Abuso de direito processual editora afiliada



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da chamada terceirafase metodológica, que em nome do Estado Democrático de Direito e da finalidade social do processo, desenvolveu formas de controle da participação das massas no interior do Estado. A burocratização e a expansão crescente do direito levaram a uma regulamentação generalizada da vida. O preço do bem-estar generalizado, de uma justiça social ampliada revela-se, no campo do processo judicial, no enfraquecimento do estereótipo da imparcialidade do juiz, que passa a interferir cada vez mais na relação entre as partes.

Na ação comunicativa, o esquema justificativo da ação está pautado em outro tipo de racionalidade, que busca a solução dos conflitos na base da comunicação e da integração dos atores sociais. O que as partes fazem, ao manifestar-se nos autos, revela fins ilocucionários que não podem ser atingidos por outro caminho que não seja o da cooperação. O sucesso ilocucionário, que ultrapassa o nível da compreensão daquilo que é dito, depende da concordância racionalmente motivada do ouvinte, de forma que a identificação de uma prática abusiva estará sempre na dependência de uma verdade estabelecida consensualmente. Assim, o universo simbólico produzido pelas partes, com recurso a expressões vazias de conteúdo referencial (palavras ocas), mostra-se não mais como exercício da violência, do poder, mas sim como campo de interação, onde o sentido do que se diz e do que se faz é estabelecido de maneira cooperativa. Por isso, se a parte, depois de ter levantado pretensões de validade em relação a sua manifestação processual, for confrontada com críticas do interlocutor, terá de apresentar novos argumentos parajustificar sua posição inicial. Suponha-se que o executado apresente embargos à arrematação, dizendo que não lhe pertence o bem penhorado. Suponha-se, outrossim, que o embargado impug- ne a afirmação fatual (propriedade ou posse do bem), a justiça da alegação (suscitando ocorrência de preclusão) e a sinceridade do proferimento (suscitando o uso de expediente protelatório). Caberá ao embargante apresentar contraprovas a fim de convencer não só o juiz, mas também o embargado, da verdade fatual, da justiça normativa e da verdade subjetiva, com o que estará buscando afastar a pecha de litigante de má-fé.

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Assim, longe de discutir as intenções da parte, aquilo que está nos desvãos de sua consciência, à maneira de um psicologismo de base subjetivista, como visto no segundo capítulo (seção 2.2), importa mesmo considerar a motivação discursiva.58 Todo proferimento deve estar em condições de justificar-se criticamente com base no confronto com argumentos e razões comunicativas. As proposições são racionais não porque correspondam a uma verdade objetiva ou subjetiva, mas sim porque os proferimentos ilocucionários atendem a critérios de argumentação convincente, capaz de estabelecer o consenso em torno de símbolos que não têm uma referência à realidade física. A retórica move-se, pois, num campo social, na esfera de uma razão ampliada, que não se funda mais na relação sujeito-objeto e sim na relação entre sujeitos. O reconhecimento da existência de uma comunidade Iíngüística, da intersubjetividade dos atores processuais, na qual o significado de um proferimento ilocucionário (dizer/fazer processual; manifestação/prática processual) não é posto, mas sim discutido, permitirá compreender de que

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(58) Essa distinçäo vem ao encontro do corte epistemológico traçado nas últimas páginas do capítulo anterior, quando se disse que o realismo psicológico, deixando de lado o elemento normativo e axiológico da experiênciajurídica, acaba reduzindo o sentido da norma à vontade do juiz, com o que fecha os olhos para a existência de aspectos racionais da atividade judicial, cuja análise não pode ficar circunscrita às idiossincrasias do julgador. Como adverte Manuel Atienza, a propósito de realismo jurídico de Jerome Frank, confunde-se aqui o campo da descoberta com o campo dajustificação. E possível que as preferências, os aborrecimentos pessoais, os preconceitos e o estado de ânimo do juiz possam interferir na decisão judicial. Mas isto não afasta a necessidade de justificar a decisão e tampouco converte esta tarefa em alguma coisa impossível (Manuel Atienza, As razões do direito — teorias da argu- mentação jurídica, São Paulo, Landy Editora, 2000, p. 26). A lógica ocupa-se do campo da justitïcação e não do campo da descoberta (a respeito, v. Wesley Salmon, op. cit., p. 25, e Irving Copi, op. cit., p. 20 e 2 1). Na esfera da lógicajurídica ou da chamada teoria da argumentação jurídica, v. Manuel Atienza, op. cit., p. 84, Karl Engisch, op. cit., p. 84 e 85, e Alaôr Caffé Alves, Lógica — pensamento formal e argumentação — elementos para o discursojurídico, São Paulo, Edipro, 2000, p. 58, 59,61,73,78, 103, 104, 142e 143).

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forma se dá a legitimação discursiva das decisões judiciais. A fixação do significado de uma conduta abusiva não se resume à obser- vância das regras procedimentais, a formas de integração sistêmica. Há outras instâncias de legitimação, que dizem com questões dejus- tiça e com a subjetividade, que estão no campo da integração social.

O conceito de consciênciajurídica coletiva, como expressão das opiniões culturais dominantes, que informa a noção de antijuridacidade (mais ampla que ilicitude) debaixo da qual estaria o abuso do direito, como visto flO primeiro capítulo (seções 1.2 e 1.4), ganha aqui uma outra interpretação, que o liberta do movimento pendular do pensamentojurídico, ora inclinado à transcendência do justo (jusnaturalismo) e ora à imanência do justo (relação homemconsciência). Na concepção habermasiana, a compreensão da realidade não se dá através do universal, dos princípios, daquilo que é eterno, do gênero e da diferença. Tampouco a razão fraturada de Kant, desmembrada nas esferas autárquicas da razão pura, da razão prática e da crítica do juízo, permite compreender a inserção das produções teóricas no contexto do uso, da ação e da comunicação. A mediação para as objetivações histórico-culturais do espírito humano está localizada nO campo da linguagem e não nos fenômenos da consciência. São as práticas materiais que estabelecem o sentido e não a consciência.59 Importa considerar não um suposto fundamento ontológico dos princípios gerais de direito, mas sim a utilização desses chamados princípios como condição retórica de sentido, invocados para contornar a estrita legalidade, como se dis- se no primeiro capítulo (seção 1.4).60

Da perspectiva de um agir comunicativo, as partes processuais, ao invocar pretensões de validade, apresentam mais que fatos. Submetem à apreciação do juiz um caso, alegando que suas afirmações

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(59) Neste sentido, v. Manfredo Araújo de Oliveira, op. cit, p. 338-348, e Sergio Paulo Rouanet, As Razões do iluminismo, São Paulo, Compa- nhia das Letras, 2000, p. 173.

(60) A teoria do direito identifica diversos focos de significação para a palavra princípios. Cada um deles cumpre uma determinada função retórica (a respeito, ver Genaro Carrió, Princípios jurídicos e positivismo jurídico, Buenos Ayres, Abeledo-Perrot, s.d., p. 33-38).

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sobre os fatos são verdadeiras e que suas formulações são justas e sinceras. A verdade consensual está no confronto dessas versões e cada versão depende de um particular interesse de quem vê o fato e da maneira como o caso é exposto. Ojuiz, por sua vez, não se limita a contemplar o caso, pois embora aquela situação possa ser subsumida a determinada norma, reina entre as partes discordância acerca da subsunção. Assim como a argumentação da parte está institu- cionalizada por regras que dizem com o ônus da prova, o julgador também está sujeito a regras de avaliação da prova, de sorte que a versão dos fatos vai sendo reconstruída diversas vezes, tal como apresentada pelas partes e tal como se coloca na decisãojudicial da primeira e das demais instâncias.6

A força ilocucionária de uma declaração sobre fato inexistente revela, no campo do processo judicial, a impossibilidade de reduzir a argumentação jurídica à lógica dos enunciados. Ao manifestar-se nos autos, a parte pratica um ato cujo significado será estabe- lecido na base da interação dos sujeitos processuais. Existe aqui uma passagem do plano do discurso para o plano da ação. Como foi visto no segundo capítulo (seção 2. 2), a reforma ao Código de Proces- so Civil, instituída pela Lei 6.771/80, ao alterar as regras do artigo 17 e incisos, afastou-se mais e mais dos limites éticos orientados pela dicotomia verdade objetiva e verdade subjetiva. Ao fazê-lo, aproximou-se de um conceito social de verdade, orientação que se foi aprofundando na reforma dos anos 90 e 2.000. O paradigma da ação comunicativa permite entender, então, como uma declaração sobre fato inexistente, na base das pretensões de validade invocadas pelas partes, é incorporada por esse processo argumentativo, que mais não visa senão ao consenso, ou seja, à satisfação do interesse social da paz jurídica, através da aplicação da lei ao caso concreto, conforme está na Exposição de Motivos do Código.62 A ameaça de

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(61) Neste sentido, vale lembrar a advertência de Jan Schapp, quando afirma que a máxima da mihifactum, dabo tibi ius não dá uma imagem exata do quadro processuai (Jan Schapp, Problemasfundamentais da metodo- logiajurídica, Porto Alegre, Sergio Antonio Fabris Editor, 1995, p. 42).

(62) A teoria do agir comunicativo é o pano de fundo da recente elaboração teórica de J. J. Calmon de Passos, que refuta a visão instrumental do

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sanção à parte que não estiver em condições de refutar as objeções (dos outros sujeitos processuais) quanto à verdade, a correção e a sinceridade daquela declaração, coloca, entretanto, a delicada al- ternativa entre discernimento e violência, uma vez que as ações de fala não podem ser realizadas com a dupla intenção de chegar a um acordo com o destinatário e, ao mesmo tempo, produzir algo nele de maneira causal.63 Isto implica considerações acerca da própria fundamentação do direito moderno, que encontra em Hobbes e Locke, ainda que de prismas diversos, explicações contratuaistas. 64

O direito, na visão de Habermas, é uma grande reserva de racio- nalidade comunicativa. Sua dimensão retórica é o mais expressivo testemunho de sua capacidade de resistência ao poder de expansão dos subsistemas de ação instrumental. A elaboração de uma teoria do abuso do direito surgiu precisamente nesse contexto do imperialismo individualista, como forma de oposição à colonização cres- cente de segmentos cada vez mais amplos do mundo da vida. Capturada pela racionalidade instrumental da sociedade de massas — que passou a desenvolver códigos mais inclusivos, além do binário lí- cito-ilícito, diante do desafio das novas demandas sociais —, vê-se agora recuperada para a filosofia. E inegável, contudo, que a dinâmica do moderno processo judicial, conquanto orientada para a conciliação (haja vista a regra do artigo 125, Iv, do CPC), não pode prescindir da obediência. Esgotadas as tentativas de entendimento, o sentido é imposto por decisão. Mas a imposição nem sempre é sinônimo de puro arbítrio. O sentido pragmático da expectativa de obediência à ordem estabelecida está no reconhecimento da au- toridade, ou seja, no reconhecimento dajustiça da norma invocada,

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processo, ao dizer que o direito só existe depois de produzido e enquan- to produzido (op. cit., p. 22, 55, 56, 58, 69, 74, 76, 89, 91, 98 e 100).

(63) Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudosfilosóflcos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1 990 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos Aleniãe.s), p. 7 1 e 1 29.

(64) É o que Habermas, citando Parsons, reconhece como problema hobbesi ano (Pensamento pós-metafísico: estudosfilosóficos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1 990, Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos Alemães, p. 83).

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critério que integra as pretensões de validade do agir comunicati- vo. Por mais fracos que sejam os contextos normativos — diz Habermas — eles são suficientes para autorizar um falante a ter uma expectativa de comportamento, que pode ser criticada pelo ouvinte. O destinatário do ato de fala pode desobedecer aos comandos que ele não considere legítimos, desde que estas ordens sejam proferidas no contexto da ação comunicativa.65

A dissolução do fundo normativo, segundo Habermas, mostra-se sintomaticamente na estrutura se, então da ameaça, que no agir estratégico assume o lugar da seriedade e da sinceridade do falante... A expressão mãos ao alto!, proferida pelo assaltante de banco que aponta o revólver para o caixa, exigindo a entrega do di- nheiro, mostra de modo dramático que as condições de validade normativa foram substituídas por condição de sanção... Somente no caso-limite do agir manifestamente estratégico é que a pretensão de validade se encolhe, transformando-se numa crua pretensão de poder, apoiada num potencial contingente de sanção, não mais re- gulado convencionalmente e não mais deduzível gramaticalmen- te.66 Mas esta regulação convencional também exige uma res- posta à questão da legitimidade do direito, que consiste em saber quem decide sobre as regras de convivência. A resposta de Habermas parece apontar para a imagem de um direito institucionalizado, posto por decisão. O que diferencia a ordem de um gângster, para que lhe seja entregue uma determinada soma em dinheiro, da ordem de um funcionário de finanças, que exige o pagamento de um tributo, é o caráter normativo.67 Qualquer semelhança entre Habermas e Kelsen, garantem alguns, não é simples coincidência.68 A solução haber- masiana, de fato, não parece ser muito diferente da resposta que

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(65) Habermas, Pensamento pós-metafísico: estudosfilosóficos, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, I 990 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90,Série EstudosAlemães), p. 1 16 e 134.

(66) ldem, p. 134.

(67) Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, 4. ed., Coimbra Arménio Amado, 1979, p. 26.

(68) Ver, neste sentido, João Bosco da Encarnação, Filosofia do direito em Habermas: a hermenêutica, 1997, p.121, 196, 197e 203.

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os juristas costumam dar ao problema jusfilosófico do fundamento de validade das normas. Entretanto, ao fundar a expectativa de obediência numa razão discursiva, Habermas aproxima-se mais da explicação de Hart, que recorre à noção de uma norma de reconhecimento, nem válida nem inválida, mas que simplesmente existe como ponto de partida para a argumentação jurídica. Aqui se pode identificar a dimensão do uso.69

Quando o ouvinte compreende e aceita a oferta contida num ato de fala que se desenvolve no contexto da ação comunicativa, é possível dizer que o ato ilocucionário foi bem sucedido. Além disto, pode ocorrer também que o ouvinte seja influenciado a comportar- se de acordo com o ato de fala (sucesso perlocucionário). Entretan- to, se as pretensões de validade levantadas pelo falante estão mina- das, configura-se aqui um rompimento unilateral dos pressupostos do agir orientado ao entendimento. Essa ação estratégica parasitária do uso convencional da linguagem fracassa tão logo o destina- tário do ato de fala se aperceba de que o falante visava a uma finalidade que não estava posta consensualmente. Em outras palavras, havia um suposto consenso, fruto da dissimulação daquele que invocou as pretensões de validade O abuso dos direitos processuais, na visão de uma teoria crítica, nada mais é que a contaminação de um agir comunicativo por um agir estratégico. O significado ilocu- cionário do ato acaba se desfigurando no momento em que cumpre função perlocucionária diversa. E o caso, por exemplo, da colusão, uma das formas de uso anormal do processo, em que os litigantes, previamente combinados, praticam atos processuais (força ilocu- cionária) com vista à produção de efeitos (força perlocucionária) diversos daquele que resultava da manifestação mesma das partes. Nesta situação perversa, os atos de fala das partes não são propria- mente ilocucionários, pois não visam a uma escolha racionalmente motivada por parte do julgador, que decide na errônea suposição de

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(69) Herbert L.A. Hart, O conceito de direito, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1986, p. 1 l 1-121 Diga-se de passagem que J. L. Austin, no quai se inspirou Habermas, tinha Hart como um dos seus interlocuto- res, como expressamente mencionado por Austin em nota de agradecimento (J. L. Austin, op. cit., p. 25, nota 9).

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uma ação comunicativa. Quando o iuiz, convencendo-se de que as partes querem se servir do processo para a prática de ato simulado, obsta ao uso anormal do processo (art. ¡ 29 do CPC), está rejeitando as pretensões de validade invocadas pelos supostos litigantes.70

No discurso processual o agir estratégico é quase sempre latente. As partes nunca dizem tudo até o fim, o que lhes permite voltar atrás quando pilhadas em alguma situação que possa comprometer as pretensões de validade inicialmente invocadas.71 Os sujeitos processuais, além disto, utilizam-se de palavras ocas como se elas tivessem uma dimensão cognitiva. A disputa em torno de uma ver- dade subjetiva ou de uma verdade objetiva, como limite ético da conduta processual das partes, levanta pretensões de validade que

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(70) Idem. p. 72-75, 96 e 97. O exemplo típico que bem ilumina o assunto é o do devedor que, para fraudar os credores, simula débito a um comparsa, em favor do qual assina promissórias. O processo para a cobrança do débito simuiado, nesse caso, visaria a frustrar o pagamento dos credores ou, pelo menos, a aviltá-lo (Hélio Tomaghi, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. 1, São Paulo, RT, 1974, p. 401). E o caso também da parte que confessa dívida, numa ação que lhe é promovida pela companheira, comprometendo, assim, a meação da esposa na sa- tisfação do suposto débito (TA Rio de Janeiro, 1 a Câmara Civil, Ap. 95.677, rel. Juiz Perlingeiro Lovisi, 22.1 1.83). Também é o caso da si- mulação fraudulenta entre exeqüente e executado para penhorar bens da pessoajurídica em que a maioria das quotas pertence ao executado, em razão de dívida que por ele já fora paga (1 .° TAC São Paulo, 8. Câ- mara, Ap. 358.690, rel. Costa de Oliveira, 16.09.86). Ambos acórdãos estão em Darcy Arruda Miranda Jr. et alii, CPC nos tribunais, vol. 3, São Paulo, Jurídica Brasileira, p. 2001-2002.

(71) ParaMarilena Chauí, o discurso ideológico é feito de espaços em bran- co. E graças a essas lacunas que o discurso se apresenta como coerente. Se o discurso disser tudo que pretende dizer ele se autodestrói como ideologia (Marilena Chauí, Cultura e democracia: o discurso compe- tente e outrasfalas, 3. ed, São Paulo, Moderna, São Paulo, p. 21-22). E comum na doutrina jurídica o argumento de que o advogado não está obrigado a dizer toda a verdade, mas apenas aquela porção da verdade que possa estar contida nas razões de seu cliente (neste sentido, v. Ruy de Azevedo Sodré, A ética profissional e o estatuto do advogado, São Paulo,LTr, 1975,p. 110).

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não se sustentam senão na base da ocultação do uso performativo da linguagem processual, vale dizer, do seu contexto pragmático. O sucesso ilocucionário de um testemunho, por exemplo, pode ver- se comproinetido pela desconsideração de uma simples formalidade. Um uso estratégico parasitário do agir comunicativo consistiria, neste caso, em plantar alguma nulidade na colheita da prova oral desfavorável à parte, para depois, invocando o error in procedendo, poder tirar vantagem da anulação do ato processual. Essa prática abusiva alimenta-se das pretensões de validade pressupostas no agir comunicativo.

A esta altura, impõe-se retomar o desafio de dar resposta a uma questão que está presente no primeiro e segundo capítulos e que consiste em saber se a ação orientada para finalidades individuais, na base de estratégias de influência, que Habermas vê como desvio do paradigma da comunicação, como deformação ideológica, não seria ela mesma expressão de uma particular racionalidade do di- reito, em vez de simples irracionalismo oportunista e parasitário. Afinal, a decisão judicial é um ato de poder, que se revela não ne- cessariamente numa relação de força, mas num conjunto simbólico por meio do qual se procura influenciar a ação dos participantes na base da ameaça da sanção (poderjurídico). A violência simbólica estaria na própria gênese do discurso jurídico, não se revelando apenas em contextos de frustração do entendimento. No dizer de Francisco Ramos Méndez, o processo não é uma disputa entre ca- valheiros, cheia de flores e mesuras.... Nele se refletem as mesmas tensões do resto da sociedade.72 Avalizar esta interpretação implicadia reconhecer que o abuso do direito processual, como agir estratégico, não é parasitário do agir comunicativo e tampouco uma alternativa para a ação comunicativa fracassada. Engendrado nas relações de poder constitutivas do próprio direito da sociedade moderna, o abuso dos direitos processuais somente ganha sentido no processo de produção concreta do direito. Ainda aqui Habermas vislumbra vestígios de mundos da vida compartilhados intersubjetivamente,

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(72) Francisco Ramos Méndez, Abuso de derecho en el proceso?, in José Carlos Barbosa Moreira (org.) Abuso dos direitos processuais Rio de Janeiro, Forense, 2000, p. 6.

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base imprescindível até mesmo para as interações estratégicas.73 Com ser um ato impositivo, a decisão judicial não pode prescindir da referência a certos valores, e tampouco da utilização da função expressiva da linguagem.

Habermas sustenta que somente uma metalinguagem crítica, ou seja, só mesmo uma teoria crítica da ideologia, desenvolvida do ponto de vista da gênese e da validade, estará em condições de de- nunciar a contradição interna do discurso ideológico, fazendo-o explodir. Esta atitude teórica dialética implica uma crítica das pre- tensões de validade do ponto de vista um terceiro observador, o que acaba resgatando o lugar privilegiado da relação comunicativa.74 Ao mesmo tempo, ela recupera a dignidade do campo retórico, que deixa de ser espaço do puro arbítrio, como faria supor uma filosofia centrada no sujeito. Esta perspectiva, aliás, é também uma resposta às dificuldades em que a teoria dos atos de fala acabou desembocando no final do capítulo anterior, mais precisamente à dificuldade con- sistente em fundar umal teoria crítica da ciência na base do uso de uma linguagem que é, ela própria, objeto daquela reflexão proble- matizadora. Todavia, como apontado no segundo capítulo (seção 2.3), não se pode desconsiderar as dificuldades em estabelecer limites entre a metalinguagem epistemológica (teoria do direito) e a linguagem da ciência prática (dogmática jurídica). Diante disso, resta saber da possibilidade desse distanciamento entre teoria e ciên- cia prática do direito, como proposto por Habermas.

5.4 A possibilidade do agir comunicativo no processo judicial

Diz a fábula de Esopo que o vento e o sol discutiam para saber qual dos dois era o mais forte, quando avistaram um viajante andando pela estrada. Combinaram, então, que aquele que conseguisse fa- zer o homem tirar o casaco seria considerado o mais forte dos dois. O vento deu um sopro tão intenso que quase arrebentou as costuras

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(73) Habermas, Pensamento pós-metafísico.. estudos filosóficos, Rio de Ja- neiro, Tempo Brasiieiro, 1990 (Biblioteca Tempo Universitário, vol. 90, Série Estudos Alemães), p. 98.


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