,o invalido, estirando as mangas do capote.
Preparavamo-nos para a chamada. O sol nascia. Os
dãenfos se aglomeravam na cozinha. Ja pronfos para o
+rabalho,.com ocapofe, os gorros de duas cores, esperavam
,junto ao pão que um dos cozinheiros dividia. Esses cozi-
nheiros, eleitos enfre os presos a razão de dois por cozinha,
eram encarregados da guarda da Unica faca que servia para
cortar o pão e a carne. Alguns for‡ados tinham diarife de
si uma caneca de kvass (5). Esfarelavam o p3o ali dentro,
e depressa o enguliam. O barulho era insupor+avel, mas
nos cantos a conversa era discreta, sossegada.
- Paizinho Antoni+ch, pão e sal, saude! exclamou um
preso jovem cumprimentando um for‡ado +ris+onho e des-
denfado.
- Bom dia, se não estas de +ro‡a! respondeu o velhote
sem erguer os olhos, continuando a mastigar o pão com as
gerigivas.
- Imagina, Anfoni+ch, e eu que pensava que tu tinhas
morrido! Deveras!
- Ainda não. Vai na frente, me mostrar o caminho!
Sen+ei-me perto deles. A minha direita conversavam
dois outros presos, sossegados, procurando ambos manter um
ar de dignidacl_e. C -
- Eu te garanto que não me hão de roubar, dizia um.
mais facil ser eu quem roube aos outros.
- Pois +ambem e bom que ninguem meta as mãos no
que e meu, senão a coisa engrossa!
(4) Deturpa‡ão de "inv lido". (N. de R. Q)
(5) CebiOR fermentada, feita de pão preto e malte. (N. de H. M.)
4
- 'lo
1 #
34 DOSTOIEVSKI
- Então e assim? Tu es diferente de nos? Sossega *
Não passamos de gales ... e nada mais. Ela e que te ha
de embrulhar. sem nem dizer muito obrigada ... Da mim
fambem, meu filho, ela surripiou quatro copeques. Apare-
ceu aqu¡ outro dia. Mas onde haveria cle meter-me com
ela? Pensei num adjutorio de Fedka, o carrasco, ele ainda
tinha a mesma casa no suburbio, - a casa que comprou de
Salomonka. aquele judeu piolhento que se enforcou ...
- Eu sei. Era bo+equineiro aqui ha frˆs anos aftas;
n6s o chamavamos "Grichka-bodega-escura". Eu sei.
- Não, não sabes. O "bode ga-,escu ra " era outro.
- Que outro! Estas louco, rapaz. Posso +e apresen-
+ar fantos testemunhos quanto queiras.
- Podes +razer! De onde e que vens? Sera que sabes
quem sou eu?
- Quem, fu? Não e para me ciabar, mas ia +e dei
umas boas sovas. Ora, quem es +u!
- J me deste sovas, fu? Ainda esta para nascer
aquele que me ha de dar uma sova, estas ouvindo? E aque-
le que me sovou ia esta enterrado!
- Ora, ma peste te mate!
- E.a lepra que +e roa!
- Vai atras dum turco que +e meta o sabre!
E choviam os insultos.
- Basta, basfa! que berreiro e esse! gritavam ao neclor.
Vocˆs não sabiam viver soltos, e agora estão satisfeitos, por-
que aqui +em pão fresco! Basta!
Separaram-nos rapidamente. Os insultos, os desafo-
ros, toleram-se de bom grado, porque servem de distra‡ão
para o auditorio. Quanto as rixas, so são autorizadas em
casos excepcionais. As vias de fato podem ser denuri-cia-
das ao maior, que vem pessoalmente fazer um inqueri+o: o
inqu‚rito significa aborrecimentos para todos, e deve por-
tanto ser evitado. Alias, quase sempre os adversarios fro-
cem desaforos por distra‡ão, por amor ... arte. Frequante-
mente o sangue lhes sobe a cabe‡a, ficam'furiosos, e a gente
pense que se v-ao agarrar, mas não: assim que a raiva de
O
I
RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS
35
um e outro atinge certo diapasão, separam-se. Tudo isso,
a principio, me provocou uma extraordinaria, surpresa. Foi #
de proposito que citei este exemplo de palestra habitual,
enfre os for‡ados. Não compreendia que alguem pudesse
trocar insultos por prazer, encontrar nesse mister um encan-
to, um deleite, um divertimento. Não se deve esquecer
tambem. a parte que cabe a vaidade: o colecionador de
pragas sobe na estima geral-, um pouco mais, e e aplaudido
como ator.
a
Logo ' primeira +arde notei que me fitavam de vi‚s,
apanhei mesmo alguns olhares sinisfros. Por outro lado, des-
confiando que eu trazia dinheiro, alguns defentos me ron-
davam. Ofereceram-me logo os seus servi‡os, ensinaram-me
a carregar os ferros novos, ob+iveram-me - mediante di-
nheiro, e claro - um bau com cadeado, para arrumar nele
o meu enxoval de presidiario e a pouca roupa branca que
trouxera. Mas logo no dia seguinte roubaram-me tudo e
gastaram o produto em bebida.
Um dos meus* assaltantes +ornou-se mais +arde precio-
sissimo para mim, erribora continuasse sempre a furtar o que
era meu, sempre que a ocasião lhe parecia adequada. ~Co-
metia o roubo sem o menor acanhamento, como por obri-
ga‡ão; e eu não lhe podia guardar rancor.
Entre outras cousas, aqueles colegas servi‡ais me infor-
maram de que a gente poderia ter o seu cha: seria pois
ato ufil, para mim, a compra de uma chaleira. E, esperan-
do a compra, poderiam me alugar uma. Recomendaram-me
tambem um cozinheiro que mediante trinta copeques por
mes me prepararia as refei‡ões, se eu quisesse comer 'P'
pa rte ... ~Orrio era de esperar, pediram-me dinheiro em-
pres+a_ _~ogo no primeiro dia, cada um deles renovou os
empresfimos duas e +rˆs vezes.
Os ex-fidalgos são em geral muito mal vistos no pre-
sidio. Embora +enham perdido os direitos civis e sejam ali
iguais a todos os outros, os for‡ados se recusam a encara-los
como companheiros. Ali s, nSo decorre isso de nenkurn pre- #
DOSTOIEVSKI
conceito, mas de uma opinião inafa. Aos seus olhos confi-
nuamos sempre a ser fidalgos, o que não os impede de gozar
a nossa queda: "Agora acabou! Ainda ontem Piofr an-
dava brilhando em Moscou! agora. Piotr force a corda que
vai usar no pesco‡o!" e outras cousas classe jaez.
Gozavam os nossos sofrimentos; entretanto, faziamos
tudo para os esconder deles. Era principalmente nos pri-
meiros tempos que lhes atra¡amos as zombarias, porque, como
a nossa for‡a nSo era igual a deles, não os pod¡amos equiva-
ler no frabalho. dific¡limo obter a confian‡a do povo, so-
brefudo daquela qualidade de gente do povo, e lhes conquis-
far a afei‡ão.
Tinhamos no presidio varios fidalgos. Para come‡ar,
cinco polacos, dos quais falarei mais tarde. Os de+entos os
detestavam ainda mais que aos nobres russos. Os polacos
(refiro-m,e aos condenados polificos) tratavam os colegas de
prisão com uma delicadeza meticulosa, exagerada, altiva;
não podiam dissimular a repugnancia que a sua convivencia
lhes inspirava.
Os for‡ados compreendiam isso muito bem e lhes pa-
gavam na mesma moeda.
Precisei passar quase dois anos no presidio para con-
seguir a boa vonfa& de alguns presos. Contudo, no fim
da pena, a maioria deles gostava de mim e me considenQva
um "bom sujeito".
Excluindo-se a minha pessoa, a fidalguia russa tinha no
presidio quatro representantes. Em primeiro lugar, um su-
jeifo crapuloso, medonhamenfe corrompido, espião e de-
lafor de oficio, de quem eu ia ouvira falar antes da minha
chegada e com o qual cortei rela‡8es logo no primeiro dia.
O segundo _era o parricida de quem ia falei. O ferceirb
chamava-se Akim Akimi+ch. Raramente tenho visto um ori-
ginal daqueles: ficara para sempre gravado na minha lem-
bran‡a. Era um homenzarrSo ossudo, de espirito fraco, ig-
norancia crassa, mefoclico e preso a regra como um alemão.
Os presos o ridicularizavam, mas alguns evitavam irrita-lo,
temendo-lhe o genio briquen+o. Desde o inicio nivelara-
kECORDAC ES DA CASA DOS MORTOS
se com os outros, rixando-se, agarrando-se ate com eles.
Era de uma honestidade fp-nomenal, e, assim que constatava
uma injusti‡a, voava a corrigi-ia, e muitas vezes se imiscuia
ern negocios que absolutamente não eram da sua confa. Sua
ingenuidade era prodigiosa; por exemplo: quando brigava
com os defen+os, censurava-lhes as ladroagens e os conci-
fava ao arrependimento. Fora alferes no exercito do C‚iu-
caso. Fizemos amizade logo no primeiro dia e ele imedia- #
famente me confou a sua his+oria. Come‡ara a vida Ja
mesmo no Caucaso, como sulo-oficial volun+ario num regi-
men+o de linha; esperara durante muito tempo a promo‡ão a
oficial, mas afinal mandaram-no como comandante para um
velho forfim. Um principe +ribufario dos arredores incen-
diou esse for+im, e fenfou um ataque noturno, sem nenhum
ˆxito ali s. Akim AkiMi+ch, por as+ucia, fingiu que não
sabia quem fora o autor do ataque. O caso foi a+ribuido
aos dissidentes; um mˆs depois Akim Akimi+ch convidou o
principe para uma visifa de cordialidade. E o principe
compareceu, sem des~onfiar de nada. Akim Akimi+ch formou
sua guarni‡ão em linha de batalha e confundiu publicamente
o visitante, lan‡ando-lhe em rosto a sua felonia. Explicou-
lhe miudamente a conduta que doravan+e deveria ter como
1 a
pr ncipe fribufario, e depois, ' guisa de conclusão. . . fu-
zilou-o. E no fim de tudo, mandou um relaforio circunstan-
ci;" o aos seus chefes. Foi a conselho de guerra; condena-
do a morte, teve a pena comutada para trabalhos for‡ados
de segunda categoria, e foi mandado passar doze anos na
Siberia ... Reconhecia que a sua conduta fora ilegal, ga-
ranflu-me ate que sabia disso antes de mandar fuzilar o prin-
cipe; nSo ignorava que o principe deveria ser julgado se-
gundo a praxe; contudo, não conseguia compreender em
que consistia o seu crime.
- Mas veja, o principe tinha incendiado o meu forfim!
Na sua opinião, eu ainda deveria dizer muito obrigado, heiri?
respondia ele a +JJas as minhas obje‡;-5es.
Os for‡ados, por mais que zombassem de Akim Aki-
mi+ch e o chamassem de louco, tinham em alta confa o seu #
DOSTOIEVSKI
to de ordem e as suas prendas. Akim Akimi+ch sabia
os oficios: era marceneiro, sapateiro, pintor dou-
serralheiro; e todas aquelas artes aprendera-as no
io. Auto-clidata nato, bas+ava-lhe ver um objeto para
ifar. Confeccionava fambem uma enorme variedade
ixas, cestos, lanternas, brinquedos, e os vendia na cida-
Isso lhe rendia algum dinheiro que ale empregava ime-
mente na aquisi‡ão de roupa branca ou de um traves-
mais macio. Conseguira ate mesmo fabricar para si
olchão dobradi‡o. Como ocupava o mesmo alojamen-
e eu, ajudou-me muito durante os primeiros meses da
deten‡ão.
Antes de sairem da fortaleza para o local do trabalho,
esos formavam dois a dois diante do corpo da guarda.
infe, e a cauda da forma‡ão colocavam-se os soldados
scolta, de armas embaladas. Aparecia então um ofi-
e engenharia, condutor dos trabalhos, e alguns sapade-
esignados como moni+ores. O condutor contava os
s, depois os mandava em pelotões para os locais de-
dos. 1
Juntamente com outros, destinaram-me a oficina de en-
aria, constru‡ão baixa, toda de pedra, situada no meio
grande patio atulhado por uma infinidade de`ma+eriais.
-w ali uma forja, tendas de marceneiro, de serralheiro,
s+rador, e+c_ . , 'Akim Akimi+ch trabalhava no enverni-
into; esquentava o oleo, moia as tintas, e pintava mesas
ros moveis de cor de nogueira.
Enquanto esperava as minhas novas grilhe+as, comuniquei-
s minhas recentes impress6es.
- Sim, e verdade, confirmou: eles não gostam dos
es, principalmente quando s3o condenados -pol¡ticos: so
l+a come-los vivos. facil de compreender. Para co-
r, vocˆs e eles nada +ˆrn de comum. Em segundo
prifes de virem para ca eram todos pobres servos ou
es soldados. Julgue por si se podem gostar de nobres.
- sou eu que lhe digo, - a vida e dura, mas nas
anhias correcionais da Russia europeia e bem pior. Os
RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS
39
e vˆm de Ia para c acham que passaram do inferno para
c‚u. E não e que o trabalho seja mais penoso. Parece
que Ia a primeira categoria não tem uma cline‡ão estrita-
n+e militar: tratam os presos de modo muito diverso daqu¡;
*deportados podem at‚ ter a sua casinha; não vi com meus
os, porem foi o que me disseram. Não raspam a cabe‡a, #
o obrigam a uniforme, todavia, acho ate bom que os
esos tenham a cabe‡a raspada e usem uniforme: a ordem
melhor, e e mais agradavel a vista. Mas e isso justa-
men+e o que desagrada a esses camaradas. E. +ambem,
,que bandos de vagabundos! Circassianos, raskoiniki, (6)
,bons cristãos ortodoxos que deixaram na aldeia mulher e
ilhos, judeus, boemios, a Deus sabe quem mais, obrigados
os a viver bem uns com os outros, a comer na mesma ga-
a, a 'dormir na mesma tarimba! E que liberdade! - O
1. comer da gente, e preciso enguli-lo ...s escondidas, cada
vin+enn e guardado no fundo das botas; não precisa dizer
,mais: presidio e presidio ... E quer a gente queira quer não,
acaba meio louco.
Aquilo eu ia sabia. Era principalmente a respeito do
nosso maior que eu queria interrogar Mim Akimi+ch. Ele
não me dissimulou nada e a impress3o que me ficou não foi
absolutamente agradavel.
Tive que passar dois anos sob as ordens desse individuo,
e tudo que no primeiro dia me disse Akim Akimi+ch se re-
velou exato, - com a diferen‡a apenas de que a sensa‡So
direta sempre ultrapassa a impressão provocada por uma
simples narrativa. Era um homem apavorante, sobretudo
gra‡as a autoridade absoluta que exercia sobre duzentas
pessoas: porque ele, em si, não era senão desordenado e
mau. Considerava os de+en+os como seus inimigos nafu-
rais: era esse o seu primeiro e principal engano.
Sua pouca capacidade, suas proprias qualidades se
desviavam e tomavam uma dire‡ão ma. Violento, impulsi-
vo, cruel, precipifava-se como8~,,ima bomba na fortaleza, ate
(6) Welhos crentes". O "Raskol" foi um cisma provocado pelo patriarca Nikon
que em 1666 corrigiu os livros sagrados. (N. de R. Q) #
46
bos'ro I E vs I( I
Mesmo alta noite. e se observava algum preso dor
lado esquerdo punia-o no dia seguinteMindo do
gundo as minhas ordens, deve
pela manhã. /'Se-
Era odiado e temido com -se dormir do lado direito111
melha€a e enfarruscada O pe‡onha. Tinha um
Todos sab* a cara ver
ioguefe nas mãos do se * iam que O maior era um
neste mundo era O cac u ordenan‡a, Fedka. Seu unico
queceu quando o anima horrinho Tresorka (7) e
izinho caiu dmor
fam, como ‚ quase enlou-
depois se se tratasse dum doente. Solu‡a va ~ co
de lhe haver dado -filho. , Expulsou um
uma surra, segundo o s r;
eu
n
vete
- Mas sabendo, Por infermedio de Fedka
pres;d;o um curandeiro que sempre se sa- , que havia
ridou cham6-10 inconfinenfi. ia muito bem,
- Salva-ol grifava ele.
bro de dinheiro! Cura
O homem um lf o Meu Iresorka e eu te
'fo bom veferinarim u~ [que s;beriano 'asfufo, inteligente. . e
visita , O, contou ma r
a casa do m - is fa de aos com
ajor, - ali s Panheiros
quando o caso estava 16 o fez muito mais
u- Olhei Para Tresorka, quase esquecido.
ma almofada clue estava no sof ~ em cima
muito alva, vi irpediafamenfe que sofr-
inflama‡ão e seria preciso sangi-6_lo, para o salvar
sei tambem: ta
lei: E se eu fracasso e o cão rebenta?';
"Excelencia, mandou-me chamar muito tarde.
m Ou anteontem eu ainda
Pem mais jeif¢.tv o Poderia salvar; o
assim, f;'Ou-se Tresorka.
nforam-me fambem, c
quisera m Om muitos Pormenores que um #
atar o maior.
)-se que - O pre-
J h Muitos anos' n
sse homem dava mostras de uma submissão exemplar.
r debil Iamais dir;g~a a Palavra a i
menfal. ninguem, Passava
S
Ma
Pen
fa
8
o
abia ler e escrever, e levara o ano
a ler a B'b"a, ia e noite.
rmia di
M, erguia-se No meio da noite, quando
Stufa, abria acendia uma vela
O 1;vro.'e lia af- inst lava-se
e O amanhece' a
inuti,0 russo da Pala~ra francesa Um dia de-
"Tr‚sor" (tesoro).
(N. de R. Q.)
P rem agora
RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS
Ir r
41
clarou ao sub-oficial de guarda que se recusava a ir para o
trabalho. Avisaram o maior, que se enfureceu e correu ao
alojamento. O preso lhe atirou um tijolo, que ia tinha con-
sigo, com essa inten‡ão. Mas errou. Agarraram-no, jul-
garam-no, a‡oifaram-no. Passou-se tudo com grande rapi-
dez. Tres dias depois o desgra‡ado falecia no hosp~ital.
Antes de morrer, declarou que não queria mal a ninguem,
que tinha apenas procurado o marfirio.. Não pertencia en-
tretanfo a nenhuma seita dissidente. E nunca mais sua lem-
bran‡a foi evodada sem certa como‡ao respeitosa.
Enquanto me punham as novas grilhe+as as vendedoras
de kalafch entraram em fila, na oficina. Havia entre elas
ate criancinhas; enquanto eram pequenas vinham mercar os
kalafchi que as mães faziam. Depois de crescidas, continua-
vam a vir, mas sem mercadoria. Entre as vendedoras, havia
+ambem mulheres casadas. O kalafã valia dois copeques e #
quase todos os presos compravam deles.
Reparei num dos for‡ados, marceneiro de profissSo, ia
grisalho, mas de cara rubicunda, que pilheriava com as ven-
dedoras. Antes da entrada delas, amarrara ao pesco‡o um
len‡o encarnado. Uma mulherona gorda, com a cara toda
picada de bexigas, foi sentar no seu banco; e se travou en-
fre, eles a seguinte conve'rsa:
- Por que vocˆ não foi on+em? perguntou o homem
.com um sorriso fatuo.
- Fui sim; e levei o bolo! retrucou ela, despachada.
- Precisaram da gente; se não fo~se isso, estariamos
todos 16! Mas anteontem, vocˆs correram todas ...
- Quem foi?
- Quem? A Mariachka, a Kavrochka, a Tchekunda,
a Dyugrocheva¡a ... (8)
- Escute, perguntei a Akim Akimi+ich, sera pos,~ivel
que. . .9
Acontece, sim, respondeu-me Akim baixando modes-
famenfe os olhos, porque era pudicissimo.
1 (8) Tchekunda: "E' barato" - Nugrochevaia: "Dois groches~'. (N. de R. Q)
O0" #
42 DOSTOIEVSKI
Aquilo acontecia realmente, mas de raro em ra~o e
com. imensas dificuldades. De modo geral, havia mais apre-
ciadoros da bebida que dessa outra diversão, -apesar da
dureza daquela vida. Para conseguir algum dos presos apro-
ximar-se de uma mulher, precisava escolher o momento, o
local, marcar o encontro, conseguir ficar sO, ~ cousa que
era particularmente difici) - subornar os vigilantes, - cousa
mais dificil ainda, - em suma, gastar um dinheiro realmente
insentafo. Apesar disso, aconteceu-me mais tarde teste-
munhar cenas de amor. Lembro-me de certa vez, no verão,
em que nos esfavamos num galpão as margens do Irfych,
queimando um forno de tijolos. Os vigilantes- eram bons
rppazes. Logo mais apareceram duas "souffieuses" como as
chamavam os de+enfo"s.
- Por que vieram tão tarde? Estavam com os Zver-
kovi? pergun+ou-lhes o preso. Ja as esperava ha muito tempo.
-~- Eu? Nunca. Mais demora uma gralha numa ar-
vore do que eu com eles, replicou jovialmente a rapariga.
Era a Tchekunda, - a virago mais horrenda deste
mundo. Trazia consigo a sua amiga Dvugrochevaia. ~_ssa,
então, desafiava qualquer pintura.
- J faz tempo que a gente não se vˆ, continuou o
galã', dirigindo-se a Dvugrochevaia. Vocˆ anda magrinha.
- isso. Dantes eu era gordo+a, hoje parece que
enguli uma agulha!
- ~E anda sempre correndo atras dos,soldados?
- Qual! Isso e lingua comprida de alguem! mas a
verdade e que ainda que a gente fique sem um fio de seu,
não h6 ‡orrio um soldado!
- Deixem de pensar em soldados, e venham com a
genfe... Nos pelo menos temos dinheiro. . .
Para completar o quadro, e preciso imaginar o galã
com a cabe‡a raspada, a libr" de duas cores, a grilhefa aos
p¢s, sentinela a vista.
Despedi-ma de Akim Ak'¡m¡fch, e sabendo que poderia
. voltar, pedi um vigilante a fui embvra. Era a hore do re-
IPA #
I
If
1 ~ (
RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS
45
gresso. Os farefeiros 550 os que vão em primeiro lugar.
£nica maneira de tirar servi‡o dum for‡ado e lhe impor um
farefa. Mesmo quando ‚ pesada demais, eles a termina
duas vezes mais depressa do que se labutasse sem defen‡
a+6 ao soar do tambor. Finda a tarefa, o preso volta par
a caserna, e ninguem mais cuida em lha por empecilhos.
Não se jantava em grupo: quem chegava primeiro to
mava lugar a vontade. Alias, a cozinha não comportaria +11
dos ao mesmo tempo. Provei a sopa mas, por falta de
habito, nao a pude engolir e esperei o cha. Senfamo-nos ...
ponta da mesa. Eu tinha comigo um companheiro - ex-
fidalgo tambem (9).
Os defenfos entravam o saiam. Havia muito lugar,
faltando ƒnda tantos. Cinco presos formavam um grupo
sep rado. O cozinheiro lhes serviu duas tigelas de sopa e
pos na mesa um frigideira cheia de peixe frito. Decerfo
estavam se banqueteando, em comemora‡ão de qualquer
aniversario. Olhavam-nos de vies. Um dos polacos chegou
e veio se sentar ao nosso lado.
- Eu não estava Ia, mas sei de tudo! exclamou um
preso alto, penetrando na cozinha a olhando em c¡rculo
todos os homens presentes.
Cinquenfa anos mais ou menos, magro, MUSCUloso, tinha
uma cara ao mesmo tempo astuta e jovial. O labio inferior,
pesado, pendente, dava-lhe ao rosto uma expressão muito
comica.
- Saude, bom proveito! Saude aos mo‡os de Kursk!
continuou ele, senfando-se perto dos convivas. Pão e sal!
Recebam bem o h6spede!
- Não somos de Kursk, rapaz.
- Então são de Tambov?
- Nerri de Tambov- Não arranjas nada aqui, mano
Se queres pedir esmola, corre afras dum rica‡o.
(9) S. F. Durov, condenado ao mesmo tempo que Dostoievski, e com quem o ro-
as "Recorda‡ões" e -s¢ faz duas ou trˆs alusões ... sua Pessoa
Z-ndceistarrandousbriugado durante toda a sua estada no presidio. Não o nomeia nunca
(N. de H. M.) #
#
46 DOSTOIEVSKI (r
- Hoje*, mano velho, na minha barriga, Ivan Taskun e
Maria lkofichna andam ...s furras!(1 O) Onde acharei esse rica‡o!
- L esta Gazine, que ‚ cheio dos cobres! Vai a+ras
1
dele!
- Gazine? Esta de farra hoje, maninho, est , bˆbedo
como um porco - bebeu o sortimento todo!
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