RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS DOSTOIEVSKI
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I, cl.)
F. M. DOSTOJEVSKI
Por V. C. Peroy, artista russo (retrato de 1872)
COLEQµ0 FOCOS CRUZADOS
50
DOSTOIEVSKI
RECORDA€OES DA
CASA DOS MORTOS
ROMANCE
O
Traduvao de
RACHEL DE QUEIROZ
Xilogravuras de
OSVALDO COELDI
Prefacio de
BRITO BROCA
Capa de SANTA ROSA
1945
'Livraria JOSÒ OLYMPIO Editora
Ouvidor, 110, Rio - Gusmões. 104, S. Paulo #
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Deste livro foram tirados, para- bibli¢filos. cento e cinquenta
exemplares em papel Bouffant extra, creme, em grande for-
mato, numerados de 1 a 150.
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NOTAS SOBRE
"RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS"
Poi& BRITO BROCA
A id‚ia de Dostoievski condenado por crime pol¡tico ao mais
duro degredo na Si-beria, tem levado o p£blico pouco infotrmado
sobre a vida do escritor a imagin -lo um revolucionario. . o erro
em que vinha incorrendo muita gente, entre n¢s, antes da vulgari-
za‡ão de biografias do romancista e do incremento dos estudos dos-
toievskianos de alguns cmos para c , no Brasil. Dostoievski nunca
foi revolucionario no sentido pol¡tico e social, e sua obra, nesse plano,
‚ meMo a de um reacionario e conformista. Somente no terreno
literario, art¡stico, ou mais propriamente psicol¢gico, podemos consi-
der -lo revolucionario. Nesse, terrewo,, ‡im, Dosfoievski revolucio-
nou o conceito de romance indo de encontro ... psicologia cl ssica, e
abrindo caminho para os abismos do inco-nciente, onde mergulharia,
mais tarde, Preud, como um escafandro. O romancista russo iniciou
a descida aos infernos a que se refere um dos bi¢grafos do sabio
vienense.
Mas quais foram, na realidade, as circunstancias que levaram
Dostoievski ... pris"o? Uma injusti‡a, podemos dizer. O romancis-
ta na-da fez que merecesse t"o duro castigo - a punicõo tremenda
infligida aos implicados na pseudo-consPira‡ão Petradevski., Veja-
mos a historia. Petrachevski era um funciovario do MNister¡o do
Interior, descontente com o regime - a tirania (Ia tzar Nicolau 1,
que sempre nos aiparece com as cores mais negras, embora tantos
historiadores tenham procurado ateviM-la , eXPUcando-a em face
das wndi‡õe:, especial¡ssimas da vida russa. O inicia do governr,1
do Izar foi, como se. sabe, as,~ina?,7(lo pela insurrei‡ão dos "decem-
bristas" - um movimento de nobres, exigindo reformas pol¡ticas e
sociais. Os conspiradores pagaram a audacia na forca, e no exilio.
Mas o ambiente ficou, carregado e o esp¡rito do tzar tern¡veIm ente
prevenido. Ali s, o descontentamento continuou em ebul~Põo sub-
terranea, principalmente entre a pequena burguesia e os intelectuais.
Petrachevski era dos que achavam que havia muita coisa errada,
ou antes, tudo estava errado, embora não possuisse id‚ia n¡tida e #
- X -
definida do que Seria preciso fazer para modificar aquilo. COM
menor nitidez ainda se esbo‡avam as id‚ias no esp¡rito dos intelec-
tua£. A Europa vivia em plena efervescencia romƒntica, em pleno
s~ libertario, o por toda parte surgiam as exalta‡ões m¡sticw do
sooWlinno ut¢pico. ' Os intelectuais russos liam, como tanta gente,
pourier, Saint-Simon, os romances socializantes de George Sand
e im&ginavam as maneiras de aplicar aquelas teorias na Russia -
na Russia, esse mundo diferente, isolado do resto da Europa. De
que maneira concretizar tais principios numa realiza‡ão pr tica e
positiva? Era o que winguem sabia, mesmo porque os russos ainda
~ que fazer a "revolu‡ão francesa", vencer essa grande etapa,
para chegar aos ideais de Fourier e Saint-Simon. Na Russia ainda
havia servos, como no apogeu do feudalismo, e sem a medida prelimi-
nar de abolir a servidõo nada seria possivel. Eis um dos problemas
capitais que se discutiam em casa de Pe,trachevski. Discussão sem
consequencia, sem nenhum inicio de a‡ão, mesmo porque os interlo-
cutores divŠrgiam em seus pontos de vista. O destino de Dostoievski
levou-o a frequentar essas reuniks. Como intelectual, pensava tarn-
bem na sorte da Santa Russia, na miseria do povo e na arrogancia-
dos nobres. Lera os utopistas, admirava enormemente George Sand
e perdia-se em confabula‡ões. Bastariam essas cireunstaneias para
fazer dele um revolucionario? Certamente não. Havia em Dos-
toievski o anseio de harmonia e (le justi‡a comum. a quase todos os
intelectuais. Por que tanta gente a gemer na servidão? Por que
tanta dor, tanta queixa? Ah! era preciso suprimir esses males! E
as palavras de Cristo a ecoarem em seu cora‡ão: "Amai-vos uns
aos outros". Teria isso alguma coisa com a id‚ia de pegar em armas,
rebelar-se contra o poder, derrubar o tzar? Não. Dostoievski tem
confian‡a no tzar e acha que do proprio soberano devem partir as
medidas reformadoras. No fundo, o que o exalto, ‚ o iJeal de um
mundo perfeito. Temperamento nervoso, tem, entretanto, os seus
instantes de arrebatamento. Imvreca, contra os abusos da nobreza, a
intolerancia do clero, fala em revolta. Não nos esque‡amos de que
se trata de um epil‚tico. Seria absurdo Julg -lo por essas expan-
sJes passageiras. Dostoievski est longe de ser uma das figuras prin-
cipais,nas reuniões de Petralchev‡W: h outros que falam e se excedem
mais do que ele, embora tão ivocuos quanto o romancista., no terreno
pr tico. A fatalidade leva-o ai distinguir., entre todos, o £nico pe-
rigoso - o estranho Spechnev, com o qual se liga em -intima caniara-
dagem. Spechnev ‚ o tipo d( conspirador vato: vasceu para isso r
parece prelibar a volupia do martirio. Acabar w forca, ele bem o
sabe, e todos os seus passos o encaminham, dia a dia, para esse desti,
no inevitavel. Dostoievski sofre a influe?~eia irresistivel do compa-
nheiro, do anjo mau. Talvez houvesse uma inten‡ão literaria -nessa
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aproxima‡U. O roma"tai veria em gpechnev um bom tipo~ um
estranho exemPlar humano. E a propria maneira de referir-se ao #
companheiro, chamando-o Mefist¢feles, trai literatura.
Descontente com aquelas reuniões, onde muito se discutia, sem
cuidar de agir, Speehnev pensa numa conspira‡ão mais efioiente,
para a qual seduz Dostoievski. Essa conspira‡ão, na verdade, tam-
bem não chegou a efetivar-se, mas a, influencia de Specƒnev teria con-
tribuido_para que o romancista tomasse atitudes mais exaltadas na
casa de Pet~evski.
Enquato isso, a Terceira Sec‡ão trabalhava. Certo Antonelli,
espião estipendiado pela policia, tomava parte nas reuniões, fazendo
detalhados relatorios de tudo que presenciava. Por maior que fosse
o seu empenho, entretanto, não conseguia reunir provas capazes de
comprometer Petrachevski e. os amigos. Era preciso esperar, ter
paciencia. A&3 poucos a realidade da eonspira‡jo havia de concre-
tizar-,se. As expansões iam-se tornando cada vez mais graves. E
num banquete em homenagem a Fourier, no qual, ali s, Dostoievski
não tomou parte, o ¡mpeto subversivo do pequeno grupo alinge o
limite almejado por Antonelli. O chefe de policia Orlof alarma-se
com, o rei‡atorio. Aqueles jovens palradores, que pareciam inofensi-
vos, transformam-se, de um momento para outro, em perigosos rebel-
des aos olhos das autoridades. A lembran‡a do movimento "Decem-
brista" continuava bem viva no esp¡rito de todos; urgia abafar a
intentona com a maior rapidez pdssivel. Da¡ o resultado que o
leitor j conhece: a prisão de Petrachevski e dos companheiros,
inclusive Dostoievski e o seu ir~ Andr‚. O romancista estava
dormindo, quando a policia chegou, e ficou duplamente espantado,
porque não contava com aquilo. Que fizera para ser preso? Con-
versara, discutira entre os amigos. Mas o aparato da escolta indicava
a g , ravidade do caso. Bem depressa lhe fugiram as esperan‡as de
que as coisas se esclarecessem rapidamente, sem maiores misequen-
cia3. Era um conspirador perigoso e assim o tratava a polida,
encerrando-o na fortaleza Pedro e Paulo, onde deveria aguardar o
desenvolvimento do processo. As acusa‡ões contra ele estavam longe,
porem, de ser convimentes. Ter frequentado reuniões onde se ala-
cavam o absolutismo e a Igreja ortodoxa; ter assistido ... leitura de
uma -novela dissolvente, mesmo sob o regime de Nicolau, I, não
bastavam para justificar uma condena‡ão, se as autoridades não
e,stivessem, empenhadasno prop¢sito de condenar de qualquer forma.
DoistUevski ‚ submetido a interrogatorios capciosos, fazem tudo
Para arrancar-lhe respostas comprometedoras e o romancista resiste
de tal maneira que chega a 4i-itar os membros da comissão de i*-
quˆrito. Nega de p‚s firmes qualquer intuito subversivo, repele as #
Z
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Xil
id‚ias socialistas e protesta sua$ convic‡ões de patriota. ---Nãoimpor-
ta: ora preciso condenar. E, a condena‡ão -vem finalmente. Uma
segunda junta de inqu‚ritd, composta de membros oiv¡s e militares,
profere a mais rigorosa senten‡a: deporta‡ão e fuzilamento. O ve-
redictum sobe a nova instancia, ficando a pena para todos reduzida
a trabalhos for‡ados. O tzar limita a, senten‡a de -Dostoievski a
quatro anos, devendo o romancista, depois, ser transferido para o
ex‚rcito, como simples pra‡a de pr‚.
Mas a puni‡ão ainda ia revestir-se de um detalhe diab¢lico:
os criminosos deviam ser conduzidos para o posto de fue¡lamento,
e^ se tivessem sido condenados ... morte, viria o padre, diriam a
£ltima vontade, todo o aparato sinistro da praxe, e quando houves-
sem experimentado, em seu indescritivel horror, essa sensa‡ão terrivel,
ouviriam a leitura da v‚rdadeira senten‡a: o tzar, na sua infinita
misericordia, transformava a pena de morte em exilio na Si-beria.
A comedia foi desempenhada ...s maravilhas. Os - condenados não
duvidaram um s¢ momento de que iriam morrer. Dostoievski nunca
mais esquecer essa hora tremenda: de olhos vendados esperava, a
morte. Como podia ser aquilo? Sentia-se forte, jovem, ViSUe e
sete anos ardentes de vida, em perfeita mude, a vida dorrendo no
seu sangue e, de repente, a mortel Ah! como não soubera defen-
der-se melhor contra ela? como não cuidara de apegar-se ... existencia?
S¢ agora, naquele instante supremo, compreendia o que poderia
fazer na vida. O mundo seria seu! Que for‡a extraiordinaria e
nunca pressentida lhe palpitava nas arterias1 No entanfo. a morte,
al¡ a dois passos, implacavel, irremovivel, irremediavel. Ouvia car-
regarem os fuz¡s. A morte, coisa estranha, inconcebivel. Dois se-
gundos ainda, um apenas. E o tiro não vem... Em lugar disso
arrancam-lhe a venda dos olhos e o romancista, ao lado dos outros
companheiros, ouve a leitura (Ta verdadeira senten‡a. Depois da
sensa‡ão da morte, a sensa‡ão da vida ‚ qualquer coisa de demasiado
forte para a capacidade nervosa de um ser humano. Dostoievski
exulta de alegria - uma alegria hist‚rica e- quase tr gica. No fundo,
compreende que j ‚ outro homem, algo de si mesmo j morreu.
Agora, s¢ lhe resta o caminho: "a Casa dos Mortos". A escolta est
a postos. Na noite gelad..., de um luar nevado, essas tristes noites da
Bussia, os conjurados vão partir para a Siberia.
Quatro anos num presidio perdido nas solidões das estepes, entre
oriminosos vulgares, condenados de toda esvecie. o inferno.
mais do que o inferno - ‚ a morte. Urgia dar testemunho ao
mundo dessa dura, d s
sa terrivel experiencia. E da¡ as Rf,,corda‡ões
da Casa dos Mortos, publicadas em 1863, livro que inicia a segunda
fase da obro de Dostoievski, ou ales, a sua grande fase, aquela em #
que atinge as fronteiras da ge alidade. Logo depois de sair da
prisão, inspirando-sˆ __ tentimental pessoal, Dostoievski es-
creve Humilhados e Ofendidos. O romance foi depr‚ciado pelos
cr¡ficos e o proprio autor lhe reconheceu defeitos graves, embora
hoje a obra não nos pare‡a tão fraca assim e muita gente chegue mes-
mo a admir -la sem reserva. Mas talvez Dostoievski sentisse a impos-
sibilidade de produzir um grande romance, enq uanto não contasse ...
humanidade o que vivera e assistira na "Casados Mortos". Esteera
um livro que precisava ser escrito quanto antes, uma esPecie de
catar-se, de depura‡ão. Saira do c rcere rodeado de fantasmas e
tinha que libert -los de qualquer maneira. Mais tarde, ele definir
o romancista como um individuo que se livra dos seus fantasn~as.
Entretanto, como conseguir essa liberta‡ão? Escrever a obra, con-
tarado toda a verdade., não lhe seria dificil; mas devia public -la,
divulgar pelo mundo a verdade terrivel, e aqu¡ teria que esbarrar
nas restri‡ões rigorosas do censura tzarista. Naquela ‚poca a pro-
priq palavra Siberia era um voc bulo tab£ - diz Melchior de Vog‚.
Em"li,nguagem jur¡dica usava-se at‚ de um eufemismo pitoresco para
não se falar em Siberia: o reu era condenado ... deporta‡ão "em lu-
gar muito distante". Urgia, pois, vencer tamanha barreira por meio
de um artificio, de uma transposi‡ão engenhosa. Antes de tudo,
não dar ao livro o carater de memorias e não falar em condenados
pol¡ticos. Tratar-se-ia de um romance, onde as cenas, os episodios,
tremendamente ver¡dicos, podiam correr por conta da fantasia do
autor. Nenhuma acusa‡ão direta; tudo transposto para o terreno do
ficcionismo. Afim de tarnar a situa‡ão mais romanesca - segundo
a praxe de mistifica‡ões literarias muito em voga na ‚poca -
Dostoievski informaria ao p£blico de que estava simplesmente di~
tWgando o manuscrito de um tal Alexandr Petrovitch Goriantchikov,
`tex-nobre, proprietario na Russia, condenado a trabalhos for‡ados
da segundo categoria por haver assassinado a mulher". Crime
passional/ Excelente tipo de criminoso para o caso. Goriantchikov
contaria todos os horrores, como personagem de romance, tendo,
apesar de tudo, o cuidado de observar que aludia a uma ‚poca bem
distante. Atualmente j não devia dar-se o mesmo. A adminis-
tra‡ão decerto fora substituida. Relatava, portanto, costumes de
outros tempos - esclarecia, com toda a cautela - coisas h . muito
abolidas. Depois, a obra não evidenciaria nenhum intuito revolu-
~rio. O autor mostrava a atrocidade do castigo, mas não o
JWgava, injusto. Se para uns era excessiva a disciplina, havia
muita gente m que a merecia. Enfim, essa pintura do c rcere em
cores t¡lo vivas devia incutir no esp¡rito do povo maior horror ao
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crime. Gra‡as a semelhante subterfugio, o livro p"de aparecer. Um
funcionario da Censura - informa-nos Troyat - ainda quis objetar,
impondo modifica‡ões no texto. A Dire‡ão Central contentou-se
com a omissão de algumas expressões obcenas. A obra apareceu,
alcan‡ando, de pronto, um ˆxito formidavel. Toda a Bussia vibrou
de emo‡ão ante aquelas p gi nas dantescas, pois o j~aralelo com o
inferno de Da-nti se tornou Nevitavel.
A caminho da Siberia, numa das etapas da jornada, Dostoievski
o seus companheiros, j . de cabe‡a raspada, recebem a visita das
'esposas de alguns decembristas, mulheresWnobres, que, abdicando o
lu--o e, a comodidade, haviam acompanhado os maridos ao degredo.
procuram elas confortar aqueles novos condenados pol¡ticos, exor-
tando-os a suportar, com resigna‡ão ‡ristã, os sofrimentos que os
esperavam. E dão a cada um deles um Evangelho, o £nico livro,
ali s cuja leitura era permitida na, prisão. O cristianismo de Dos-
toievski j se havia manifestado antes do degredo, mas s¢`no c rcere,
na medita‡ão constante dos vers¡culos do 7_7,vangelho, esse sentimento
o absorve, por completo.. dando-lhe uma visão diferento dos homens
o do mundo. Andr‚ Gide lembra o efeito radicalmente oposto que
produziu o mesmo livro no esp¡rito de Nietzsche. O autor de Hu-
mano, demasiado humano rebela-se contra Cristo e, para vingar-se
Dele escreve o Assim falava Ziratustra, no mesmo tom evang‚lico e
messiƒnico. Dostoievski con forma-se admiravelmente aos ensinamen-
tos de Cristo, descobrindo neles o verdadeiro segredo da Vido. A
dor, as humilha‡ões, a ii·quidade do castigo, a prisão - tudo se
reveste de um novo sentido aos olhos do condenado. Como rebelar-
se? Como culpar os hoinens? Como desesperar-se? Pois se o cas-
tigo lhe parece agora fndispensa-vel, util, precioso. Que seria da
sua existencia, sem essa terrivel prova‡ão? A vaidade, o orgulho,
a euforia de, uma existencia tranquila haviam de embotar-lhe a
alma. E bem mesquinha lhe pareceria esta, sem a condena‡ão da
dor. J quando fora ele preso.. embora não prevendo o arremate
do processo, dissera, em carta ao irmão que, afinal de contas, era
melhor assim. os dias lhe corriam mon¢tonos, preferia o choque, o
traumat¡smo. Sua tendencia cristã ansiava pelo estado ag"nico, que
a condena‡ão levaria ao paroxis,~. Depois, aquela sev‡a‡õo irolvi-
davel e terrificante da morte a, dois passos. Passara o perigo. A
-vida *continuaria, mas o fermento da morte fi~ia para sempre na
alma de quem j a defrontara, uma vez. '0 Evangelho trouxe a
solu‡ão para esse conflito. Na morte encontra-se o caminho da
ressurrei‡ão, o proprio segreclo da vida. Se o grão morre - diz a
G
- XV -
par bola de Cristo - ent nasce o trigo. Dostoievski confessa
que, no c rcere, *sentia ...s ãfzes o cora‡ão bater com for‡a ante o #
pressentimento da liberdi te murmurava consigo onesmo: "A li-
berdado'- a ressurrei‡ão dos mortos]" Entretanto, bem depressa
se acalmava. Era preciso aprender a amar o sofrimento, a compra-
zer-se na dor - aprender a "morrer". Sem isso, jamais poderia
alcan‡ar a gra‡a da ressurrei‡ão. No Evangelho de. São João, Cristo
anuncia a Nicodemus: " - Em verdade vos digo que aquele que
não nascer novamente, não ver a meu Pai". Dostoievski aceita a
tdmorte" para nwcer novamente. Lˆ a Biblia e procura fazer com
que os companheiras a le~am..
Mas trata-se de uma injusti‡a - qirão os que apreciam o dra-
ma do romancista, de fora -, de um castigo iniquo; Dostoievski
não chegou a conspirar, não tinha nenhum plano de revolu‡ão. Co-
ma deixar de rebelar-se contra essa senten‡a absurdo? Ante tais
palavras o romancista responder , da mesma maneira por que res-
pondeu, mais tarde, a um amigo: "Não; a senten‡a foi justa e o
povo nos t" condenado; eu o sent¡, l na prisão. Depois - quem
sabe? - talvez tudo isso fosse designio do Alt¡ssimo, para que eu
aprendesse o essencial, sem o que não podemos viver, se-não nos de-
vorarmos uns aos outros.- e para que eu levasse o essencial aos meus
semelhantes, tornando-os melhores, ainda que em, pequeno n£mero.
S¢ isto justificaria minha ida ... prisão."
Como ge vˆ, o Evangelho baniu do esp¡rito de Dostoievski a
*id‚ia de injusti‡a. O verdadeiro cristão nunca julgar iv justo nem
protestar contra o sofrimento, que lhe vem trazer a purifica‡ão ne-
cessaria: o essencial. No conceito cristão, o homem veio ... terra para
explar~ os seus pecados - são "os degredados filhos de Eva, neste
vale de l grimas" - e cumprir tanto melhor o seu destino, quanto
mais completa for a expia‡ão. Interessante, porem, ser notar como
Dostoievski estabelece -no plano social e pol¡tico uma correspondencia
direta para a necessidade do castigo. Pelos designios cio Alt¡ssimo,
afim de encontrar o essencial, teria ido para o c rcere; mas est
certo, ao mesmo tempo, de que o povo o condenaria. Reconhece-se
culpado perante Deus o perante, o povo. Pois se, no c rcere, encon-
trou a verdade cristã, encontrou igualmente o povo russo no que
este tem de essencial, na sua predestina‡ão m¡stica. Em carto a
Maikov, em 1855, ele diz: "A infelicidade me ensinou muita coisa;
a experiencia teve grande influencia sobre mim e gra‡as a ela me
‚
Mio cada vez mais rUSSO. a confissão da sua eslavofUia. Como
se sabe, Dostoievski foi uma c?" maiores figuras da 'mentalidade
estav¢fila, que considerava os russos completamente diferentes dos
europeus, com fim destino Proprio, alheio aos imperativos da cultura
ocidental. E antevia um glorioso futuro para a Russia, na medida #
I
- XV1 -
em que esta se preservasse de influxos estranhos. "Possui-mos uma
superioridade sobre os senhores - dizia ao Visconde de Melchior
de Vog‚ _: ‚ gue os outros povos não nos compreendem, enquanto
n¢s os compreendemos a todos". Na prisão, em contato direto com
a a¡ma popular, Dostoievski sente o quanto o russo se distancia dos
ocidentais o as gra‡as que lhe estão reservadas se ele se mantiver fiel
a si mesmo. Pois bem, aquelas id‚ias de conspira‡ão, de rebeldia,
bafejada por doutrinas europ‚ias, sem consultar as verdadeiras as-
pira‡ões da Santa Russia, lhe parecem criminosas e bem dignas de
c¡astigo. Pecara contra Deus e contra a Buss¡a. O povo o conde-
n¡u-ia - estava.certo disso. O romancista identif a a natureza das
dum culpas, pou sua conotenci . a cristã se conf und om o sentimento
eslav¢filo. Por esse motivo, ainda, em lugar de ~Oar odio ao tzar
,Yicolau I, que o fizera condenar inocente, chega a louv -lo mais
tarde, com entusiasmo. Não recebia de Deus o tzar o poder absoluto
para governar os russos?. E o povo não se habituara a cham -lo
de "Paizinho"?
1 , Aqu¡ nos tenta uma, interpreta‡ão freudiana - aventura em que
%U nos abalan‡amos, afiInde evitarmos mais um abuso de psican lise
Uteraria. Limitamo-nos a alguns pontos de ref erencia. Para) Freud,
o crime ‚ muitas vezes a resultante de um sentimento de culpa
inconciente: o individuo, sente a necessi...ade de puni‡ão e o ¡mico
meio de obtˆ-la - quando não consegue sublimar o complexo ou
dar-lhe um outro derivativo - ‚ violar as leis. Em Dostoievski, a
especie de alivio que ele experimenta, logo ao ver-se encerrado no
calabou‡o, e o reconhecimento de uma falta, que na realidade não
cometeu, podem ser atribuidos igualmente ...quela no‡ão inconciente
de culpa, cuja origem seria encontrada.. talvez na infancia, nos
traumas morais do romancista.' Os conflitos cristão e eslav¢filo
t~se-iam, então, as demonstra‡ões de, um drama inconciente, que
s¢ a psican lise lograria desvendar. LŠmbremos a particularidade
do tzar representar para o povo russo qualquer coisa de semelhante
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