Baianidade nas letras de Caetano Veloso e Gilberto Gil



Yüklə 244,54 Kb.
səhifə9/22
tarix05.01.2022
ölçüsü244,54 Kb.
#66330
1   ...   5   6   7   8   9   10   11   12   ...   22

6. O tropicalismo

O movimento denominado tropicalismo ou tropicália é considerado o único movimento vanguardista originalmente brasileiro. Como esse movimento surgiu a partir das idéias de Caetano Veloso e Gilberto Gil, achamos indispensável caraterizar em breve as principais fontes inspiradoras, as manifestações e as atividades do tropicalismo. O tropicalismo conecta-se ao tema da baianidade através de seus protagonistas porque grande parte deles são da Bahia (às vezes o núcleo dos tropicalistas é chamado grupo baiano), apesar de não fazer da Bahia um de seus temas. Este fato é ilustrado pelas palavras de Caetano Veloso: “...A existência da Bahia – o tropicalismo mal tratou de assunto...”34.

Como já insinuamos nas biografias dos dois músicos, o movimento tropicalista surgiu em São Paulo após III Festival da Record, onde Caetano Veloso apresentou a música “Alegria, alegria” e Gilberto Gil “Domingo no parque”. Mas essas canções ainda não integraram um movimento e os cantores não se apresentaram como porta-vozes do qualquer grupo. Antes eles tentaram explicar de várias formas a novidade das composições, mostrando as principais influências que sofriam. Como vemos na tantas vezes repetida afirmação do próprio líder do tropicalismo, a inovação teria que ser feita através da “retomada da linha evolutiva da tradição da música brasileira na medida em que João Gilberto fez".35

Então, como quiseram Caetano e seus companheiros evoluir a MPB? O primeiro impulso foi quebrar o antagonismo música de protesto/jovem guarda, como foi, segundo um programa na TV Record, designado o suave rock brasileiro comercial criado sob a influência de Elvis Presley e, posteriormente, dos Beatles. O primeiro passo foi a inserção das guitarras elétricas nas canções de Caetano e Gil, o que ocorreu justamente no III Festival da Record. Esse fato não foi bem visto pela ala nacionalista da bossa nova. Portanto, o primeiro impulso tropicalista foi, com a inspiração de arte pop, abrir as portas para o produto estrangeiro, combatendo a xenofobia que impedia o diálogo da produção nacional com internacional. Essa abertura significava trabalhar as questões do universo pop como a inevitabilidade do consumo, o imediatismo da propaganda, a vida urbana, usando muitas citações do mundo externo, de um outro, com fim de questionar o problema.36 Os futuros tropicalistas viam aquela retomada da linha evolutiva na adoção da linguagem universal do rock e esse fato pode ser ilustrado mais uma vez por próprio Caetano: “Nego-me folclorizar meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas”.37 Mal aceita por uma parte do público e pela ala nacionalista do mundo musical, no entanto, desde o primeiro momento a atitude dos tropicalistas baianos recebeu o apoio decisivo dos grupos mais fechados da música e, o que também era muito importante, da poesia de vanguarda. Estes viam no novo movimento um reforço na luta contra o subdesenvolvimento do país, contra o tradicional, e a possibilidade da abertura para o internacional e o universal.38

Já foi dito que os poetas, que com maior intensidade mostraram o interesse pela produção da tropicália, eram os concretistas de São Paulo. Eles descobriram desde logo as afinidades entre a linguagem do grupo baiano e o concretismo, além de parantesco de comportamento deles com as propostas antropofágicas de Oswald de Andrade. Antropofagismo, a corrente literária liderada por Oswald de Andrade, que surgiu em 1928 como uma importante tendência do modernismo brasileiro, é baseada na idéia da devoração cultural e teve algumas idéias incorporadas pelos tropicalistas. Celso Favaretto acha as seguintes afinidades: “O que o tropicalismo retém do primitivismo antropofágico é mais a concepção cultural sincrética, o aspecto de pesquisa de técnicas de expressão, o humor corrosivo, a atitude anárquica com relação aos valores burgueses, do que a sua dimensão demográfica e a tendência em conciliar as culturas em conflito. Constrói um painel em que o universo sincrético se apresenta sob a forma de um presente contraditório, grotescamente monumentalizado, como uma hiperbóle distanciada de qualquer origem”.39 Com a contribuição dos concretistas, principalmente de Augusto de Campos, as apresentações do grupo baiano passaram a configurar realmente um movimento, apesar de, segundo Gilberto Gil: “Tropicalismo surgiu mais de uma preocupação entusiasmada pela discussão do novo do que propriamente como um movimento organizado”.40

Então, o movimento do tropicalismo assumiu as construções da bossa nova, as idéias da poesia vanguardista, os conceitos da contracultura em que se inscrevia a arte pop e da música internacional à base de rock. Mas a enumeração das manifestações que subjazem o tropicalismo ainda não é completa. Quem teve em vista as atividades do movimento desde o início e acompanhou as entrevistas e os debates a respeito da cultura brasileira, dos quais participaram Caetano Veloso e Gilberto Gil, teve a oportunidade de ver ratificadas as influências que eles sofreram dos espetáculos realizados para o cinema, para o teatro e para a galeria.

O filme, que causou maior impacto no ambiente dos tropicalistas, foi o exemplo da produção do Cinema Novo no Brasil “Terra em transe”, de 1967, dirigido pelo amigo de Caetano e Gil, conhecido desde os tempos universitários em Salvador, Glauber Rocha. Além da inovação formal e da busca radical de uma linguagem inovadora, o filme trouxe o questionamento da política e da identidade nacional, mas não de forma didática e militante, e sim como um problema.

A manifestação do teatro que se aproximou das práticas tropicalistas foi a peça de Oswald de Andrade “O rei da vela”, encenada pela primeira vez em 1967 em São Paulo. Essa farsa também contém a questão política, mas com cinismo dedica-se ao desenvolvimento mental e artístico do Brasil com o propósito de chocar a platéia. A respeito do filme “Terra em transe” e da peça “O rei da vela”, confirmando assim a importância dessas manifestaçãoes artísticas, Caetano Veloso confessou: “Toda aquela coisa de Tropicália se formou diante de mim no dia em que vi “Terra em transe”...você sabe, eu compus Tropicália uma semana antes de ver “O rei da vela”, a primeira coisa que eu conheci de Oswald”.41

De todas as experiências que, em 1966-1967, se aproximavam melhor do procedimento tropicalista, quem o primeiro melhor expressou a tendência foi o artista plático Hélio Oiticica. Na exposição “Nova objetividade brasileira”, no Museu de Arte Moderna em São Paulo, ele apresentou com seu trabalho intitulado “Tropicália” as principais tendências artísticas da época: vontade construtiva geral, tendência para o objeto, participação corporal, tátil, visual, semântica, do espectador, tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais, éticos, tendência a uma arte coletiva e reformulação do conceito antiarte.42 Do conceito antiarte aproxima-se a tendência kitsch que é frequentemente usada pelos tropicalistas. Pela retomada crítica do kitsch, definido como “todo material arístico-literário considerado popularmente como de má qualidade, em geral de cunho sentimentalista ou sensacionista, mas produzido com o intuito de apelar para o gosto popular43, os tropicalistas conseguiram abalar os padrões do bom gosto estabelecido na sociedade brasileira e, ao mesmo tempo, provocar e criar um sentido crítico. A permabilidade ao kitsch revela-se também na participação no programa do Chacrinha, rejeitado pela maioria dos músicos sérios, onde os protagonistas do tropicalismo apresentaram os verdadeiros happenings.44

Os movimentos da vanguarda lançaram seu ideário de ruptura em manifestos. O tropicalismo também tem um manifesto, mas este é da natureza diferente daqueles da virada do século XIX para XX – é um disco. Com a participação dos baianos Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Rogério Duprat, Torquato Neto, Capinam e de Nara Leão, musa da bossa nova, e do grupo Os Mutantes foi lançado, em maio de 1968, “Tropicália ou panis et circensis”, que exprime, em forma que exige a decifração, as idéias do movimento. Música, letra, fotografia da capa e texto da contracapa combinam-se num signo complexo, compreensível apenas para quém já está familiarizado com o pensamento dos protagonistas do movimento. Até o título do disco pede uma decifração, concretamente a parte em latim. Essa deve remeter ao tempo do pão e circo romano, mas a palavra circencis não existe em latim.45 O título do disco mostra que tudo começa com humor, no entanto, surge uma questão: é a função da arte desviar o povo dos seus problemas reais, como acontecia na época romana?


A cançaõ mais importante do disco “Tropicália ou panis et circensis”, ou até podemos dizer do movimento tropicalista, é “Tropicália”, composta em 1967 por Caetano Veloso. Segundo ele, a canção não tinha nome, mas justificava para ele a existência do disco, do movimento e também de sua profissão do músico, que ainda lhe parecia provisória. O nome foi proposto pelo fotógrafo Luís Carlos Barreto que tinha encontrado as afinidades entre a música de Caetano e a obra “Tropicália” de Hélio Oiticica.46

“Tropicália” surpeende já em seu início com a citação paródica de um trecho da carta de Pero Vaz Caminha, acompanhada pelos sons e ruídos, que imitam os cantos de pássaros e o rumor da selva.47 Esta introdução antecipa toda a canção que é construída através de justaposição e superimposição de frases, citações e fragmentos sonoros, dos quais deve ser erguida a imagem do Brasil contemporâneo. O texto é estruturado em torno da oposição dos elementos nacionais, dos fragmentos arcaicos e modernos. Caetano usa na canção muitas citações, que, como já vimos, é uma das características do movimento tropicalista, e essas frases ditas por um outro sujeito coloca em contradição. Então, a imagem do país é construída e ao mesmo tempo desmontada, oscilando entre o jocoso e o sério. Alguns pesquisadores denominam esta alternância carnavalização e descarnavalização.48

A letra da música é composta de cinco estrofes, intercaladas por refrões que dão “vivas” a elementos nacionais, que também são destacados pela contradição. Nos refrões temos então as oposições como “bossa” e “palhoça”, onde bossa aponta para o moderno, o que agrada a juventude urbana de classe média, enquanto as classes populares e o arcaico representa a palhoça. No outro refrão são dadas em oposição o bairro carioca da classe média e o centro da Bossa Nova “Ipanema” com “Iracema”, a índia de José de Alencar, um dos mais importantes símbolos da brasilidade, mas também algo, que se encontra no estado puro, intato pela civilização. Como a contradição para a “Bahia”, serviu a Caetano “Maria”, fazendo assim alução ao filme de Louis Malle com o mesmo título, que faz a referência às mulheres na América Latina. Segundo a observação de Márcia Morães de Silva, na palavra Bahia, com a pronunciação das últimas duas sílabas destacadada, há que se ressaltar a voz dos negros baianos, os quais chamam a patroa, a senhora a quem servem de “iá-iá”.49

Na primeira estrofe Caetano situa a si memo como narrador em Brasília, no centro das decisões do país, onde se passa da ação séria e transformadora (eu organizo o movimento) à ação lúdica (eu oriento o carnaval) e, afinal, à ação oficial e conservadora (eu inauguro o monumento). Mas apesar de verbos terem os sentidos bastante diferentes, Caetano tenta sugerir a sensação de que os elementos são equivalentes e intercambiáveis por usar exatamente a mesma quantidade de sílabas, com o acento forte colocado na mesma posição, e entoados com a mesma melodia.50 A segunda estrofe descreve aquele monumento, inaugurado na estrofe anterior, e ele ganha aqui significados diferentes – torna-se antes uma brincadeira carnavalesca. Mas logo depois o monumento revela o lado repugnante e, neste momento, Caetano Veloso ousa usar uma contradição mesmo chocante: “e no joelho uma criança sorridente feia e morta / estende a mão”. Na terceira estrofe, novamente deparamo-nos com a contraposição de felicidade burguesa, modernidade e elementos de beleza natural: “No pátio interno há uma piscina / com água azul da Amaralina / Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis”. Amaralina, coqueiro, brisa, fala nordestina e faróis, além de remontar à origem de Caetano, são elementos típicos da paisagem da Bahia, mas também signos do subdesenvolvimento dentro do desenvolvimento. Na penúltima estrofe o autor apresenta como a imagem da esquerda é vista no Brasil. Há uma alusão à guerrilha, na qual estava empenhada uma parte da esquerda estudantil, mas também é referido um símbolo brasileiro, aqui representando o nacionalismo, um samba.51 A canção termina com um comentário sobre o cenário musical brasileiro: encontramo-nos aqui com duas alusões aos programas da televisão dedicadas à MPB (O Fino da Bossa, comandado pelos grandes cantores Elis Regina e Jair Rodrigues e O Fino da Fossa), e com a citação explícita de uma canção de Roberto Carlos, um dos protagonistas da internacionalização da música brasileira e representante da Jovem Guarda: “que tudo mais vá pro inferno”.52

Vimos que Caetano mistura na canção “Tropicália” muitos dos ingredientes típicos para o tropicalismo. Ele usa-se da ironia, das metáforas e da polissemia como formas da heterogeneidade, além de “justapor vozes para construir a imagem do Brasil e, ao mesmo tempo, desmontar mitos do nacionalismo ufanista e do Brasil como país onde tudo acaba em carnaval”.53 Seria possível dedicar ainda muito mais espaço às manifestaçãoes do tropicalismo de Caetano Veloso, mas isso não é fundamental para a nossa questão. Vamos proseguir para a análise dos vários aspectos da baianidade não somente na obra de Caetano, mas também de Gilberto Gil.


Yüklə 244,54 Kb.

Dostları ilə paylaş:
1   ...   5   6   7   8   9   10   11   12   ...   22




Verilənlər bazası müəlliflik hüququ ilə müdafiə olunur ©muhaz.org 2024
rəhbərliyinə müraciət

gir | qeydiyyatdan keç
    Ana səhifə


yükləyin