Baianidade nas letras de Caetano Veloso e Gilberto Gil


A cultura baiana na perspectiva histórica



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2. A cultura baiana na perspectiva histórica

Tratando da cultura baiana, o mais importante é salientar o fato que ela não é homogênea. A cultura do litoral extremo-sul da Bahia, da região cacaueira, é muito diferente do interior, por exemplo, da região do rio São Francisco. Até para um estrangeiro que visita esta zona, as diferenças entre as regiões visitadas na Bahia são nítidas. A culinária de cada lugar na Bahia tem seu sabor próprio, o sotaque dos baianos difere de um lugar para outro, assim como a música tocada nas ruas tem seus ritmos variáveis.

Portanto falar sobre uma cultura baiana é impossível. Mas o que então entender sob a designação da “cultura baiana”? Para a maioria dos brasileiros, a Bahia é intimamente ligada à cidade de Salvador, às vezes chamada a Cidade da Bahia. Assim, a cultura baiana é, para este texto, entendida, conforme a definição de Antonio Risério, como “a cultura predominantemente litorânea do recôncavo agrário e mercantil da Bahia, que tem como principal núcleo urbano a tradicional Cidade do Salvador da Bahia de Todos os Santos6. Essa cultura, ganhando ao longo do tempo influências de várias nações, pode ser hoje simplificadamente caracterizada como luso-banto-iorubana com traços tupis. Tomando em consideração também os aspetos econômicos e políticos, vamos falar sobre a contribuição de várias nações para a constituição da cultura baiana.

Os índios tupinambás, do grupo língüístico tupi, foram os primeiros habitantes da baía de Todos os Santos. Os colonizadores portugueses, que chegaram no início do século XVI, apesar de exercer a política da dizimação, não conseguiram extirpar toda a herança indígena. Ela permanece no vocabulário baiano, principalmente nos topônimos e no léxico pesquiero e, por exemplo em Itapuã, o bairro ligado a Dorival Caymmi, é bastante notável. Além de Caymmi, também Caetano Veloso notou essa herança do tupi e compôs a melodia “Two Naira fifty Kobo” com letra sequinte: “a força vem dessa pedra, que canta Itapuã, fala tupi, fala iorubá”.

A influência portuguesa é omnipresente e não é necessário abordar amplamente esta questão. Com a força dos colonizadores, os portugueses imprimiram na Bahia as marcas de sua cultura (por exemplo, o centro de Salvador com seus sobrados pode-se facilmente confundir com as cidades portuguesas da época) e o português tornou-se a única língua oficial do Brasil inteiro. Em 1549 fundaram Salvador. A cidade já foi planejada pelo governo português com fins transnacionais e não evoluiu, como era comum, de um agrupamento, que se transforma em vila e posteriormente em cidade. A Cidade da Bahia tornou-se a capital da nova colônia e seu centro comercial e administrativo que se aproveitou do comércio açucareiro. Esse período da história de Salvador é bem caraterizado nos poemas do famoso “Boca do Inferno”, Gregório de Mattos, que “bebeu o mel dos engenhos nos lábios grassos das negras”.7 Nos séculos XVI e XVII, Salvador era a maior cidade europeia fora da Europa, mas também o maior agrupamento africano fora da África.

Nos séculos XVI e XVII (depois da proclamação da lei de 1570 que proibira a escravatura dos índios), por conta do tráfico de escravos, apontaram na Bahia os povos do grupo lingüístico banto, vindos de Angola e do antigo reino do Congo. A mão-de-obra deles ficou imprescindível para a indústria açucareira. A partir dos fins do século XVIII perderam a hegemonia, quando o comércio de escravos se mudou para a África superequatorial (região da Costa da Mina e Golfo do Benin – lugares com as primeiras feitorias portuguesas na África). Entretanto, esses negros bantos, apesar de contínuo processo de aculturação, deixaram marcas profundas na sociedade baiana. Por exemplo, eles criaram já no século XVI a importante irmandade do Rosário dos Pretos do Pelourinho, que se mantém até o presente e que, além da função religiosa e social, contribui à divulgação da cultura negra. As línguas bantos têm presença marcante nos falares populares ─ foram eles que deixaram no léxico baiano as palavras como dendê, bunda, samba, candomblé, quiabo, macumba e umbanda. Os bantos estavam presentes no carnaval de fins do século XIX, com entidades como os Pândegos da África; foram responsáveis pela introdução da capoeira e do samba na Bahia (e no Brasil em geral); mantiveram suas tradicionais religiões através dos candomblés congo e angola.

O fluxo dos bantos para a Bahia pára nos fins do século XVIII, quando teve início um período de influência marcadamente sudanesa, com a chegada dos fons do Benin, identificados como jêjes, e dos iorubás, conhecidos também como nagôs. Por terem vindo em grande número e pelo intercâmbio constante com a costa ocidental africana, exercem considerável supremacia no século XIX e passam a ocupar o lugar central entre as culturas africanas. Já naquela época a Cidade da Bahia era o caldo cultural, porque quando os escravos chegaram para a Bahia, foram estrategicamente misturados pelos senhores de engenho, para que não houvesse a concentração das pessoas da mesma nação, a fim de evitar uma revolta organizada. Então, misturaram-se várias nações e a cultura deles com culturas diferents. Com a superioridade numerosa dos negros, Salvador tornou-se, literalmente, uma cidade africanizada, “pautada em um florescimento cultural jêje-nâgo, com grande ênfase na preservação de formas institucionais religiosas, animadas por uma recente memória”.8 Mas entende-se que a camada portuguesa com a religião católica não desapareceu e portanto a Cidade da Bahia permaneceu portuguesa-banto-jêje-nagô e o sincretismo e a diversidade cultural se torna uma das características marcantes da Bahia.

Aqui é conveniente sublinhar a estabilidade que caracterizou a história demográfica da região. A Bahia ficou quase inatingida por aquilo que, da perspectiva da história geral do Brasil, é chamado de “migrações secundárias” (com a exceção da imigração iberiana, que não mudou seriamente a distribuição das nações e cultura instalada na Bahia).

Até a proclamação de lei que proibiu o tráfico dos negros, em 1851, chegaram à Bahia negros de várias nações para que trabalhassem como escravos nos engenhos baianos e nos campos de tabaco. Mas os grandes dias do açúcar acabaram com o desenvolvimento da tecnologia do uso da beterraba para a produção açucareira na Europa e com o incremento dos engenhos de açúcar no Caribe. E chegou mais um golpe – a descoberta do ouro nas Minas Gerais, no último decênio do século XVII. Mesmo ao longo da primeira metade do século XVIII, em favor de suas funções de porto comercial e centro político, Salvador era ainda a mais importante, rica e populosa cidade do Império português, depois de Lisboa.9 O que mais humilhou a vaidosa Cidade da Bahia foi a mudança da capital para o Rio de Janeiro, que ofereceu as melhores possibilidades para o comércio do ouro, em 1763. Esta mudança, bem como a instalação da sede da monarquia lusitana, em 1810, e, posteriormente, da sede do império brasileiro atestam a significância secundária da “velha mulata”, reduzida de centro do Brasil Colônia a uma função meramente regional. A Bahia vai se encerrando em si mesma e em seu isolamento mantém a arcaica trama produtiva que não foi muito atingida pela alteração revolucionária nas relações trabalhistas com a “Lei Áurea” de 1888 o que acelera seu declínio. O certo isolamento intesificou as relações pessoais e, assim, promoveu o desenvolvimento de costumes locais. Na passagem do século XIX para o século XX, Salvador até deixa de ser o centro regional, com Recife assumindo o comando das operações nordestinas e a expansão dos cacauais no eixo Ilhés-Itabuna.10

Até a década de 50 do século passado, Salvador continua a ser uma cidade ancorada nas tradições, hierarquizada sócio-racialmente, conservadora e pré-industrial. A este propósito, fala-se às vezes de “enigma baiano”. A Bahia não teve lugar na primeira onda de modernização urbano-social, que se armou no país após a revolução de 1930 e a estrutura económica da província permanece essencialmente agro-mercantil. Só nos anos 50, com o desenvolvimento industrial provocado pela descoberta do petróleo e com a vinda da Petrobrás para o Recôncavo, podemos observar mudanças sérias na sociedade e na cultura baiana. Vamos dedicar mais espaço ao conjunto de elementos que teve influência nessa alteração mais acentuada nos modelos relacionais dos habitantes desta região e no campo da cultura e que possibilitou o nascimento da tropicália. Até podemos dizer que se criou uma atmosfera de efervescência cultural propícia ao aparecimento, à formação e ao desenvolvimento de uma personalidade cultural criativa que se encarnou em artistas-pensadores como Caetano Veloso ou Glauber Rocha.

De boa parte responsável por esta situação foi a implantação da Universidade Federal da Bahia, em 1946, que foi dirigida pelo reitor Edgar Santos. Ele foi uma peça-chave, personagem fundamental no processo do desenvolvimento cultural de Salvador. Esta afirmação pode ser ilustrada pelas palavras de Gilberto Freyre, o importante antropólogo brasileiro: “Encontrei, o ano passado, a Bahia ainda mais cheia que nos anos anteiores do espírito universitário que vai comunicando à sua vida e à sua cultura o reitor Edgard Santos...Pois, a ação renovadora desse reitor verdadeiramente magnífico não se vem limitando a dar novo ânimo ao sistema universitário baiano, considerado apenas nos seus limites convencionais. Ao contrário: ele vem se especializando em associar, de modo mais vivo, a Cidade à Universidade”.11 O reitor concentrou-se na instituição universitária, fazendo dela o centro da agitação cultural. Mas, como fica claro da citação de Gilberto Freyre, a Universidade não ficou encerrada em si; Egdard Santos planejava grande difusão da Universidade rumo à Cidade. Por exemplo, na abertura dos Seminários Internacionais de Música, realizados em 1958, o reitor acentua a importância dos músicos “na vida espiritual da cidade”.12 A Universidade foi muito inovadora – em 1956, por exemplo, abriram ali o único curso de dança de nível superior no país.

Entre as décadas de 1950-1960, a isolada e tradicional Cidade da Bahia achou-se de repente sob um forte influxo de informações internacionais. Foi porque Edgard Santos deixou-se cercar por colaboradores estrangeiros. A Escola da Dança recebeu a polonesa Yanka Rudzka, uma das pioneiras da dança moderna no Brasil, o convite do reitor foi aceitado pelo músico alemão Hans Koellreutter, que tornou o Seminário da Música em um centro de liberdade criativa e experimentação artístico-musical. Sob a proposta do pensador português Agostinho da Silva, foi pela UFBA criado o Centro dos Estudos Afro-Orientais (CEAO), o núcleo do conhecimento brasileiro acerca das realidades africanas e asiáticas. Outras pessoas com idéias vanguardistas desembarcaram na Bahia. Por exemplo, o compositor experimental Walter Smetak, foi uma das fontes da inspiração para Caetano Veloso e Gilberto Gil e os dois elogiam-no em sua obra.13 Além da Universidade, outras instituções formaram o “avant-garde” baiano. Na cidade foi estabelecido o Cineclube baiano, decisivo para a divulgação dos filmes não-comercias e para a criação do Cinema Novo no país, representado por Glauber Rocha.14 Sob o comando de outra estrangeira, arquiteta italiana Lina Bo Bardi, foi construída outra instituição extrauniversitária, o Museu da Arte Moderna, que é uma peça fundamental no desenvolvimento cultural da cidade.

Para a ilustração da importância dos acontecimentos culturais em Salvador na década de 50 e 60, para o grupo dos artistas como Glauber Rocha, Gilberto Gil ou Maria Bethânia, ouçamos as palavras de Caetano Veloso: “Todos dessa geração devemos muito ao reitor Edgard Santos, devemos enormemente a dona Lina [Bo Bardi]...Lina é responsável pela civilização de uma geração”.15 Os protagonistas e consumidores dessa fase do florescimento cultural, chamado também de o “avant-garde” baiano, eram preponderantemente os brancos16, a minoria da população de Salvador. Mas os negros não ficaram fora da agitação cultural da época, apesar de não pertencerem ao “avant-garde” baiano. Sobre grande avaliação da cultura negra vamos falar a seguir.

Seria injusto não mencionar outras personalidades que não pertenceram ao “avant-garde”, mas que também contribuíram com seu trabalho ao desenvolvimento cultural da Bahia. Como já foi o caso dos artistas e pensadores citados, muitas delas eram estrangeiros. Inspirado pela leitura do romance Jubiabá, de Jorge Amado, e em busca de uma cultura vital, de raiz negroafricana, o francês Pierre Verger decidiu morar na Bahia. Impressionado pela beleza e profundidade do culto do candomblé, passou a freqüentar este mundo e em suas fotografias apanhava a vida dos negros baianos. Sem a formação acadêmica, tornou-se um antropólogo respeitado e um especialista na área das relaçãoes Bahia-África. Também o pintor de origem argentina, conhecido pelo apelido Carybé, achou a fonte da inspiração no mundo dos rituais afro-brasileiros, nos orixás e no folclore dos baianos. Ele também veio de longe por causa das referências da Bahia nos livros de Jorge Amado e, apesar de não ser baiano, ele é considerado o maior retratista da chamada baianidade. A todos acima referidos, aos artistas vanguardistas, assim como a Verger e a Carybé, dedica as palavras de homenagem o escritor Jorge Amado, que não pode faltar, juntamente com Dorival Caymmi, na lista dos nomes que contribuíram ao florescimento da cultura baiana nas décadas de 50 e 60.

Graças ao trabalho das personalidades como Verger ou Carybé, na década de 70 desenvolve-se a propagação da cultura negra junto com a criação dos blocos afro, organizações comunitárias dos negros, como Ilê Aiyê e Olodum. A cultura negra já não é marginalizada e, junto com aquela cultura “superior”, criada sob a influência vandguardista nos anos 60, constrói a cultura baiana contemporânea, talvez a mais significativa expressão cultural do Brasil inteiro.


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