Casa dos mortos



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,o invalido, estirando as mangas do capote.

Preparavamo-nos para a chamada. O sol nascia. Os

dãenfos se aglomeravam na cozinha. Ja pronfos para o

+rabalho,.com ocapofe, os gorros de duas cores, esperavam

,junto ao pão que um dos cozinheiros dividia. Esses cozi-

nheiros, eleitos enfre os presos a razão de dois por cozinha,

eram encarregados da guarda da Unica faca que servia para

cortar o pão e a carne. Alguns for‡ados tinham diarife de

si uma caneca de kvass (5). Esfarelavam o p3o ali dentro,

e depressa o enguliam. O barulho era insupor+avel, mas

nos cantos a conversa era discreta, sossegada.

- Paizinho Antoni+ch, pão e sal, saude! exclamou um

preso jovem cumprimentando um for‡ado +ris+onho e des-

denfado.

- Bom dia, se não estas de +ro‡a! respondeu o velhote

sem erguer os olhos, continuando a mastigar o pão com as

gerigivas.

- Imagina, Anfoni+ch, e eu que pensava que tu tinhas

morrido! Deveras!

- Ainda não. Vai na frente, me mostrar o caminho!

Sen+ei-me perto deles. A minha direita conversavam

dois outros presos, sossegados, procurando ambos manter um

ar de dignidacl_e. C -

- Eu te garanto que não me hão de roubar, dizia um.

 mais facil ser eu quem roube aos outros.

- Pois +ambem e bom que ninguem meta as mãos no

que e meu, senão a coisa engrossa!

(4) Deturpa‡ão de "inv lido". (N. de R. Q)

(5) CebiOR fermentada, feita de pão preto e malte. (N. de H. M.)

4

- 'lo


1 #

34 DOSTOIEVSKI

- Então e assim? Tu es diferente de nos? Sossega *

Não passamos de gales ... e nada mais. Ela e que te ha

de embrulhar. sem nem dizer muito obrigada ... Da mim

fambem, meu filho, ela surripiou quatro copeques. Apare-

ceu aqu¡ outro dia. Mas onde haveria cle meter-me com

ela? Pensei num adjutorio de Fedka, o carrasco, ele ainda

tinha a mesma casa no suburbio, - a casa que comprou de

Salomonka. aquele judeu piolhento que se enforcou ...

- Eu sei. Era bo+equineiro aqui ha frˆs anos aftas;

n6s o chamavamos "Grichka-bodega-escura". Eu sei.

- Não, não sabes. O "bode ga-,escu ra " era outro.

- Que outro! Estas louco, rapaz. Posso +e apresen-

+ar fantos testemunhos quanto queiras.

- Podes +razer! De onde e que vens? Sera que sabes

quem sou eu?

- Quem, fu? Não e para me ciabar, mas ia +e dei

umas boas sovas. Ora, quem es +u!

- J me deste sovas, fu? Ainda esta para nascer

aquele que me ha de dar uma sova, estas ouvindo? E aque-

le que me sovou ia esta enterrado!

- Ora, ma peste te mate!

- E.a lepra que +e roa!

- Vai atras dum turco que +e meta o sabre!

E choviam os insultos.

- Basta, basfa! que berreiro e esse! gritavam ao neclor.

Vocˆs não sabiam viver soltos, e agora estão satisfeitos, por-

que aqui +em pão fresco! Basta!

Separaram-nos rapidamente. Os insultos, os desafo-

ros, toleram-se de bom grado, porque servem de distra‡ão

para o auditorio. Quanto as rixas, so são autorizadas em

casos excepcionais. As vias de fato podem ser denuri-cia-

das ao maior, que vem pessoalmente fazer um inqueri+o: o

inqu‚rito significa aborrecimentos para todos, e deve por-

tanto ser evitado. Alias, quase sempre os adversarios fro-

cem desaforos por distra‡ão, por amor ... arte. Frequante-

mente o sangue lhes sobe a cabe‡a, ficam'furiosos, e a gente

pense que se v-ao agarrar, mas não: assim que a raiva de

O

I



RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

35

um e outro atinge certo diapasão, separam-se. Tudo isso,



a principio, me provocou uma extraordinaria, surpresa. Foi #

de proposito que citei este exemplo de palestra habitual,

enfre os for‡ados. Não compreendia que alguem pudesse

trocar insultos por prazer, encontrar nesse mister um encan-

to, um deleite, um divertimento. Não se deve esquecer

tambem. a parte que cabe a vaidade: o colecionador de

pragas sobe na estima geral-, um pouco mais, e e aplaudido

como ator.

a

Logo ' primeira +arde notei que me fitavam de vi‚s,



apanhei mesmo alguns olhares sinisfros. Por outro lado, des-

confiando que eu trazia dinheiro, alguns defentos me ron-

davam. Ofereceram-me logo os seus servi‡os, ensinaram-me

a carregar os ferros novos, ob+iveram-me - mediante di-

nheiro, e claro - um bau com cadeado, para arrumar nele

o meu enxoval de presidiario e a pouca roupa branca que

trouxera. Mas logo no dia seguinte roubaram-me tudo e

gastaram o produto em bebida.

Um dos meus* assaltantes +ornou-se mais +arde precio-

sissimo para mim, erribora continuasse sempre a furtar o que

era meu, sempre que a ocasião lhe parecia adequada. ~Co-

metia o roubo sem o menor acanhamento, como por obri-

ga‡ão; e eu não lhe podia guardar rancor.

Entre outras cousas, aqueles colegas servi‡ais me infor-

maram de que a gente poderia ter o seu cha: seria pois

ato ufil, para mim, a compra de uma chaleira. E, esperan-

do a compra, poderiam me alugar uma. Recomendaram-me

tambem um cozinheiro que mediante trinta copeques por

mes me prepararia as refei‡ões, se eu quisesse comer 'P'

pa rte ... ~Orrio era de esperar, pediram-me dinheiro em-

pres+a_ _~ogo no primeiro dia, cada um deles renovou os

empresfimos duas e +rˆs vezes.

Os ex-fidalgos são em geral muito mal vistos no pre-

sidio. Embora +enham perdido os direitos civis e sejam ali

iguais a todos os outros, os for‡ados se recusam a encara-los

como companheiros. Ali s, nSo decorre isso de nenkurn pre- #

DOSTOIEVSKI

conceito, mas de uma opinião inafa. Aos seus olhos confi-

nuamos sempre a ser fidalgos, o que não os impede de gozar

a nossa queda: "Agora acabou! Ainda ontem Piofr an-

dava brilhando em Moscou! agora. Piotr force a corda que

vai usar no pesco‡o!" e outras cousas classe jaez.

Gozavam os nossos sofrimentos; entretanto, faziamos

tudo para os esconder deles. Era principalmente nos pri-

meiros tempos que lhes atra¡amos as zombarias, porque, como

a nossa for‡a nSo era igual a deles, não os pod¡amos equiva-

ler no frabalho.  dific¡limo obter a confian‡a do povo, so-

brefudo daquela qualidade de gente do povo, e lhes conquis-

far a afei‡ão.

Tinhamos no presidio varios fidalgos. Para come‡ar,

cinco polacos, dos quais falarei mais tarde. Os de+entos os

detestavam ainda mais que aos nobres russos. Os polacos

(refiro-m,e aos condenados polificos) tratavam os colegas de

prisão com uma delicadeza meticulosa, exagerada, altiva;

não podiam dissimular a repugnancia que a sua convivencia

lhes inspirava.

Os for‡ados compreendiam isso muito bem e lhes pa-

gavam na mesma moeda.

Precisei passar quase dois anos no presidio para con-

seguir a boa vonfa& de alguns presos. Contudo, no fim

da pena, a maioria deles gostava de mim e me considenQva

um "bom sujeito".

Excluindo-se a minha pessoa, a fidalguia russa tinha no

presidio quatro representantes. Em primeiro lugar, um su-

jeifo crapuloso, medonhamenfe corrompido, espião e de-

lafor de oficio, de quem eu ia ouvira falar antes da minha

chegada e com o qual cortei rela‡8es logo no primeiro dia.

O segundo _era o parricida de quem ia falei. O ferceirb

chamava-se Akim Akimi+ch. Raramente tenho visto um ori-

ginal daqueles: ficara para sempre gravado na minha lem-

bran‡a. Era um homenzarrSo ossudo, de espirito fraco, ig-

norancia crassa, mefoclico e preso a regra como um alemão.

Os presos o ridicularizavam, mas alguns evitavam irrita-lo,

temendo-lhe o genio briquen+o. Desde o inicio nivelara-

kECORDAC ES DA CASA DOS MORTOS

se com os outros, rixando-se, agarrando-se ate com eles.

Era de uma honestidade fp-nomenal, e, assim que constatava

uma injusti‡a, voava a corrigi-ia, e muitas vezes se imiscuia

ern negocios que absolutamente não eram da sua confa. Sua

ingenuidade era prodigiosa; por exemplo: quando brigava

com os defen+os, censurava-lhes as ladroagens e os conci-

fava ao arrependimento. Fora alferes no exercito do C‚iu-

caso. Fizemos amizade logo no primeiro dia e ele imedia- #

famente me confou a sua his+oria. Come‡ara a vida Ja

mesmo no Caucaso, como sulo-oficial volun+ario num regi-

men+o de linha; esperara durante muito tempo a promo‡ão a

oficial, mas afinal mandaram-no como comandante para um

velho forfim. Um principe +ribufario dos arredores incen-

diou esse for+im, e fenfou um ataque noturno, sem nenhum

ˆxito ali s. Akim AkiMi+ch, por as+ucia, fingiu que não

sabia quem fora o autor do ataque. O caso foi a+ribuido

aos dissidentes; um mˆs depois Akim Akimi+ch convidou o

principe para uma visifa de cordialidade. E o principe

compareceu, sem des~onfiar de nada. Akim Akimi+ch formou

sua guarni‡ão em linha de batalha e confundiu publicamente

o visitante, lan‡ando-lhe em rosto a sua felonia. Explicou-

lhe miudamente a conduta que doravan+e deveria ter como

1 a


pr ncipe fribufario, e depois, ' guisa de conclusão. . . fu-

zilou-o. E no fim de tudo, mandou um relaforio circunstan-

ci;" o aos seus chefes. Foi a conselho de guerra; condena-

do a morte, teve a pena comutada para trabalhos for‡ados

de segunda categoria, e foi mandado passar doze anos na

Siberia ... Reconhecia que a sua conduta fora ilegal, ga-

ranflu-me ate que sabia disso antes de mandar fuzilar o prin-

cipe; nSo ignorava que o principe deveria ser julgado se-

gundo a praxe; contudo, não conseguia compreender em

que consistia o seu crime.

- Mas veja, o principe tinha incendiado o meu forfim!

Na sua opinião, eu ainda deveria dizer muito obrigado, heiri?

respondia ele a +JJas as minhas obje‡;-5es.

Os for‡ados, por mais que zombassem de Akim Aki-

mi+ch e o chamassem de louco, tinham em alta confa o seu #

DOSTOIEVSKI

to de ordem e as suas prendas. Akim Akimi+ch sabia

os oficios: era marceneiro, sapateiro, pintor dou-

serralheiro; e todas aquelas artes aprendera-as no

io. Auto-clidata nato, bas+ava-lhe ver um objeto para

ifar. Confeccionava fambem uma enorme variedade

ixas, cestos, lanternas, brinquedos, e os vendia na cida-

Isso lhe rendia algum dinheiro que ale empregava ime-

mente na aquisi‡ão de roupa branca ou de um traves-

mais macio. Conseguira ate mesmo fabricar para si

olchão dobradi‡o. Como ocupava o mesmo alojamen-

e eu, ajudou-me muito durante os primeiros meses da

deten‡ão.

Antes de sairem da fortaleza para o local do trabalho,

esos formavam dois a dois diante do corpo da guarda.

infe, e a cauda da forma‡ão colocavam-se os soldados

scolta, de armas embaladas. Aparecia então um ofi-

e engenharia, condutor dos trabalhos, e alguns sapade-

esignados como moni+ores. O condutor contava os

s, depois os mandava em pelotões para os locais de-

dos. 1


Juntamente com outros, destinaram-me a oficina de en-

aria, constru‡ão baixa, toda de pedra, situada no meio

grande patio atulhado por uma infinidade de`ma+eriais.

-w ali uma forja, tendas de marceneiro, de serralheiro,

s+rador, e+c_ . , 'Akim Akimi+ch trabalhava no enverni-

into; esquentava o oleo, moia as tintas, e pintava mesas

ros moveis de cor de nogueira.

Enquanto esperava as minhas novas grilhe+as, comuniquei-

s minhas recentes impress6es.

- Sim, e verdade, confirmou: eles não gostam dos

es, principalmente quando s3o condenados -pol¡ticos: so

l+a come-los vivos.  facil de compreender. Para co-

r, vocˆs e eles nada +ˆrn de comum. Em segundo

prifes de virem para ca eram todos pobres servos ou

es soldados. Julgue por si se podem gostar de nobres.

- sou eu que lhe digo, - a vida e dura, mas nas

anhias correcionais da Russia europeia e bem pior. Os

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

39

e vˆm de Ia para c acham que passaram do inferno para



c‚u. E não e que o trabalho seja mais penoso. Parece

que Ia a primeira categoria não tem uma cline‡ão estrita-

n+e militar: tratam os presos de modo muito diverso daqu¡;

*deportados podem at‚ ter a sua casinha; não vi com meus

os, porem foi o que me disseram. Não raspam a cabe‡a, #

o obrigam a uniforme, todavia, acho ate bom que os

esos tenham a cabe‡a raspada e usem uniforme: a ordem

melhor, e e mais agradavel a vista. Mas e isso justa-

men+e o que desagrada a esses camaradas. E. +ambem,

,que bandos de vagabundos! Circassianos, raskoiniki, (6)

,bons cristãos ortodoxos que deixaram na aldeia mulher e

ilhos, judeus, boemios, a Deus sabe quem mais, obrigados

os a viver bem uns com os outros, a comer na mesma ga-

a, a 'dormir na mesma tarimba! E que liberdade! - O

1. comer da gente, e preciso enguli-lo ...s escondidas, cada

vin+enn e guardado no fundo das botas; não precisa dizer

,mais: presidio e presidio ... E quer a gente queira quer não,

acaba meio louco.

Aquilo eu ia sabia. Era principalmente a respeito do

nosso maior que eu queria interrogar Mim Akimi+ch. Ele

não me dissimulou nada e a impress3o que me ficou não foi

absolutamente agradavel.

Tive que passar dois anos sob as ordens desse individuo,

e tudo que no primeiro dia me disse Akim Akimi+ch se re-

velou exato, - com a diferen‡a apenas de que a sensa‡So

direta sempre ultrapassa a impressão provocada por uma

simples narrativa. Era um homem apavorante, sobretudo

gra‡as a autoridade absoluta que exercia sobre duzentas

pessoas: porque ele, em si, não era senão desordenado e

mau. Considerava os de+en+os como seus inimigos nafu-

rais: era esse o seu primeiro e principal engano.

Sua pouca capacidade, suas proprias qualidades se

desviavam e tomavam uma dire‡ão ma. Violento, impulsi-

vo, cruel, precipifava-se como8~,,ima bomba na fortaleza, ate

(6) Welhos crentes". O "Raskol" foi um cisma provocado pelo patriarca Nikon

que em 1666 corrigiu os livros sagrados. (N. de R. Q) #

46

bos'ro I E vs I( I



Mesmo alta noite. e se observava algum preso dor

lado esquerdo punia-o no dia seguinteMindo do

gundo as minhas ordens, deve

pela manhã. /'Se-

Era odiado e temido com -se dormir do lado direito111

melha€a e enfarruscada O pe‡onha. Tinha um

Todos sab* a cara ver

ioguefe nas mãos do se * iam que O maior era um

neste mundo era O cac u ordenan‡a, Fedka. Seu unico

queceu quando o anima horrinho Tresorka (7) e

izinho caiu dmor

fam, como ‚ quase enlou-

depois se se tratasse dum doente. Solu‡a va ~ co

de lhe haver dado -filho. , Expulsou um

uma surra, segundo o s r;

eu

n



vete

- Mas sabendo, Por infermedio de Fedka

pres;d;o um curandeiro que sempre se sa- , que havia

ridou cham6-10 inconfinenfi. ia muito bem,

- Salva-ol grifava ele.

bro de dinheiro! Cura

O homem um lf o Meu Iresorka e eu te

'fo bom veferinarim u~ [que s;beriano 'asfufo, inteligente. . e

visita , O, contou ma r

a casa do m - is fa de aos com

ajor, - ali s Panheiros

quando o caso estava 16 o fez muito mais

u- Olhei Para Tresorka, quase esquecido.

ma almofada clue estava no sof ~ em cima

muito alva, vi irpediafamenfe que sofr-

inflama‡ão e seria preciso sangi-6_lo, para o salvar

sei tambem: ta

lei: E se eu fracasso e o cão rebenta?';

"Excelencia, mandou-me chamar muito tarde.

m Ou anteontem eu ainda

Pem mais jeif¢.tv o Poderia salvar; o

assim, f;'Ou-se Tresorka.

nforam-me fambem, c

quisera m Om muitos Pormenores que um #

atar o maior.

)-se que - O pre-

J h Muitos anos' n

sse homem dava mostras de uma submissão exemplar.

r debil Iamais dir;g~a a Palavra a i

menfal. ninguem, Passava

S

Ma

Pen



fa

8

o



abia ler e escrever, e levara o ano

a ler a B'b"a, ia e noite.

rmia di

M, erguia-se No meio da noite, quando



Stufa, abria acendia uma vela

O 1;vro.'e lia af- inst lava-se

e O amanhece' a

inuti,0 russo da Pala~ra francesa Um dia de-

"Tr‚sor" (tesoro).

(N. de R. Q.)

P rem agora

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

Ir r

41

clarou ao sub-oficial de guarda que se recusava a ir para o



trabalho. Avisaram o maior, que se enfureceu e correu ao

alojamento. O preso lhe atirou um tijolo, que ia tinha con-

sigo, com essa inten‡ão. Mas errou. Agarraram-no, jul-

garam-no, a‡oifaram-no. Passou-se tudo com grande rapi-

dez. Tres dias depois o desgra‡ado falecia no hosp~ital.

Antes de morrer, declarou que não queria mal a ninguem,

que tinha apenas procurado o marfirio.. Não pertencia en-

tretanfo a nenhuma seita dissidente. E nunca mais sua lem-

bran‡a foi evodada sem certa como‡ao respeitosa.

Enquanto me punham as novas grilhe+as as vendedoras

de kalafch entraram em fila, na oficina. Havia entre elas

ate criancinhas; enquanto eram pequenas vinham mercar os

kalafchi que as mães faziam. Depois de crescidas, continua-

vam a vir, mas sem mercadoria. Entre as vendedoras, havia

+ambem mulheres casadas. O kalafã valia dois copeques e #

quase todos os presos compravam deles.

Reparei num dos for‡ados, marceneiro de profissSo, ia

grisalho, mas de cara rubicunda, que pilheriava com as ven-

dedoras. Antes da entrada delas, amarrara ao pesco‡o um

len‡o encarnado. Uma mulherona gorda, com a cara toda

picada de bexigas, foi sentar no seu banco; e se travou en-

fre, eles a seguinte conve'rsa:

- Por que vocˆ não foi on+em? perguntou o homem

.com um sorriso fatuo.

- Fui sim; e levei o bolo! retrucou ela, despachada.

- Precisaram da gente; se não fo~se isso, estariamos

todos 16! Mas anteontem, vocˆs correram todas ...

- Quem foi?

- Quem? A Mariachka, a Kavrochka, a Tchekunda,

a Dyugrocheva¡a ... (8)

- Escute, perguntei a Akim Akimi+ich, sera pos,~ivel

que. . .9

Acontece, sim, respondeu-me Akim baixando modes-

famenfe os olhos, porque era pudicissimo.

1 (8) Tchekunda: "E' barato" - Nugrochevaia: "Dois groches~'. (N. de R. Q)

O0" #


42 DOSTOIEVSKI

Aquilo acontecia realmente, mas de raro em ra~o e

com. imensas dificuldades. De modo geral, havia mais apre-

ciadoros da bebida que dessa outra diversão, -apesar da

dureza daquela vida. Para conseguir algum dos presos apro-

ximar-se de uma mulher, precisava escolher o momento, o

local, marcar o encontro, conseguir ficar sO, ~ cousa que

era particularmente difici) - subornar os vigilantes, - cousa

mais dificil ainda, - em suma, gastar um dinheiro realmente

insentafo. Apesar disso, aconteceu-me mais tarde teste-

munhar cenas de amor. Lembro-me de certa vez, no verão,

em que nos esfavamos num galpão as margens do Irfych,

queimando um forno de tijolos. Os vigilantes- eram bons

rppazes. Logo mais apareceram duas "souffieuses" como as

chamavam os de+enfo"s.

- Por que vieram tão tarde? Estavam com os Zver-

kovi? pergun+ou-lhes o preso. Ja as esperava ha muito tempo.

-~- Eu? Nunca. Mais demora uma gralha numa ar-

vore do que eu com eles, replicou jovialmente a rapariga.

Era a Tchekunda, - a virago mais horrenda deste

mundo. Trazia consigo a sua amiga Dvugrochevaia. ~_ssa,

então, desafiava qualquer pintura.

- J faz tempo que a gente não se vˆ, continuou o

galã', dirigindo-se a Dvugrochevaia. Vocˆ anda magrinha.

-  isso. Dantes eu era gordo+a, hoje parece que

enguli uma agulha!

- ~E anda sempre correndo atras dos,soldados?

- Qual! Isso e lingua comprida de alguem! mas a

verdade e que ainda que a gente fique sem um fio de seu,

não h6 ‡orrio um soldado!

- Deixem de pensar em soldados, e venham com a

genfe... Nos pelo menos temos dinheiro. . .

Para completar o quadro, e preciso imaginar o galã

com a cabe‡a raspada, a libr" de duas cores, a grilhefa aos

p¢s, sentinela a vista.

Despedi-ma de Akim Ak'¡m¡fch, e sabendo que poderia

. voltar, pedi um vigilante a fui embvra. Era a hore do re-

IPA #


I

If

1 ~ (



RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

45

gresso. Os farefeiros 550 os que vão em primeiro lugar.



£nica maneira de tirar servi‡o dum for‡ado e lhe impor um

farefa. Mesmo quando ‚ pesada demais, eles a termina

duas vezes mais depressa do que se labutasse sem defen‡

a+6 ao soar do tambor. Finda a tarefa, o preso volta par

a caserna, e ninguem mais cuida em lha por empecilhos.

Não se jantava em grupo: quem chegava primeiro to

mava lugar a vontade. Alias, a cozinha não comportaria +11

dos ao mesmo tempo. Provei a sopa mas, por falta de

habito, nao a pude engolir e esperei o cha. Senfamo-nos ...

ponta da mesa. Eu tinha comigo um companheiro - ex-

fidalgo tambem (9).

Os defenfos entravam o saiam. Havia muito lugar,

faltando ƒnda tantos. Cinco presos formavam um grupo

sep rado. O cozinheiro lhes serviu duas tigelas de sopa e

pos na mesa um frigideira cheia de peixe frito. Decerfo

estavam se banqueteando, em comemora‡ão de qualquer

aniversario. Olhavam-nos de vies. Um dos polacos chegou

e veio se sentar ao nosso lado.

- Eu não estava Ia, mas sei de tudo! exclamou um

preso alto, penetrando na cozinha a olhando em c¡rculo

todos os homens presentes.

Cinquenfa anos mais ou menos, magro, MUSCUloso, tinha

uma cara ao mesmo tempo astuta e jovial. O labio inferior,

pesado, pendente, dava-lhe ao rosto uma expressão muito

comica.

- Saude, bom proveito! Saude aos mo‡os de Kursk!



continuou ele, senfando-se perto dos convivas. Pão e sal!

Recebam bem o h6spede!

- Não somos de Kursk, rapaz.

- Então são de Tambov?

- Nerri de Tambov- Não arranjas nada aqui, mano

Se queres pedir esmola, corre afras dum rica‡o.

(9) S. F. Durov, condenado ao mesmo tempo que Dostoievski, e com quem o ro-

as "Recorda‡ões" e -s¢ faz duas ou trˆs alusões ... sua Pessoa

Z-ndceistarrandousbriugado durante toda a sua estada no presidio. Não o nomeia nunca

(N. de H. M.) #

#

46 DOSTOIEVSKI (r



- Hoje*, mano velho, na minha barriga, Ivan Taskun e

Maria lkofichna andam ...s furras!(1 O) Onde acharei esse rica‡o!

- L esta Gazine, que ‚ cheio dos cobres! Vai a+ras

1

dele!



- Gazine? Esta de farra hoje, maninho, est , bˆbedo

como um porco - bebeu o sortimento todo!


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