ou gesto tivesse um significado intrínseco; hoje é apenas um incidente” (op. cit., p.105).

(40) José Carlos Barbosa Moreira, Direito e ética no Brasil de hoje — aula inaugural proferida na Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro, ein 9 de março de 1994, in Temas de direito processual (sexta série), São Paulo, Saraiva, 1997, p. 302 e 303.

(41) José Roberto dos Santos Bedaque, Pressupostosprocessuais e condições da ação, in Justitia, São Paulo, Ano 53, vol. 1 56, outídez. de 1 991, p. 54•

(42) Essa tendência, que tem lugar diante da crise da democracia represeflt tiva, pode ser resumida como um processo de substituição das instancias

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é expressão da angustia do homem contemporâneo, sobretudo nos momentos de grave crise social, econômica e política, diante de um direito cujo sentido se esgota nas utilidades que produz.43

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políticas, tal qual concebidas pelo modelo da tripartição dos poderes, cujas funções passam a ser desenvolvidas pelo judiciário. O chamado governo dos juizes pode gerar, entretanto, graves distorções, muito bem apontadas pela doutrina. Como escreve Celso Fernandes Campilongo, de um ponto de vista sistêmico-funcionalista, As instituições representativas podem criar direito novo, desde que, no processo legislativo, respeitem os limites impostos pelo próprio direito. Os tribunais também podem tomar decisões de cunho político inovador, desde que, no processo judicial, observem os balizas estabelecidas pelo sistema político (Celso Fernandes Campilongo, A crise da representação e a judicialização da política, in Diálogos & Debates; da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, Ano 1, ed. 1, setembro de 2000, p. 26-32). José Reinaldo de Lima Lopes, ainda que de outro prisma metodológico, também aponta as dificuldades com as quais o judiciário se defronta para realizar a justiça distributiva, que exige a implementação de práticas concretas, próprias da atividade do Executivo (José Reinaldo de Lima Lopes, Direito subjetivo e direitos sociais: o dilema do Judiciário no Estado Social de Direito, in José Eduardo Faria, org., Direitos humanos, direitos sociais e justiça, São Paulo, Malheiros Editores, 1994, p. 113-143). De uma perspectiva dogmática, Calmon de Passos critica o modelo escolhido pela atual legislação naquilo que diz respeito às chamadas ações coietivas. Considera que, em um Estado Democrático de Direito, a institucionalização de soluções jurisdicionais para conflitos que ultrapassam os Iimites do conflito individual (os quais se revestem de uma significação macro, que só desafia, em tese, soluções políticas), somente é admissível dentro de um universo bem delimitado e desde que haja legitimação política dos órgãos incumbidos da solução jurisdicional desses conflitos em termos de composição e responsabilidade (J. J. Calmon de Passos, Direito, poder,justiça e processo:julgando os que nos julgam, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 9 1 e 92). A propósito dajudicialização da política e da politização dajustiça é rica tam- bém a bibliografia estrangeira (C. Neal Tate e Torbjorn Vallinder, The global expansion ofjttdicial power, New York, New York University Press, 1985).

(43) San Tiago Dantas, já na década de 40, apercebera-se de que a política, no século XX, havia recuperado seu incontrastável império, colocando para o jurista problemas que ele não estava preparado para resolver. Em

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José Joaquim Calmon de Passos vê com certa reserva a posição daqueles que sustentam a instrumentalidade do processo, a deformalização dajustiça e a diferenciação da tutela como formas de garantir a efetividade do direito. Entende que o procedimento é mais do que um instrumento de garantias individuais e sociais, revelan-do-se ele próprio como expressão do direito produzido por uma determinada sociedade: Se o direito é apenas depois de produzido, o produzir tem caráter integrativo, antes que instrumental. O direito não é algo que possa ser dissociado do processo de sua produção e do produtor, porque ele só consegue existir, como realidade

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aula magna proferida na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, comemorativa do cinqüentenário daquela instituição, San Tiago Dantas Iança uma pergunta que até hoje gera discussão: pode qualquer política criar um Direito, ou o Direito em sua natureza técnica está comprometido com determinados princípios éticos e sociais que colidem com certos sistemas políticos e com outros se harmonizam? (Renovação do Direito, in Encontros da UnB — ensino jurídico, Brasí- lia, UnB, 1979, p. 39-45). Na aula inaugural do ano de 1955, na mesma Faculdade, San Tiago Dantas sustenta que a cultura representa a subjugação do mundo físico pela técnica. Mas a par desse controle, que o homem exerce sobre a natureza, há de se cogitar também de um controle do homem sobre a razão técnica. A cultura é composta, assim, de um controle técnico e de um controle ético, de cuja adequada relação depende a expansão ou a decadência de uma civilização, de um grupo social. A falta de criatividade dos juristas tem levado a sociedade a buscar novas formas de composição dos conflitos. O direito, como técnica de controle da sociedade, vem perdendo terreno e prestígio para outras técnicas, menos dominadas pelo princípio ético, e dotadas de grau mais elevado de eficiência, a exemplo da econômica. Nesse conflito entre um critério ético e um critério puramente pragmático, o jurista assume o papel de força reacionária, de elemento resistente, que os órgãos do governo estimariam contornar para poderem promover por meios mais imediatos e diretos o que lhes parece ser o bem comum (A educação jurídica e a crise brasileira, in Encontros da UnB — ensino jurídico, Brasília, UnB, 1979, p. 49-54). Foi precisamente a desconfiança da tecnocracia na eficiência do direito como técnica de controle social que deu lugar à elaboração de novas categorias jurídicas, voltadas para a inserção dos interesses transindividuais nos mecanismos jurídicos de composição dos contlitos.

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(praxis), associado a um e outro. Só a ação humana dá a dimensão do poder e não o arquétipo, a idealidade. O direito é decisão que somente se legitima na base de formas de organização e regulamentação procedimental apropriadas. Daí o equívoco da Constituição de 1988 — acrescenta o processualista — ao haver enunciado gene- rosamente direitos fundamentais sem ter disciplinado adequadamente a sua dimensão procedimental.44 Essa visão desafia a possibilidade de se conceber o processo como agir comunicativo, onde as próprias partes e o juiz estariam em condições de fixar, intersubjetivamente, o significado de suas ações. O sentido do abuso do direito processual parece assim orientar-se por um fazer persuasi- vo, por uma relação dialógica na qual todas as pessoas envolvidas têm a sua hora e a sua vez.

O processo judicial, assim concebido, participa de um novo conceito de razão, como elaborado por Jürgen Habermas em sua teoria da ação comunicativa, conceito que nada tem em comum com a visão instrumental, mas que também ultrapassa a visão kantiana assimilada por Horkheimer, isto é, a concepção de uma razão subjetiva, autárquica, capaz de conhecer o mundo e de conduzir o destino da humanidade. O significado do abuso dos direitos processuais seria, pois, o resultado de uma razão comunicativa, que busca o consenso e respeita a reciprocidade daqueles que participam do procedimento argumentativo. Resta saber se a dogmática jurídica pode compartilhar dessa nova orientação ou, de outra forma, se um rnundo ganho para a técnica está efetivamente perdido para a liberdade, como prenunciava Georges Bernanos.

5.3 A retórica no campo da ação estratégica e da ação comunicativa

A racionalidade instrumental, como foi visto, resulta de uma deformação da razão cognitiva. E certo que as ciências não se limitam a um papel meramente descritivo, deitando raízes em contextos não-científicos, apropriadas por estratégias de poder. Os cien-

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(44) J. J. Calmon de Passos, Direito, poder, justiça eprocesso: julgando os que nosjulgam, Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 23, 68, 76-80.

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tistas que colaboraram com o nazismo, por exemplo, hoje se justificam falando em nome do progresso tecnológico. Wernher von Braun, que em 1942 desenvolveu os foguetes do tipo A4/V2, lança- dos pelos nazistas sobre Londres, matando cinco mil pessoas, tem P05 depois mudou-se para os Estados Unidos, onde se tornou um dos diretores da agência espacial norte-americana. Lá desenvolveu o foguete Saturno 5, que em 1969 levaria a Apolo 1 1 para a Lua. O químico Paul Schlack, cujas pesquisas deram lugar à produção de uma fibra sintética mais barata do que o nylon, própria para a produção de pára-quedas, finda a Grande Guerra, passou a trabalhar como consultor na árca têxtil. O engenheiro Heinrich Nordhoff, que aperfeiçoou os caminhões militares utilizados pela SS e pelo exército alemão nas suas ofensivas-relâmpago, assumiu em 1948 a direção de uma das maiores multinacionais do mundo, quando colocou em prática o velho plano de fabricar um carro do povo. Sete anos depois a empresa já comemorava a fabricação do milionésimo automóvel. Nordhoff ganhou notoriedade e fama, recebendo dezenas de condecorações.45 Enfim, não se pode isolar a produção intelectual do homem, como se ela fosse um estomo das relações sociais.

Está claro, outrossim, que o contexto da justficação das teorias científicas, da validação delas, acaba se confundindo um pouco com

(45) Essas reflexões foram tema de uma exposição realizada no Museu de Transportes e Técnica de Berlim, na qual se reuniu o trabalho de profissionais que colaboraram com os nazistas, cujo título era Eu servi só à técnica. A frase, que é uma referência à justificativa apresentada pelo ex-ministro para Armamento e Munição da Alemanha nazista, a propósito do trabalho que desenvolveu na Segunda Guerra Mundial, dá a tônica das desculpas utilizadas por muitos técnicos e cientistas que, de- pois de terem colaborado, direta ou indiretamente, com a política de extermínio executada pelos nazistas, foram recrutados para trabalhar nos países aliados. Nessa mostra, conta-se que von Braun, hoje considerado o pai da astronáutica, procurou mão-de-obra no campo de concentração de Buchenwald, onde foram mortas mais de 55 mil pessoas. Segundo o organizador do evento, Alfred Gottwaldt, o tema, técnica, poder e guerra continua atual, o que pode se confirmar com o fato de hoje a Alemanha exportar armamentos sob a alegação de que isso gera empregos (Silvia Bittencourt, Ciência afavor da guerra, Folha de São Paulo, Ciência, 21.05.1995, p. 5-17).

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