especiais, fica anexada a essa casa de deten‡ão uma se‡ão
igualmente especial, desfinada a delinquen+es mais perigo-
sos.11 Mesmo os de+en+os dessa se‡ão não sabiam se ela
era +emporar¡a ou perpetua. Diziam: "Não temos +ermo
inclicado; esperamos apenas a organiza‡ o dos trabalhos for-
‡ados especiais; isso quer dizer: sera por pouco tempo. 11
Nem Suchilov nem ninguern do combõio sabia qualquer
cousa a respeito dessa se‡ão, salvo falvez Mikhailov, que
fora enviado para Ia, e cujo horrendo crime ia lhe propor-
cionara +rˆs ou quatro mil a‡oites: dizia-lhe o faro que o
lugar não poderia ser grande cousa. Suchilov, ao contrario,
ia apenas para uma aldeia, so isso. "Queres trocar comigo?"
Suchilov, cora‡ão singelo, meio tonto a cheio de reco-
nhecimenfo para com Mikhailov que o obsequiara, não se
atrevia a recusar. Alias, ia ouviu dizer que aquilo se faz
com frequencia, que nada tem de ex+raordinario. E aceita:
aproveitando-se da simplicidade do camarada, Mikhailov lhe
compra o lugar por uma blusa vermelha e uma moeda de
um copeque, que tem o cuidado de lhe entregar diante de
testemunhas. No dia seguinfe, Suchilov ia não esta bˆbedo,
mas novamente o embriagam; ali s, +orna-se dificil voltar
aftas do trato: o rublo ia foi bebido, e a blusa vermelha não
tardou nada em acompanha-lo. "Não queres mais? então
devolve o dinheiro!" De onde tirara dinheiro o pobre Su-
chilov? Se não quiser devolver o rublo, +era o arfei (2) que
o obrigar6 a isso, porque reina severidade, em +ais casos.
Ademais, toda palavra dada deve ser marifida, - e a regra
do arfei, que vela por isso: um delinquen+e não +er6 repouso,
ficara com a vida in+oleravel, ser6 atormentado, talvez ate
morto. Com efeito, se uma umca vez o arfei desse mostras
de indulgencia, +ais trocas não se poderiam realizar. Se
fosse poss¡vel renegar uma promessa e desmanchar um ne-
gocio depois de recebido o dinheiro, quem. então, cumpriria
(2) Espede dP comit‚ de vigilancia e dire‡ão formado entre os deportados.
(N. de R. Q )
O #
100 DOSTOIEVSKI RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS 10
os acordos? Em suma, a coluna inteira toma o negocio
a sua conta, e, por essa razão, se mostra impiedosa. En-
fim, Suchilov se apercebe que ia n3o pede voltar afras, que
suas suplicas são inuteis; resolve concordar sem restri‡5es.
Anuncia-se o caso ao comboio inteiro, e se houver neces-
sidade, da-se uma gorjeta aqueles que poderiam falar
demais. Que importa alias aqueles miseraveis que o presi-
diario seja Such¡lov ou Mikhailov? Podem muifo bem ir
para o diabo todos os dois, se assim o querem[ E depois
de receberem a gorjeta, o jeito que tˆm e calar a boca.
Na parada seguinte, a hora da chamada, quando chamam
Mikhailov, Suchilov responde: "Presente!" quando chamam
Suchilov, Mikhailov responde: "Presente!". Continua-se o
caminho e a troca esta feita. Em Tobolsk, os depor~ados
são escolhidos: "Mikhailov" vai para a colonia, e "Su-
chilov", com forte escolta, +orna o -caminho da se‡ão espe-
cial. ... nenhum protesto e mais poss¡vel. Alias, que pro;
vas se poderiam apresenfar? Quanfos anos se arrastaria o
processo? Que novo castigo sofreria o desgra‡ado? Onde
arranjaria fes+emunhas? Se as encontrasse, elas se recusa-
riam a depor. E por fim de contas, eis como, a troco de
uma blusa vermelha e de uma moeda de um rublo, o pobre
Suchilov esta instalado na se‡ão especial.
Os defe~fos o levavam na +ro‡a não porque trocara de
personalidade com o outro, mas porque eram geralmente
desprezadas fedas as pessoas que se deixavam embrulhar.
Zombavam dele porque recebera pela troca apenas uma blusa
vermelha e um rublo, - indeniza‡ o irrisoria. Em geral a
troca se opera mediante quantias relativamente elevadas, -
algumas dezenas de rublos, as vezes. Contudo o pobre
Suchilov, +ão nulo, +ão apagado, tão insignificante, não po-
deria senSo ser levado a ricliculo.
Vivemos muito tempo juntos, Suchilov e eu. Pouco a
pouco ele se ligou a mim, e eu tomei o habito de o ver ao
meu lado. Um dia - nunca o perdoarei a mim proprio -
apesar de ter recebido dinheiro de minha mão, ele não fez
o que lhe pedira, e tive a perversidade de lhe dizer:
"Suchilov, vocˆ s0 presta para receber . dinheiro!" Ele não
respondeu, correu a fazer o que eu queria, mas ficou subita-
me-,~te triste. Passaram-se dois dias. Eu não poderia supor
que ele houvesse tomado tão a peito as minhas palavras.
Sabia que um defento, An+one Vassiliev, o atormentava con-
finuamen+e, cobrando-lhe uma divida rifima. "Decer+o.
pensei, Suchilov precisa de dinheiro e não se atreve a vir
pedir-me". No fim de +rˆs dias, perguntei: "Suchilov, vocˆ
queria me pedir uns cobres afim de pagar a Anfone Vassi-
liev, não? Torne!" Eu estava na tarimba, e Suchilov de pe,
a minha frente. Parecia muito comovido com a oferta que #
lhe fazia e surpreso por me haver lembrado do seu aperto
- principalmente porque, na sua opinião, nestes Ulfimos
tempos, ele ia me +ornara excessivo dinheiro emprestado, e
não ousava receber mais nada. Olhou as moedas, fitou-
me, e de repente deu meia volta e saiu. Tudo aquilo me
surpreendeu muit¡ssimo. Fui procur6-lo e o encontrei Ia,
atras das casernas. Estava encostado a pali‡ada, a ca-
be‡a e os bra‡os apoiados a uma estaca. "Suchilov, que
houve?" perguntei-lhe. Ele não me olhou, e grandernenfe
surpreso, vi que estava prestes a chorar. "Alexandr Pe-
trovi+ch, voce pensa. . . - come‡ou com voz tremula, ten-
fando evitar o meu olhar - pensa que eu ... que e por di-
nheiro. . . e eu. . . eu. . . eu ... ah!" Dizendo isso, voltou-
se para a estaca, e com tanto es+ouvamento que bateu com
a cabe‡a, e se p"s a solu‡ar. Era a primeira vez que eu via
um for‡ado chorando. Tive muito trabalho para o con-
solar. Depois disso, Suchflov mosfrou-se ainda mais zeloso
que antes no meu %õservi‡o" - caso isso ainda fosse possivel;
cuidava-me, mas por sinais quase impercep+iveis verificava
que ele ainda não me pudera perdoar aquela censura.
Entretanto os outros o cobriam de escarneos, faziam-lhe
picuinhas a respeito de tudo, injuriavam-no as vezes rude-
mente, e ele vivia com todos em bons termos, sem se ofender
nunca. Como e dificil conhecer um homem, mesmo depois
de longos anos de vida em comum! #
102 DOSTOIEVSKI RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS 103
Eis porque o presidio não me apareceu, de entrada, no
seu verdadeiro aspecto. Eis porque, ia o disse, embora en-
carando tudo com +ão avida a intensa aten‡ão, não me
apercebi de inumeros fatos que se passavam sob o meu
nariz. 50 os mais aparentes me impressionaram; mas como
eu os considerava sob um ƒngulo diferente, eles fambem não
me podiam deixar na alma senão uma sensa‡ão de peso, de
tristeza, de desespero. O que contribuiu muito para esse
estado de espiri+o, foi o meu encontro com A ... v, defento,
chegado pouco tempo antes de mim, que me produziu uma
impressão particularmente atroz, logo' ap6s meu ingresso
na prisão. Tinham-me, no entanto, prevenido de que o en-
contraria Ia. Ele me envenenou aqueles primeiros dias ia de
si tão penosos, e por +ai modo agravou meus sofrimentos
morais, que não poderei ficar calado a seu respeito.
Era o exemplo mais repugnante de baixeza, de avilta-
mento em que pode cair um hornem; mostrava ate que ponto
a gente pode matar dentro de si. sem luta e sem remorsos,
qualquer sentimento de honra. Esse A. era o jovem fidalgo
ao qual ia aludi, e que, por amizade a Fedka, a ordenan‡a
do major, servia de espião na caserna. Posso resumir-lhe a
his+6ria em poucas palavras. Antes de acabar os estudos,
ele rompeu com os pais ' assustados por seus desregra-
menfos. e deixou Moscou por São Pe+ersburgo. La, afim
de obter dinheiro, não recuou nem diante de uma sordida
dela‡ão. Explico-me: possuido pela sede desenfreada, in-
saciavel, de prazeres bestiais, obteve dinheiro vendendo a
vida de dez homens. A capital. seus caf‚s, seus botequins,
suas casas suspeitas, o seduziram de tal maneira que, a des-
peito da in+eligencia que inegavelmente possuia, ele se arris-
cou a essa insensata empresa. Foi rapidamente desmasca-
rado: e como sua denuncia falsa comprometia pessoas ino-
cen+es e era um escarneo as autoridades, condenaram-no a
dez anos de presidio. Ele ainda era muito jovem - estava
apenas no inicio da vida. Era de crer que +ão pavoroso
castigo o comovesse. lhe despertasse no intimo uma resis-
fencia qualquer, lhe provocasse uma crise. Mas ele aceitou
sua nova condi‡ão sem o menor pejo, sem mesmo a menor
repugnancia; não se revoltou moralmente, não se mostrou
sens¡vel senão-ao pavor do trabalho, a obriga‡ão de dar
adeus aos seus h bitos de liberEno. NEo via no fi~ulo de
· for‡ado senão a possibilidade de ampliar o campo das suas
vilanias e baixezas. "Se temos que ser um gale, sejarrio-lo
f de todo. E quando a gente e um for‡ado, tem direito de
rastejar pelo chão, sem pudor." Era essa, literalmente, a
f sua concep‡ão da vida. Evoco como um fenomeno aquela
repugnante criatura! Vivi varios anos entre assassinos, ceie-
-rados confessos, libertinos, mas garanto que nunca +esterriu- #
nhei queda moral mais completa, corrup‡ão mais total, bai-
xeza mais cinica. Tinhamos entre n6s um parricida de ori-
gem'nobr,e, - ia falei nele, +ambem - todavia pude me
convencer por meio de muitos fatos e palavras de que ate
mesmo esse individuo era incomparavelmente mais elevado
e mais humano do que A.. Durante todo o periodo de minha
11
¡ reclusão, esse desgra‡ado jamais foi senão um peda‡o de
carne com dentes e ventre, e com uma sede insaciavel pelos
prazeres mais sOrc¡licios; era capaz de tudo, desde que nao
1 1 corresse nenhum risco. Não exagero de modo algum. Es-
fudei A. profundamente, e reconheci nele um especime com-
pleto da animalidade que não ¢badece a nenhuma norma, a
nenhuma lei. E que repulsa me causava o sorriso eterna-
mente escarninho daquele monstro, daquele Quasimodo
moral! Al s, alem da sua asfucia e da sua infeligencia,
aquela fera possuia certa beleza, um pouco de ins+ru-
‡ão e algumas capacidades! Não - antes o incendio, antes
a fome e a peste do que a presen‡a na sociedade dum indi-
viduo de +ai especie! Ja contei que no presidio todos se
depravavam tanto que a espionagem e a denuncia flores-
ciam ... solta e a ninguem infamavam. Pelo contrario. os
defentos se mostravam muito mais amaveis com A. do
que conosco- Os favores que lhe dispensava o nosso maior
bˆbedo, davam-lhe valor e impor+ancia aos olhos dos
demais. Ele afirmara ao maior, entre outras cousas, que
sabia pintar, fazer retratos (aos defentos contava que era #
104
DOSTOIEVSKI
tenente da guarda); o maior liberou-o do trabalho e o mandou
escoltar a, sua casa, afim de lhe aproveitar os falenfos. Vendo-
se Ia, A. se acamaradou com Fedka, a ordenan‡a, que tinha
uma ex+raordineria e-
5
temente sobre o presidio inteiro. E A ... v passou enfão a
fazer at‚ relaforios a nosso respeifo, a pedido do proprio
maior,.que nas suas horas de bebedeira o esbofeloava, o
injuriava, lhe chamava de espião, de sabujo. Muitas vezes,
depois de o espancar, o maior se insfalava numa cadeira e
ordenava a A. que continuasse o retrato. Nosso maior, a
despeifo de o considerar um pintor nofavel, quase um Brul-
lov (3) (pois ouvira falar nesse mestre), achava-se todavia
no dineito de lhe bater no rosfo, - porque "por melhor pinfor
que sejas, esfas no presidio, e mesmo que fosses Bruilov em
pessoa, nem por isso eu deixaria de ser o +eu chefe, e de
fer o direito de fazer de ti o que en+endess.e". Ufilizava-o
afe para lhe tirar as botas e carregar o seu vaso noturno. En-
frefanto, demorou muifo fempo a convencer-se de que o
miseravel não possuia nenhum falen+o arfisfico. O refrato
arrasfou-se quase um ano in+eiro. O maior acabou por adi-
vinhar que o ludibriavam e compreendeu que. longe de ficar
pronto, em cada se‡3o ficava o refrafo mais diferente.
Zangou-se, sovou o pintor, e o devolveu ao servi‡o pesado.
A. tinha bastantes motivos de queixa: sentia saudades dos
dias de vagabundagem, dos presentinhos, das sobremesas
furtadas a mesa do maior, do seu Fedka querido e da boa
vida que levavam os dois na cozinha.
Depois da queda de A., o maior deixou de perseguir
o defenfo M., contra quem o canalha o irritava incessanfe-
menfe pela razão seguinte: no momento em que A. chegara
ao presidio, M. vivia so, e presa de desespero, Nada tinha
em comum com os oufros gales, e os olhava com horror,
com repugnancia. Não reparava nem observava neles nada
(3) Pintor russo (1799-1852) descendente de uma familia de huguenotes fran-
ceses (Bruieleau). Representante do academicismo romƒntico, gozava nessa epoca um
renome que nos parece hoje bastante injusto. Seus retratos ali s são muit¡ssimo su-
periores aos seus quadros hist¢ricos. (N. de H. M.)
RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS
105
que o pudesse afrair, odiava-os em vnz de se aproximar deles
a‡ao
- e era pago na mesma moeda. espantosa a sifu ... #
desses homens- M. ignorava a causa,que trouxera A. ali,
,enquanfo A., adivinhando com quem irafava, lhe cjar£n-
tiu logo que esfava no presidio não inculpado de dela‡ão
falsa, mas em virtude do mesmo delito que acarretara a
pena de M.. O pobre M. alvoro‡ou-se por encontrar en-
fim um companheiro, um irmão. Duranfe os primeiros dias,
supondo que o outro deveria sofrer muifo, frafou-o, conso-
lou-o, deu-lhe os seus Ulfimos vin~ens, fˆ-lo comer separado,
partilhou com ele os seus obiefos mais indispensaveis. Mas
A. lhe +ornou aversão, desde logo, justamente por causa
dessa generosidade do outro, do seu horror a qualquer bai-
xeza, da sua falta de indenfidade consigo proprio. E tudo
aquilo que, nas suas primeiras confidencias, M. lhe revelara
sobre o presidio e o chafe, assim que teve um momento
propicio, A. se apressou em o fransmifir ao maior. O maior
tomou odio a M., e se não fosse a auforidade do governador,
teria decerto dado cabo dele. E A., não so não mostrou
nenhuma confusão quando mais +arde M. lhe descobriu a
feionia, como a+6 procurava encon+ra-lo para o escarmen+ar
com o seu sorriso ironico. Esse feito lhe causava uma ale-
gria visivel. Muitas vezes M. me fez reparar nisso. Aquele
infame canalha fugiu fempos depois, em companhia de um
outro for‡ado e um vigilan+e-, mais alem falarei dessa aven-
fura. Quando cheguei ao presidio, ele se pOs logo a me
rodear. pensando que lhe ignorava a hisforia. E, repito-o,
envenenou os primeiros dias da minha esfada na prisão, e
me aumentou o desespero. Horrorizava-me ante a igno-
minia na qual me via mergulhado. Supunha que ali não ha-
via senão sordidez, abje‡ão; mas estava enganado: e que eu
julgava todos os oufros presos pelo exemplo de A..
Durante os fres primeiros dias não fiz outra cousa senão
me arrastar pela fortaleza, ou esfirar-me na farimba. Enf re-
~uei ao defenfo que me fora indicado por Akim Akimitch
a fazenda destinada a me costurarem camisas, (pagava ai-
9 #
106
DOSTOIEVSKI
gumas moedas por camisa feita); depois, guiado sempre por
Akim Akimifch, arranjei um colchão dobradi‡o de feltro,
forrado de pano, delgadiss¡mo, e um travesseiro recheiado
de 15, duro demais para quern r30 esfava acosfurnado a ele.
Akim Mimi+ch dispendeu bastante esfor‡o para me arranjar
isso tudo, e com suas proprias mãos cosfurou-me um coberfor,
feito de farrapos da esfamenha dos umformes, resfos de ca -
sacos e cal‡as gastas at‚ ao fio que comprei de varios deferi-
fos. Quando completam certo tempo, os umformes se for-
riam propriedade dos for‡ados, que imediatamente os reven-
dem no proprio presidio; por mais rota que pare‡a uma roupa
velha, não deixa de render qualquer cousa, mudando de dono.
Aquilo tudo me espantou muit¡ssimo. Era o meu primeiro
confacfo real com o povo. Eu me +ornara de repenfe fão
da "Plebe" fão "pres¡diario" quanto eles todos. Seus ha-
bitos, suas opiniões, seus cosfumes, +ornavam-se por assim
dizer os meus, pelo menos pela forma e pela lei, mesmo que
-não os partilhasse na realidade. Tinham-me prevenido,
e eu sabia o que esperar; mas não ficaria mais surpreso nem
mais envergonhado se nada houvesse esperado daquilo, antes.
A realidade produz uma impressão muito diferente daquilo
que s0 conhecemos por ouvir dizer. Suporia euPiamais, por
exemplo, que farrapos sujos, que trapos velhos pudessem
fer algum valor? Entretanto, ufilizava-os para fazer uma
coberta! difi~il explicar como e o pano com o qual ves-
tem os for‡ados. Aparentemente, parece 13, burel. esfame-
nha de soldado espessa e grosseira; mal a genfe o vesfe, se
desfia e se fura lamentavelmente. Davam-nos umformes
novos todos os anos, e durante esse lapso de tempo era com
esfor‡o que o conservavamos. O defenfo frabalha, carrega
pesos, a roupa se gasfa e se rasga muito depressa. So reno-
vavam as nossas peles de carneiro de fres em fres anos; con-
tudo, tinham que nos servir de capa, de coberfor e colchão.
Embora uma pele de carneiro seja s61ida, algumas delas, espe-
cialmenfe no fim, consfifuiam apenas um £nico remendo.
Quando atingiam os fres anos, embora usadas ao maximo
possivel, valiam ainda uns quarenfa copeques. Algumas,
RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS
mais bem conservadas, chegavam a sessenta e setenta co-
peques, qua . rifia elevada, para o presidio.
107
O d;nhe;ro +ambem - ~... fiz a isso uma r pida referen-
cia - tinha um valor extraordinario. um poder assustador. #
Pode-se afirmar que um preso possuidor de alguns recursos
sofre dez vezes menos que aquele que nada tem. Quando o
governo fornece tudo, para que se quer dinheiro? assim
que a nossa adminisfra‡ão raciocina. Entretanto, repito-o,
se os defenfos fossem privados da faculdade de possuir al-
gum dinheiro, enlouqueceriam; ou morreriam como frioscas
(embora "providos de tudo") ou, então, enfregar-se-larri aos
piores desmandos, uns por desespero, outros para mais depres-
sa serem punidos e aniquilados, e desse modo mudarem, de
qualquer fo~rma, o curso do proprio destino ("mudar de
sorfe" ‚ a expressão t‚cnica). Se depois de ganhar alguns
copeques, suando sangue e agua, ou depois de obter o di-
nheiro por alguma as+ucia excepcional ajudada muitas vezes
pela fraude ou pelo roubo, o defen+o se põe a gastar ...-toa,
com o descuido de uma crian‡a, isso não quer dizer - em-
bora o pare‡a, ... primeira vista - que ele não sabe o pre‡o
do que ganhou. O gale +em -pelo dinheiro uma avidez que
vai at‚ -ao espasmo, ate ... obnubila‡ão do juizo; se quando
se diverte o afira ... direita e ... esquerda, como cavacos sob
o cepilho, ‚ para se apropriar de algo ainda mais precioso.
E que cousa ‚ essa, mais preciosa para ele do que o dinheiro?
A liberdade, ou pelo menos a ilusão da liberdade perdida.
Os for‡ados são grandes sonhadores. Falarei disso mais
tarde; ia, porem, que a palavra sonho me caiu da pena, posso
afirmar que ouvi condenados a vinfe anos me dizerem em
tom perfeifamenfe calmo, frases desta natureza: "Espera
um pouco, quando eu acabar meu tempo, se Deus quiser,
então vais ver..." A id‚ia +raduzida pela palavra "de+en-
+o" e o homem privado do seu livre-arbitrio. Mas quando
esse homem gasta o seu dinheiro "faz o que quer". Apesar
das testas marcadas a fogo, das grilhetas, do muro odiado
que lhe fira a vista do umverso e o fecha como um animal #
108 DOSTOIEVSKI
feroz na jaula, - ele pode obter aguardente, isto e, um
prazer pelo qual incorre em castigo severo. Pode arranjar
uma mulher, e, ...s vezes, (embora nem sempre) subornar os
vigilan~es, o inv lido, ou mesmo o sub-oficial, que farão vista
grossa ante sua infra‡ão a disciplina. Pode at‚ - e adora
isso - pavonear-se diante dos colegas, isto e, persuadi-los,
como se persuade a si proprio,-de que e livre, - embora
por fempo, Ilimifado. Tem necessidade de supor e de fazer
supor que sua liberdade e sua iMporfancia tˆm um alcance
infinitamente mais extenso do que parece, que ele tem liber-
dade para se divertir, para fazer barulho, ofender os outros
afˆ obriga-los a se meterem debaixo do chão, se lhe der
na veneta. ~Enfim o desgra‡ado procura convencer-se e
convencer os outros daquilo que sabe impossivel. Dai vem
provavelmente, mesmo entre os defenfos sobrios, essa feri-
dencia para a gabolice. para a temeridade, para um cOmico,
um ingenuo exagero da propria personalidade, ainda que
aquilo, para eles proprios, não passe de uma miragem. To-
dos esses prazeres, afinal, comportam um risco - mas pro-
porcionam uma ilusão de liberdade. E que e que não se da
pela liberdade? Qual o milionario, que vendo-se estrangu-
lado por um no corredio, não trocaria todos os seus milhões
por uma golfada de ar?
O pessoal da administra‡ão se espanta ...s vezes quando,
depois de varios anos de vida sossegada, um defento - no-
meado ate "monifor" gra‡as a sua boa conduta '- sem ne-
nhum pretexto plausivel, como levado pelo demonio, se poe a
fazer asneiras, a beber, a aifercar, a cometer ate mesmo cri-
mes capitais, como falta de respeito aos superiores, es-
fupro, assassinio, e+c. . . Espan+a-se, e no entanto a causa
daquela explosão subita, que ninguern esperaria de tal inƒ-
viduo, provem talvez de uma insidiosa magoa, da saudade,
de uma angustia instintiva, de uma necessidade de afirmar o
seu eu humilhado, deixando transbordar cegamente todo o
seu odio, afˆ ao paroxismo, ate ao furor, afˆ ao espasmo da
epilepsia. Assim, talvez, procede o homem que desperta
RECORDA€OES DA CASA DOS MORTOS 109 i
1
fechado vivo num caixão, esmurra a tampa do ca+afalco e
mune todas as suas for‡as para o despeda‡ar. Não reflete,
não procura convencer-se de que foclos os seus esfor‡os serão
inu+eis, oois a razão absolutamente não intervem nesses casos.
precis o ainda considerar que qualquer manifesta‡ão de per-
sonalidade, partindo de um for‡ado, 6 qualificada como
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