Casa dos mortos



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crime: pouco lhe importa, pois, a extensão do desastre cau-

sado por aquela repentina revela‡ão que faz de si proprio.

Se a dissipa‡ão, a orgia, j representam um risco, pode-se #

muito bem arriscar tudo de uma vez, ir ate ao fim, at‚ ao

crime. Basta apenas come‡ar, basta o homem embriagar-se.

Depois disso, nada mais lhe serve de barreira, nada mais o

retem. Eis porque seria melhor não levar ao desespero esse

homem. Representaria a franquilidade para todos.

Sim - como, porem, o conseguir? #

vi

O primeiro mes



(continua‡ão)

por ocasião de minha chegada ao presidio, possuia eu

algum dinheiro; mas trazia comigo, apenas, uma pe-

quena quanfia, com receio de que a confiscassem.

Por seguran‡a, colara algumas notas na encaderna‡ão do

meu Evangelho, £nico livro 16 admitido. Esse livro, com o

dinheiro escondido dentro, me fora dado em Toboisk por

alguns deportados que, exilados ia ha dezenas de anos, se

finham habituado a vor em cada "desgra‡ado" um ir-

mão (1). Ha na Siberia pessoas cuja umca preocupa‡ão e

ajudar fraternalmente os "desgra‡ados". Inquietam-se, so-

frem por sua causa como se se tratasse dos seus proprios

(1) O romancista se refere aos insurrectos de dezembro de 1825, conhecidos pelo

nQme de "d‡cembrist‡is". (N. de H. M.) #

112

DOSTOIEVSKI



a

filhos; sentem por eles uma compaixão desinfeiressada. Devo

dizer, aqu¡, algumas palavras a respeito de um encontro mei

com uma dessas pessoas. Na cidade onde ficava o nossc

presidio, morava uma viuva, Naihalia ivanovna com quem

‚ claro, nenhum de nos poderia estabelecer rela‡ões. Essa

mulher parecia haver consagrado a vida a socorner os

exilados, e, principalmenfe os for‡ados. Teria, por acaso,

sofrido na sua familia uma desgra‡a igual a nossa, algum ente

querido,Seu feria recebido castigo idˆntico? Ignoro-o, mas

sua felicidade consistia em fazer por nos tudo que lhe esfava

ao alcance. Pouco, alias, porque era paup‚rrima. E, en-

frefanto, no`s, os encarcerados, senfiamos que do oufro lado

dos muros da fortaleza vivia uma amiga fiej. Ela nos fazia

chegar noticias para nos muito imporfarifes. Quando deixei

o presidio, com destino a outra cidade, tive oporfunidade

de a visifar. Vivia num fim de rua, em casa dum parenfe

prOximo. Não era nem mo‡a nem velha, nem bonifa nem feia;

não se poderia sequer adivinhar se era infeligente ou edu-

cada. Notava-se apenas, em cada um dos seus afos, uma

bondade infinita, um desejo irresistivel, de servir, de aliviar,

de ser agradavel. Tudo isso se lia nos seus olhos bondo-

sos e meigos. Passei em sua casa quase um serão todo, junfo

com alguns companheiros. Ela nos fitava os olhos, ria quando

riamos, partilhava das nossas opiniões, e esfor‡ava-se ao m -

ximo para nos obsequiar da melhor maneira possivel. O ch

foi servido com uma merenda e alguns doces. Via-se bem

que, se possuisse ela alguns milhares de rublos, a sua maior

felicidade seria reconfortar os nossos camaradas que ficaram

no presidio, alivia-los. Na hora da despedida, deu-nos como

recorda‡ão umas cigarreiras. Ela propria os ;ecorfara em

papelão, e colara por cima - sabe Deus como! - papel

colorido, desses que cobrem os compendios de aritm‚tica

usados nas escolas (falvez houvesse realmenfe utilizado uma

arifrnefica). Em +orno, por elegancia, pusera um estreito

friso de papel dourado, comprado decerfo na loja para esse

fim. "Os senhores fumam, nSo e mesmo? Então isfo aqu¡

talvez lhes sirva," d,;s-se-nQs ela timidamente, como se pedisse

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

~ 4


.1

J

113 #



desculpas pela modicidade do presente. Alguns pre+enden

G6 o li eouv¡ dizer) que o mais elevado amor que possamo

f~` P-~C n0550 PrUrno, não passa dum imenso egoismo. Poi

não compreendo absolutamente que qualidade de egoism

poderia ditar a conduta daquela mulher!

Embora não fosse nada rico ... minha chegada ac

presidio, não me podia zangar deveras confra alguns for‡ado

que me lograram quase que no primeiro insfanfe, e volfavarr

cinicamente a pedir dinheiro emprestado segunda, ferceira E

af‚ quinfa vez. Mas, devo reconhecˆ-lo francamenfe, o que

me vexava e que todas aquelas criaturas, com suas ingenuas

asfucias, me +ornavam sem duvida por um folo e zombava

de mim precisamente porque eu lhes dera o dinheiro pela

quinta vez. Supunham que ma enganavam com suas men-

+iras, e pensavam que não era mister se consfrangarem co-

migo; e se, ao confrario, eu os houvesse repelido com dureza,

feria cerfamenfe conquistado a estima geral. Contudo, por

mais que me irritasse, não conseguia recusar: minha irrifa‡ão

provinha justamente da inquiefa‡ão que me assaltava, em

rela‡So a atitude que deveria manter para com eles. Eu

sentia, compreendia, naquele meio infeiramen+e novo para

mim, que me encontrava em plena noite, e que a vida e im-

possivel nas trevas. Era, portanto, imperioso que ma prepa-

rasse. E, para isso, eu resolvera agir fraricamenfe, deixan-

do-me guiar por meus senfimenfos ¡nfimos e minha conciencia.

Enfre+anfo, sabia fambem que tudo isso não passava dum

aforismo, a que diante de mim se apresentava a mais desco-

nhecida das experiencias pr ticas.

Assim, ao lado das pequenas preocupa‡ões referenfes

a minha instala‡ão na caserna, (preocupa‡ões a que ia me

referi e nas quais era guiado por Akim Akimi+ch), ia pos-

suindo-me uma angustia cada dia mais atroz. "A casa dos

mor+os", repetia eu, olhando, afraves do crepUsculo, para a

porta da caserna. os for‡ados que volfavam do trabalho e

que vagueavam pelo , pafio, indo e vindo dos alojamentos para

as cozinhas. Pelas atitudes e pelas caras, esfor‡ava-me por

lhes adivinhar os carac+eres. Passavam e repassavam diante #

DOSTOIEVSKI

de mim, com a testa franzida ou simulando uma ruidosa ale-

gria. (Esses dois aspectos são os mais frequentes, e podem

mesmo caraterizar o presidio). Praguejavam ou falavam

simpiesmente entre si, ou então se aTraSiavam, como para

mergulhar em medita‡5es solitarias, uns com o ar tranquilo,

calmo, outros com jeito abatido e displicente, e alguns

(afˆ mesmo Ia) com ar fafuo, o bone dum lado, a pele de

: L


carneiro atirada a um ombro, o olhar insolente e escarn ri o,

o sorriso cinicamente zombeteiro. "Agora, e este o meu

ambiente, e esta a minha sociedade, medifava; quer eu o

queira quer não, e aqu¡ que devo viver." Tinha vontade de

interrogar Akim Akim¡+ch a respeito deles. Gostava muito

de tomar cha em sua companhia, afim de me sentir menos s0.

Diga-se de passagem, durante esses primeiros dias o cha foi

praticamente a minha £nica alimenta‡ão. Akinn Akimifch

não recusava nunca os convites, e preparava, ele proprio,

o misero samovar de lata, utensilio improvisado que M. me

emprestara. Ado‡ava em geral um copo de ch (pois Akinn

ate copos possuia!) em silencio, cerimoniosamente, depois be.

bia-o dum trago, agradecia, e imediatamente voltava ... con-

fec‡ão do meu cobertor. Mas o que eu tinha necessidade

de saber, ele não me podia comunicar; não compreendia

por que me interessava tanto pelo cara+er dos for‡ados

que nos cercavam: escu+ava-me com um sorriso finorio, que

ainda hoje me recordo. . . "Não, não devo perguntar nada;

cada um tem que fazer sozinho as suas experiencias", refle-

+ia eu.


No quarto dia, do mesmo modo como na manhã em que

me trocaram a grilhefa, os for‡ados, bem cedinho, se reu-

niram em duas fileiras no pafio, em frente ao corpo da

.guarda, perto da porta de entrada. Diante e por tiras deles

esfendiam-se duas ordens de soldados, de armas embaladas,

baionetas caladas. Qualquer soldado +em direito de atirar

num defenfo, se este faz men‡ão de se evadir. Em compen-

sa‡ão, fica responsavel pelo firo, se não o deflagrou em caso

de absoluta necessidade. Acontece o mesmo nos motins dos

for‡ados; mas quem ousaria fugir na frente de todo o mundo?

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

115


Um oficial de engenharia, diretor dos trabalhos, apa-

receu em companhia de alguns sub-oficiais e sapadores da

mesma arma, designados como moni+ores. Fez-se a cha-

mada. Os de+en+os que trabalhavam na oficina de cos-

tura partiram antes dos outros: esses alfaiates do presidio #

nao dependiam da engenharia. Depois deles, foram-se

os que tinham oficio, e afinal chegou a vez dos simples ta-

refeiros, uns vinte homens mais ou menos, entre os quais

me encontrava. Aftas da fortaleza, sobre o rio gelado,

havia dois velhos barcos (propriedade do governo), que era

preciso desmontar para lhes aproveitar pelo menos a ma-

deira. Alias, esse material não valia nada, pois a madeira

era barafissima na nossa cidade, rodeada de imensas fio-

restas. Mandavam para Ia os for‡ados umcamente para

os impedir de cruzar os bra‡os; e, como eles o compreen-

diam muito bem, empreendiam sempre essa tarefa com mo-

leza e apatia. Sucedia cousa muito diversa quando o +ra-

balho tinha uma razão, uma finalidade, sobretudo quando

os nossos homens conseguiam obter uma tarefa de+ermi-

nada! Imediatamente se animavam. e, embora não deves-

sem receber nenhum proven+o pelo labor feito, pude cons-

+atar quanto se esfor‡avam para o concluir depressa e

bem: e que entrava em jogo o seu amor-proprio- Mas

nessa Iqbu+a a que me refiro, feita mais por formalidade que

-por necessidade, seria dificil pedir uma tarefa: era preciso

portanto lidar ate o rufar do tambor, que, as onze horas da

manhã, anunciava a volta.

O nosso grupo inteiro se dirigiu para a margem, num

filinfar de grilhetas, porque elas. embora escondidas sob a

roupa, produ7iam a cada passo um som claro e breve. Dois

ou +rˆs homens foram apanhar no deposito os ufensilios

indispensaveis. Eu caminhava com eles e me sentia mais

animado: enfim, ia ver com meus olhos em que consistiam

os trabalhos for‡ados; e como seria que eu, que jamais

utilizara al minhas mãos no trabalho, iria me sair da em-

preitada? #

116

DO,5TO I EVSK I



Recordo o.,9- mais infimos detalhes dessa manhã. Em

caminho encontramos um sujeito de barbicha, q!je se de-

me

teve e rgulhou a mão no bolso. Imediatamente um de-



tento se destacou do grupo, tirou o gorro, recebeu a es-

mola - cinco copeques, - e voltou les+amente ao seu

lugar. O homem se persignou e continuou o caminho. Na-

quela mesma manhã os cinco copeques foram gastos na

compra de kalafchi, partilhados igualmente entre todos.

No nosso grupo. uns se mostravam sombrios, facitur-

nos, outros indiferentes, inertes, outros conversavam apa-

ficamenfe. Um de nos, ate, francamente elegre, cantava

e dansava em caminho, fazendo a cada salto ressoarem os

ferros. Era aquele mesmo preso atarracado que na manhã

de minha chegada ao presidio brigara com o outro for‡ado

que pretendia ser um 11(agari. Chamava-se Skura+ov, e en-

toava uma cantiga agradavel, da qual , me recordo do

estribilho:

"Eu estava no moinho

"quando me casaram

"sem me consultar".

SO lhe faltava uma balalaica.

Seu ex+raordinario bom humor teve o condão de irritar

alguns dos companheiros, que deram largas a sua indigna‡ão.

- Para com esses lafidos! rosnou um for‡ado que

não tinha nada com a hisforia.

- O lobo s6 sabe uma cantiga e, assim mesmo, ele

a imita! Não e a-+oa que vem de Tula! disse um dos mal-

humorados com sotaque da Ucrania.

- Tenho muita honra em ser de Tula, respondeu ime-

dia+amen+e Skura+ov. Mas voces de Polfava cheiram a

galuch¡lti - ainda +em a goela cheia de galuchkR (2)

- (2) 'Os habitantes de Tula são acoimados de ladrões; devem sem d£vida essa

reputa‡ão aos operarios (recrutados ... for‡a por toda parte) das c‚lebres forjas fun-

dadas por Pedro o Grande na capital da provincia.

Os de Poltava são extremamente gulosos de um bolo de carne a que chamam

galuchiki, muito semelhante ...s nossas alm"ndegas.

São muito comuns essas zombarias entre os naturais das diversas provincias. (N.

de H. M.)

A DOS MORTOS

RECORDA€õES DA CAS

117


#

- Mentiroso! E tu, sabes a que e que cheira o teu

focinho? Decerto cheiravas os teus tamancos!

- E agora o diabo Q ceva com balas de rifle! acres-

cen+ou um terceiro.

- Vou contar a verdade a voces, rapazes, responde

Skuratov. Fui um menir·o mimado...

E deu um leve suspiro, para significar que a sua ecluca-

‡ao efeminada o fazia sofrer. Depois, dirigindo-se a todos,

continuou:

- Se bem me lembro, fui educado muito bem; criei-me

com "mã"e melada" e " descom porta". (Skurafov estropia-

va deliberadamen+e as palavras "marmelada" e "compo+a").

Hoje, meus irmãos tˆm estabelecimento em Moscou, vendem

pasteis de brisa e es+So riqu¡ssimos.

- E tu, que e que vendias?

- Vendia de tudo. Quando recebi os primeiros du-

zentos ...

- RuUos? Ser possivel? in+orrompeu~ um -curi'õso,

saltando quase, ao ver falar em quantia tão grande.

- Não, mano velho, não foram duzentos rublos, foram

duzentos a‡oites. Ah, Luka, Luka!

- Dobra a lingua-, vˆ Ia se me podes chamar de Lu¡‡a;

chamo-me Lu¡‡& Kusmifch, replicou ofendido um preso pe-

queno e magro, de nariz pontudo.

-s- Sim, Luka Kusmifch, e que +e leve o diaboi ...

- Sim, Luka Kusmifch, mas tu me deves chamar "+io

Kusmi+ch".

- Diabos +e carreguem a fi e ao teu flo! Não adiar+a

nada +e contar cousa nenhuma. E eu que estava sendo deli-

cado contigo! E então pessoal, não pude demorar muito

Umpo em Moscou; eles me obsequiaram gentilmente com

quinze a‡oites de knuf e me mandaram para ca. Então ...

- Que e que tinhas feito? observou um defento que

ouvia com aten‡ão.

- Não fa‡as quarentena, não bebas no gargalo, não

te metas a engra‡ado .............3

E, por isso, amigos, n o me era

b #

118


_DOSTOIEVSKI

possivel fazer fortuna em Moscou. E eu que queria tanto

enriquecer! Nem posso dizer quanta vontade Enha!

Muitos se puseram a rir. Skurafov era uma dessas cria-

turas bem humoradas, desses gaiatos que acabam Obrigando

a rir todo o mundo, ate os mais tristes, e em troca não re-

cebem senão desaforos. Pertencia a um tipo de for‡ado

nofavel e muito singular, do qual ~alvez ainda me ocupe.

- Sim, e agora podes ser esfolado como uma zibelina,

retrucou Lu¡‡a Kusm¡fch. So tua roupa dava bem uns cem

rublos!

Skura+ov usava com efeito a n---lgnisgasta, a mais remen-



ciacia, a mais rapacia (Ias peles de carneiro; de todos os

lados lhe pendiam farrapos. Ele olhou-a de alto a baixo,

com ar indiferente porem atento:

- E verdade, concordou, mas em compensa‡ão minha

cabe‡a vale em ouro o que pasal Quando me despedi de

Moscou, o que ainda me consolou foi ter minha preciosa

cabe‡a em cima dos ombros. Adeus, Moscou, vivam teus

banhos turcos e feus bons ares, viva ate a surra que levei!

Quanto a minha pele de carneiro, paizinho, se não a olhares

ela não te doera nos olhos!

- Então a gente s¢ pode olhar para fua linda cabe‡a?

- E se ao menos a cabe‡a fosse dele! debicou Luka'

Kusmitch. Foi-lhe dada de esmola quando o comboio pas-

sou por Tiumene.

- Escuta , Skurafov. tinhas ao menos um oficio?

- Oficio, ele? Era guia de cego, disse um dos irri-

fados. E enquanto o cego cantava os benditos, ele unhava

as codeas que lhe punham no prato!

Com efeito, respondeu Skura+ov que não ligara m-

porfancia a maleclicencia do outro. ainda tentei cosfurar bo-

tas, entretanto não passei do primeiro par!

- O que? E te compraram esse par?

- Decerto! Passei-o a um sujeito que não respeitava

pai nem mãe, nem tinha fernor de Deus ... mas foi casfi-

gado: comprou-me o par de botas!

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

119

Romperam risadas em redor de Skuratov.



- Aqui, uma vez, -experimentei de novo ser sapateiro,

continuou Skurafov com imperfurbavel calma. Remendei as #

botas do lenen+e Sfepan Fioclorovi+ch Pomorfsev.

- E ele ficou satisfeito?

- Infelizmente não! Disse-me os piores desaforos e ain-

me deu uma joelhada no lombo... Ficou uma fera!

meus cordeirinhos, que desgosto tem sido esta droga

da

Ai,



da minha vida!

"Depois de um bom momento

"O marido de Akulina

"Apareceu no patio...

Cantarolava de novo, batendo o facão em terra e sal-

fitando.


- Oh, que idiofal rosnou o ucraniano. que caminhava

a meu lado, lan‡ando para Skura+ov um olhar de oclienfo

desprezo.

- Não vale nada, disse outro em fom definitivo.

Não compreendi por que eles tinham raiva de Skura+ov,

g%rem ia tivera fempo de observar que, ali, os homens alegres

ozavam de um desprezo geral. O odio do ucraniano e dos

outros parecia-me provir de algum ressentimento. Mas es-

fava enganado. Tinham-lhe raiva porque se portava mal,

porque carecia daquele ar de falsa dignidade' do qual se

confagiam todos os for‡ados, e que os impregnava ate a

afg+a‡ão. Em suma, segundo a expressão deles, Skura+ov

"não valia nada". Entretanto, nem todos os engra‡ados eram

tratados como Skurafov e mais alguns. Mais de um, com

efeito, se fazia respeitar; enquanto o bom rapaz, sem ma-

licia, so colhia desdens, o gaiato que mosfrava os dentes

e não consentia que ninguem lhe pisasse o pe impunha res-

peito. Havia precisamenfe um engra‡ado desse Ultimo fei-

fio no nosso grupo, todavia so o conheci sob seu verdadeiro

aspecto um pouco mais +arde. Era um camarada de ex-

fer¡or bem agradavel, com uma grande verruga na face,

e um rosto delicado e bonito, mas de expressSo muito co- #

120 DOSTOIEVSKI RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS 121 , 1

mica. Chamavam-no o "Explorador" por ter outrora ser-

vido nos batalhões de engenharia. Pertencia a se‡ão es-

pecial. Ainda falarei a seu respeito.

Co-n+udo rem todos os for‡ados "ser-lcs11 - er-~m +-go

expansivos nem tão irri+adi‡os quanto o homem da Ucra-

nia. Alguns procuravam conquistar a proeminencia por sua

habilidade no trabalho, pelo carafer, pela in+eligencia, pelo

espirito. A muitos deles, com efeito, nSo faltava nem in-

teligencia nem energ;a, para atingirem o fim visado, - isto

‚, renome e uma grande influencia moral entre os colegas.

Essas especies de virfuoses eram muitas vezes inimigos fi-

gadeis uns dos cu¡ios, e cada um sozinho criava ao seu

redor muitos invejosos. Olhavam para os simples for‡ados

do alto da sua impor+ancia, e não sem desprezo; evitavam

brigw inuteis, eram muito bem cotados, e de certo modo

dirigiam os trabalhos. Nenhum deles discutiria com os ou-

fros por causa de uma carifiga; não se rebai,,‡avam a isso.

Comigo, esses principes se mostravam de uma amabilidade

absoluta, durante todo o periodo da minha defen‡ão; mas

fambem lac"nicos, - ques+So de dignidade, certamente. Te-

rei que fai,,, dz3 novo sobre esses, aincia.

Chegamos a margem. Em baixo, no rio, o velho barco

a demolir estava preso no gelo. Do outro lado do rio, a

estepe azulada se estirava, vazia e triste. Pensei que todo

o mundo se iria atirar ao trabalho, todavia ninguem cuidava

nisso. Alguns se sentaram numas vigas que por Ia rolavam;

quase todos tiravam da bota uma +abaqueira - cheia da-

quele espesso fumo siberiano que era comprado em folhas,

a +¡rinia copeques a libra, - e um cachimbo curto de ma-

deira de salgueiro feito no proprio presidio. Puseram-se a

fumar, os soldados da escolta nos rodearam, em circulo, e

come‡aram a sua vigilancia com ar en+ediado.

- Que ideia, desmanchar esse barco! resmungou um

dos gales, sem se dirigir a ninquem. Sera que precisam de

madeira?


- Decerto quem se lembrou disso foi alguem que não

+em medo de nos, retrucou um outro.

- Para onde, diabo, irão aqueles mujiclues? indagou

o que falara em primeiro lugar, sem mais pensar na sua

pergunta e sem escutar a respos+a, apontando com o dedo,

ao longe, um grupo de gen+e que caminhava em f*,Ia por

sobre a neve imaculada. Todos, sem pressa, se volveram

para o lado indicado, e, por desfasfio, cobriram de apodos

os muiiques. Um dos passantes caminhava de modo muito

engra‡ado, afastando os bra‡os e inclinando a cabe‡a co-

berta com um alto gorro de pele, redondo como um broa.

- Olha, compadre, como ‚ que o 'mano Petrovitch

caminha! pilheriou um outro, arremedando a fala dos mu- #

jiclues.


Coisa curiosa, embora metade deles fosse proveniente

da aldeias, todos os for‡ados olhavam por cima do ombro

os camponeses.

- Olha o de+ras, não parece que esta plantando nabos?

- Aquele gordo? Esta com a moleira pesada: de-

certo tem dinheiro demais!

Todos ~desataram a rir, mas com um riso arrastado,

sem, alegria. Nesse momento apareceu uma vendedora de

kalafthi, alegre e esperta.

Compraram-lhe os cinco copeques que o homem dera

de esmolae dividiram a compra com toda a equidade.

O rapaz que revendia os kalafchi na caserna adquiriu

duas duzias e exigiu trˆs kalaMbi de comissão, em vez dos

dois que habitualmente recebia. ,N mulher, porem, não lhe

deu ouvidos.

- Então, tu fambem vendes aquilo?

- Aquilo o que?

- Aquilo que rato n o rOi?

- (Espera senvergonha! respondeu a vendedora com

uma gargalhada.

Enfim apareceu, com uma bengala ... mão, o nosso sub-

oficial encarregado -dos trabalhos.

- Que ‚ que es+So esperando? Comecem!

- Bem, Ivan ~veifch, dˆ ... gente uma tarefa! disse

um dos monifores, erguendo-se lentamente do seu lugar.

10 #


22 DOSTOIEVSKI

- Não podiam pedir tarefa mais cedo? A tarefa

agora e desmontar o barco.dos e caminharam sem pres

Ergueram-se afinal os for‡a os mon*lores

sa para o leito do rio. Apareceram no grupo 1

- que o eram pelo menos no nome. Demonstraram que

não se devia deswnchar o barco a torto e a direito, mas

tanto quanfo fosse possivel conservar as fabuas, e, sobre-

tudo, as costelas verticais, fixas por meio de cavilhas em

todo o comprimento do barco - trabalho longo e fastidicso.

- Em primeiro lugar, arranquem-me essa viga pequena!

Vamos, rapazes! propOs um dos for‡ados, quieto, pouco con-


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