"Vou para qualquer lugar onde fe mandarem. Deixo tudo
por til" Eu ia pensava afe em acabar com a vida, tanta pena
que ela me clava; mas, depois dessas duas semanas, me pren-
deram O velhoe a fia cor¡luiaram-se e me denunciaram."
- Escute, Bakluchine, interrompi. Um caso des-
ses podia lhe arranjar uns dez a doze anos, na se‡ão civil.
Contudo, vocˆ es+6 na se‡ão especial. Por que?
- Isso ia e outra hisforia! Quando fui a conselho, de
guerra, o capitão me disse uma por‡3o de palavrões diante
dos juizes. Eu não pude afurar aquilo, e grifei: "Por que
me insultas desse modo? Onde e que pensas que estas?
Não esf6s vendo o "espelho da justi‡a" (6) na tua frente, ani-
mal?" Junfaram uma hisforia com a ouira, pequei quatro
mil varadas, e a se‡ão -especial. Mas quando me !evaram
para sofrer o castigo, o capifSo fambem estava Ia. Eu
sofr¡ os a‡oites. Ele, porem, foi degradado e mandado para
o C6ucaso como simples pra‡a. Ate logo, A!enxandr Pe+ro-
vi+ch, não falfe ao nosso teatro.
(6) Na mesa de todos os tribunais russos havia um "espelho da justi‡a" (zerha-
to) - prisma de vidro triangular encimado por uma aguia e em cujas trˆs faces erarn
colados trˆs Lkazes de Pedro o Grande, referentes ao processo e aos direitos dos
cidad os. (N. de H. M.) #
Natal
Enfim, chegou o Nˆ£al. Desde as v‚speras os presos
quase não trabalhavam; os alfaiates e outros oficiais
foram para as oficinas porem os demais se reuniram para
a chamada e voltaram quase imediatamente, de um em um
ou aos grupos. Depois da rafei‡ão, ninguem se mexeu mais.
AUs, desde pela manhã a maioria dos defentos não se ocupa-
va senão dos seus proprios negocios. Uns, conspiravam
a proposito do vodca que era preciso fazer entrar, ou en-
comendar ainda. Outros, pediam permissão para visitar
amigos ou amigas; algun,% recolhiam para as festas as pa-
quenas quantias que haviam ganho com o seu trabalho parti-
cular. Bakiuchine e a turma encarregada do teatro procu-
ravam convencer alguns indecisos, sobretudo entre as orde-
nan‡as dos oficiais. que tinham possibilidade de lhes err~- #
178 DOSTOIEVSKI
prestar fraios. Alguns iam e vinham com ar absorto e apres-
sado; mas apenas porque viam os outros absortos e apressa-
dos; não tinham nenhum dinheiro em perspectiva, todavia com-
porfavam-se como se o esperassem das mãos dos devedores.
Em resumo, todos aguardavam o dia seguinte como um acon-
fecimento extraordinario. A tarde, os invalidos voltaram
da cidade com as encomendas dos presos; traziam varios co-
mesfiveis, carne, leitões e a+‚ gansos. Alguns dos nossos,
entre os mais simples e os mais econ"micos, ate mesmo aque-
les que durante o ano inteiro iam juntando um a um os seus
1 copeques, senfiam-se obrigado- a afrouxar os cordões da
bolsa, e a comemorar condignar.,` rife a festa. O Natal repre-
sentava para os for‡ados uma solenidade de que ninguem
os poderia privar, que a lei lhes reconhecia formalmente. Era
um dos +rˆs dias do ano em que ninguem tinha o direito de
os fazer trabalhar.
Afinal, poda-se conceber quanfas recorda‡ões agitavam
as almas daqueles r‚probos nas proximidades do Natal! A
gente do povo cultiva, desde a infancia, o respeito pelas
festas solenes, durante as quais se abandona a rude !abufa
e congregam-se as reuniões de familia. No presidio, onde
a comemora‡ão das festas não poderia provocar senão sau-
dade, esse culto assumia um aspecto imponente. SO alguns
defentos bebiam, e maioria se mantinha grave, como que
preocupada, apesar da sua absoluta desocupa‡ão. Os pro-
prios beberrões se -esfor‡avam por manter um ar serio. As
-risadas pareciam proibidas. Reinava em todo o presidio uma
atmosfera de susceptibilidade, de infoleranc¡a: e, quem, mes-
mo involuntariameriM, perturbava a compostura geral, era
chamado ... ordem por gritos, por injurias; zangavam-se contra
ele como se faltasse ao respeito ... propria festa. Esse esta-
do de espiri+o era tão comovenfe quanto curioso. Mem
da venera‡ão intr¡nseca que sente nesse grande dia, o for-
‡ado se apercebe inconcienfemen+e de que a sua coparfi-
cipa‡ão na festa o poe em comunhão com o resto do mundo,
a que, por consequencia, j não ‚ e!e um r‚probo, um de-
. RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS
179
ca¡do, um farrapo sem dono, mas, embora no fundo do pre-
sidio, ainda e um homem. C;gal,
~i o
vis¡vel, compreensivel.
O proprio Akim Akim¡fch se preparava ativamente.
Não tinha recorda‡ões de familia, pois se criara orfão em
casa de estranhos e, aos quinze anos, iniciara os duros fraba-
lhos do servi‡o militar. Sua vida não contara nunca ale- #
grias especiais, porque -ele a passara na regularidade, na
rotina, no receio de infringir qualquer infimo dever que lhe
era imposto. Não era muito religioso, uma vez que o for-
malismo lhe absorvera todos os dons humanos, todas as
paixões, todos os desejos, bons e maus. Preparava-se por-
tanto, sem nenhum sentimento febril, sem emo‡ão, sem a
minima especie de saudade. Mas tinha ali excelente opor-
funidade para aplicar sua met¢dica pontualidade nos deve-
res impostos por uma festa de tradi‡ão indiscutivel. Alias,
Akim Akimitch não gostava de refletir. A'imporfancia dos
fatos lhe deixava o cerebro em repouso; bastava que uma
ordem lhe fosse dada para a cumprir com religiosidade e mi-
nucia. Se no dia seguinte lhe dessem nova ordem, inteira-
mente antag"nica a da vespera, obedeceria com a mesma
docilidade, o mesmo cuidado. Certa vez, uma unica vez
na sua vida, agira por sua propria cabe‡a, e aquilo o levara
ao presidio. A li‡ão nao se perdera. Por mais incapaz
que fosse ele de compreender em que consistira o seu crime,
tirara, daquela aventura, uma regra salutar: não raciocinar
nunca, porque raciocinar não era "negocio" seu. Devoto
cego das f¢rmulas, considerava com antecipado respeito -o
leitão que recheara com centeio, e que, com suas proprias
maos, assara no forno, - pois ate cozinhar sabia. Não o con-
siderava um simples leitão que se pode em qualquer tempo
comprar e assar, mas um animal criado especialmente para
festejar o Natal. Decerfo, habituado desde a infancia a ver
figurar um leitão na ceia do Natal, concluira que esse animal
ora indispensavel ... celebra‡ão do dia; estou convencido de
que se Akim Akimitch não pudesse comer leitão na noite de
~- i t2, 2 aquL.-l eird #
ISO
POSTOIEVSKI
festas, aquele dever não cumprido lhe daria remorsos para o
resto da vida. Trajava afˆ ent~o um casaco velho e umas
cal‡as que, apesar de todos os cuidadosos remendos, tinham
chegado ao ultimo grau de usura. Descobr¡ que ia h6 qua-
+ro meses ele guardava preciosamente dobrado no baU o
uniforme novo, com o fim Unico de o estrear no Natal. Na
vespera desse grande dja, Akim o tirou do bau, estendeu-o,
olhou-o, escovou-o, assoprou-o, examinou-o costura por cos-
+ura, e afinal o experimentou, para ver como ficava. Cons-
fa+ou que ficava bem, que estava decente, que os colchetes
fechavam at‚ em cima, que o colarinho, duro como carto-
l~na, lhe mantinha o queixo elevado. O frai\ '.,iha uma certa
linha militar no corte, e Akim Akim+ch, com um meio sorriso
de satisfa‡ão, virava-se e revirava-se lestamen+e diante do
seu espelhinho, cuja moldura, ia ha muito tempo, numa hora
de folga, ele proprio dourara. So um colchete do colarinho
não parecia Ia muito bem pregado. Akim Akimitch o des-
cobriu e resolveu muda-lo de lugar. Depois de repregar o
colchete, experimentou de novo o casaco e viu que estava
irrepreensivel. Tranquilizado, então, dobrou a roupa e +or-
nou a guarda-la cuidadosamente no ba£. Estava com a ca-
be‡a bem raspada: todavia, depois de severo exame ao espe-
lho, observou que o alto do cranio não se mostrava inteira-
mente liso: avistavam-se alguns cabelos um pouco crescidos:
foi imediatamente procurar o "maior" para raspar a cabe‡a
direito, de acordo com o regulamento. Ninguem, decerto,
o iria revistar no dia seguinte, mas ele procedia assim por
alivio de conciencia, afim de cumprir seus deveres para com
a festa. Desde crian‡a trazia gravada na alma a venera‡ão
pelo botão, os alarriares, as dragonas: seu espirifo estava preso
a essas marcas externas do dever, e as cul+uava no ¡nfimo
como a imagem da mais perfeita -elegancia que pode ser
cobi‡ada por um homem de bom-+om. Depois de proceder
a todas essas verifica‡ões, na sua qualidade de monifor, man-
dou trazer palha e fiscalizou a sua me+6dica disposi‡ão sobre
o chão. Procedia-se a mesma opera‡ão em todos os outros
RECORDA€õES DA CAU DOS MORTOS
181
alojamentos. Não sei por que, quando chegava o Natal,
punham palha no chão. Acabados os trabalhos, Akim Aki-
mifch rezou as suas ora‡r~Ses, es+ii-cu-se na farimba e ador-
meceu imediatamente, no so-no suave da infancia, para des-
perfar o mais cedo possivel no dia seguinte. Foi, alias, o
que tambem fizeram os demais detenfos. Em todos os alo- #
jamentos foi-se dormir muito mais cedo que nos outros dias.
Os trabalhos comuns de serão foram abandoriados: quanto
ao maidane, nem se pensava nisso. Cada um vivia na ex-
pecfafiva do dia seguinte.
Enfim, o dia chegou. Muito cedo, antes da madrugada,
bateu-se a alvorada, abriram-se as casernas, e o sub-c,ficial
que veio fazer a chamada nos desejou boas-festas. E em tom
arriavel, lhe refribuimos os votos. Acabadas as rezas, Akim
it
Akim' ch e varios outros se precipitaram para a cozinha, afim
de vigiar o preparo do seu ganso ou do seu leitão. Na som-
bra, atrav‚s das janelinhas tapadas pela neve e pelo gelo, viam-
se luzir os seis fogões das cozinhas, acesos desde a madru-
gada. No patio escuro passavam os defen+os, com o ca-
pofe atirado ao ombro, afraidos todos pelos fogões. Al-
guns - em pequeno n£mero, porem - ia tinham tido tempo
para visitar os bofequineiros. Eram os mais impacientes.
A maioria se portava com dignidade, com decencia, muito
melhor que de h6bifo. Não se ouvia ninguem a praguejar
ou a brigar, como sempre. Todos compreendiam a gran-
cleza, a solenidade da'festa. Alguns iam ...s outras casernas,
para dar boas-festas aos amigos e conhecidos; senfia-se nas
vozes daqueles homens um sentimento que parecia muito com
amizade. Diga-se de passagem que os for‡ados rigo se
afei‡oam a ninguem; e muito raro ver algum fornar-se amigo
de outro. A amizade quase n"o existia entre ri~s-, as rela-
o
‡ões enf re os defenfos---nanfinham-se sempre 6speras, secas;
ora esse o tom adotado e vigorante, praticamente sem ex-
ce‡ões.
Quando por minha vez sai da caserna, o dia come‡ava
a nascer: as estrelas empalideciam, e uma leve nebIlina con- #
DOSTOIEVSKI
~e erguendo da +erra. A fuma‡a sa¡a am autˆn-
~is pelas chamines das cozinhas. Os poucos com-
Roffilro que e,-,C
me dar boas-festas. E eu agracteci e retribui os bons votos.
Alguns ma dirigiam a palavra pe~a primeira vez.
Na poria das cozinhas encontrei um defenfo da se‡ão
milifar, com a pele de carneiro atirada ao ombro. Do meio
do pafio, avistando-me, ele gritara: "Alexandr Pe+rovi+ch!
Akxandr Pe+rovitch!" E se precipitara para as cozinhas.
Detive-me para o esperar. Era um rapaz de cara neclonda,
olhar calmo, muito pouco conversador; nunca me dirigira c~
palavra nem me prestara a minima ateri‡ão: e eu não lhe sa-
bia sequer o nome. Chegou, afogueado, resfolegando, e
ficou parado diante de mim, sc( - do. e fi+ando-me com os
olhos es+Upidos.
- Que deseja? pergun+ei-lhe, não sem espanto, vendo
que ele não se mexia e me olhava sem encontrar palavras.
Mas ... e ... a festa ... gaguejou afinal, e, com
preendendo que nada mais tinha 6 me dizer, deu meia volfa
e entrou na cozinha.
Farei notar aqui que desde esse dia ate ao fim da mi-
nha deten‡ão não nos enconframos praticamente nunca mais.
Nas cozinhas, junto aos fo98es aquecidos ate ao rubro.
um verdadeiro formigueiro se agitava. Cada um +ornava
conta do que era seu, enquanfo os cozinheiros preparavam
a comida geral, porque nesse dia a hora das refei‡oas
era adiantada. - Entretanto, ninguem se senfava a mesa,
apesar dos desejos de alguns. Esperava-se o padre, pois
o jejum s¢ deveria terminar depois da sua visita. O sol
ainda não clareara de todo, quando no por+So de entrada
soou o grifo do cabo de servi‡o, chamando os cozinheiros.
O mesmo grifo ecoou a todo instante, durante perto de duas
horas; chamava para que se recebessem as esmolas man-
dadas de foclos os canfos da cidade. Enviavam em quan-
+idades -enormes kala+chi, pães, pas+eis de queijo, frifuras,
doces de toda especie. Penso que n3o havia na cidade
RECORDA€OES DA CASA DOS MORTOS
183
~,I. uma vendeira, uma burguesa que não mandasse, como fes-
fas, uma esmola para os "desgra‡ados". Algumas esmoias
eram opulenfas, como nor exempilo r~9~ c!,~ f!nr d-~ f,~Ir-¡rk-
,outras mesquinhas, um pãozinho redondo de dois copeques
,, u uma forta lambuzada de creme azedo: aquilo era o pre-
,,,senie do pobre ao pobre; mas o doador gastara nele o seir
Ifimo copeque. Recebia-se tudo com o mesmo reconhe-
i 1 rr!enfo, sem fazer disfin‡Ses entre os donafivos ou entre #
res. Os de+enfos que recebiam esmolas tiravam o
clinavam-se para saudar os doadores desejando-lhes
s-fesfas, e levavam para as cozinhas o que lhes havia sido
fregue- Quando reuniam grandes montes de pão, charria-
m-se os monifores, e eles os repartiam em partes iguais,
1 1 nfre focios os alojamentos. A partilha não provocava brigas
m descomposfuras; fazia-se honesta, equi+afivamenfe. Mim
,,,kimifch, ajudado por outro preso, nos distribuia o quinh3o
nosso alojamento; dividiam-no com suas proprias mãos e
! irifregavam a cada um a sua parte. Não h¢uve a m¡nima
ma‡ão; cada um se considerava safisfeifo, nenhum sentia
a, nenhum pensava que as esmolas haviam sido escondidas
as sem igualdade.
do terminou os seus preparativos de cozinha, Akim
vesfiu-se com ‡uidado e gravidade, sem deixar
do o menor colchete; depois foi rezar, ro que de-
as+an+e tempo. JEram sobretudo os mais velhos
‚ desempenhavam os seus daveres religiosos. Enfre os
o 1
,~vens, muitos se contentavam em fazer o sinal da cruz, ao
levanfarem, mesmo nos dias de fesfa. Acabada a reza,
im Akimitch me procurou, e me deu as boas-fesiras com
certa gravidade. Convidei-o a +ornar ch e ele me con-
41dou a comer do seu leitão. Um pouco depois, Pe+rov
:i ara mim para me oferecer tambem seus bons votos.
a
iS fer bebido; um pouco sem f"lego por causa da cor-
o me falou muito, ficou' alguns segundos parado de-
e mim. como se esperasse alguma cousa, e me deixou
rapidamenfe para correr af‚ a cozinha. Nesse ¡nterim, na
t #
184
DOSTOIEVSKI
r
prisão militar, faziam-se os preparativos para a recep‡ão do
pope. Essa caserna não era construida de modo igual ...s
outras-, a tarimba era ao comprido da parede, em vez de fi-
car no meio, como nas demais. Era, pois, a unica que não
tinha o centro ocupado. Tinham-na arrumado assim para
os casos em que houvesse necessidade de reunir os for‡ados.
Puseram no meio da sala uma mesinha, coberta com um pano
branco; depois, colocaram em cima um icone, e acendeu-se
uma lamparina. Enfim, entrou o pope, carregando a cruz e
agua benta: ap¢s rezar e cantar diante da imagem santa, de-
frontou os de+en+os, que, com sentida compun‡ão, desfi-
laram perante ele afim de beijarem a cruz O pope afra-
yessou em seguida todas as casernas, e as dspergindo de
agua benta. Na cozinha, felicifou-nos pelo nosso pão, que.
era gabado ate na cidade; imediatamente lhe oferecemos
dois pSezinhos que acabavam de sair do forno e encarrega-
mos um dos invalidos de os levar ate a casa do pope. E
despedimo-nos da cruz com o mesmo respeito com que a
baviamos acolhido. Então, quase no mesmo instante, apa-
receram o maior e o governador. Este, que era querido por
todo o mundo, visitou os alojamentos em companhia do ma-
lor, desejou feliz Natal aos for‡ados, passou pela cozinha e
provou a sopa de couves, suculenta naquele dia, porque
tinham posto nela cerca de uma libra de carne por de-
tento. Ademais, um cozinhado de milho, onde a manteiga
não fora poupada, fervia no fogo. Depois de levar ... porta
o governador, o maior deu o sinal para a refei‡ão, mas os
presos se esfor‡avam por não lhe ficar sob as vistas; te-
miam o olhar ocliento que, por tr s dos ¢culos, passeava ...
direita e a esquerda, procurando, ate mesmo naquele mo-
mento, uma desordem a reprimir ou um culpado a castigar.
Senfamo-nos a mesa. O leitão de Akim Akimitch es-
+ava otimamente assado. Não sei como foi que isso se deu,
mas cinco minutos não tinham decorrido depois da partida
do maior, quando descobrimos que grande numero de ho-
mens j estava bˆbedo - e, entretanto, na presen‡a do
t #
RECOR,DA€õES DA CASA DOS MORTOS
187
,," ningiuem parecia ter tomado nada. Muitas caras fi-
cavammei, nos e lustrosas; apareceu uma balalaica; o polaco
do violino fora, contratado para todo o dia, e seguia um
40ão, arranhando alegres m£sicas de dansa. A conversa
~-se faz mais animada,.mais ruidosa; contudo a refei‡ão se aca-
e,
mn grande tumulto. Todos, estavam fartos. A maio-
· "'~`
-da dos velhos, -dos mais serios,, foi fogo se deitar; o mesmo
fez'Aki;~ Akimifch, considerando decerto que nas grandes
sesta ‚-de rigor. O velho raskoiniki de Sfaradubov
u um pouco, depois esfirou-se na estufa, abriu o
pâs-se a rezar: ficou assim, sem se interromper, af4 ~: ._* noite fechar de todo. Era-lhe penoso o espet culo da-
"verq(>nha" (assim designava a embriaguez colefiva
,~, -- do presos). Os circassianos foram todos sentar-se na en~
frada, ‚ contemplavam com curiosa repugnancia os despau-
terios dos bebedos. Enconfrei-me com Nurra: "Iaman! iarnan!"
~-~,,w , (Mal!'mal!) disse-me ele abanando a cabe‡a com honesta in-
di o.
igna‡a "Oh, iamant Alah vai se zangar!" Isai Fomifch,
com ar provocante e obstinado,' acendeu uma vela e se pos a
trabalhar, para tornar bem patente que nada tinha com aque-
Nos cantos, organizavam-se partidas de jogo; não
Ia festa.
se temiam os inv lidos-, entretanto, por causa do sub-c,ficial,
que ali s fechava os olhos, puseram-se sentinelas a entrada.
,0 oficial de guarda apareceu fres vezes fazendo a ronda.
A sua chegada escondiam-se os bebedos, desapareciam os
maidanes - e ele proprio parecia resolvido a não an~ergar
as Leves infra‡ões ao regulamento. Em dia de festa, a em-
briaguez não era *considerada crime. Pouco a pouco, au-
~ava¡ a anima‡ão e come‡avam as brigas. Mas como o
maior n£mero se conservara sobrio, não faltava quem to-
masse conta dos ebrios. Estes, realmente, se excediam.
estas a
€oChi!o
#Viro o
Gazine triunfava. Passeava como um rei ao redor do seu
hi
, ~,4; , gar- Acabava exafamenfe de transportar para debaixo da
tarimba a aguardente ate então muito bem dissimulada num
esconderijo por fr6s das casernas sob a neve. Dava uma
r¡sadinha ladina olhando os que vinham comprar be- #
188
DOSTOIEVSKI
bida, mas não tocava numa gota de, vodca, pois sua inten-
‡ão era divertir-se apos ter esvaziado de todo a algibeira
dos companheiros. As casernas vibravam com as can‡oes,
porem a bebedeira tornava-se infernal e as cantigas pareciam
pranto. Muitos passeavam aos bandos, a pele de carneiro
atirada displicentemente as costas, dedilhando com ar cas-
quilho as cordas da balalaica. Na se‡ão especial uns oito
homens tinham ate organizado um coro, can+a~ann muito
bem, acompanhados por balalgicas e guitarras. Mas as can-
figas realmenfe populares faziam exce‡ão; recordo-me apenas
de uma, admiravelmenfe cantada:
"Outrora, quando mo‡o,
"a muitas festas fui...
t
e da qual guardei de memoria uma variante que ainda não co-
nhecia. No final da toada acrescentavam alguns versos:
"Quando eu era mo‡o
"Boa casa tinha
"Tudo limpo, asseado.
"A lavagem dos pratos
"Engrossava a sopa;
"No sebo do degrau
"Se fritava a broa...
Cantavam-se principalmente as can‡ões chamadas "do
presidio" que todo o mundo conhece. Uma delas, intifulada .
"Oufrora", era engra‡adissima; conta a hisforia de um ho-
mem que dantes se divertia e vivia como barine, e acabou
dando com os ossos no presidio. Outrora, bebia cham-
panhe e agora,
"Dão-me couves com agua,
11 que quando as mordo mexo at‚ as orelhas. .
moda:
RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS
"Outrora vivia eu
"garoto, feliz no mundo.
"Tinha um capital guardado
mas, ai 1 veio a pouca sorte
e o meu capital voou. #
Agora j perdi tudo,
perd¡ mesmo a liberdade
e peno no cativeiro."
189
E assim por diante. Apenas, entre n¢s, pronunciava-
se "kopifal" e não "kapital" porque derivavam a palavra de
"koPiV (economizar). Can+avam-se +arribem cantigas +ristes.
Uma delas, carateristica can‡ão de presidio, parece-me que
‚ conhecida fora dele:
¡~,
"Acende-se a luz do c‚u
"e o tambor rufa a alvorada.
"A velha porta se abre,
"faz a chamada o sargento;
"Ninguern vˆ, por. tr s dos muros,
"como vivemos aqui ...
Mas Deus sempre est conosco,
embora nos guarde aqu¡. . . "
A outra can‡ão, conhecid¡ssima, esfava e arande
Uma outra can‡ão, mais triste ainda' Cuia M usica e
magn¡fica, embora a letra seja inculta e sem beleza, foi feita
decerto por um preso qualquer. Alguns dos versos ainda
me ocorrem ... lembran‡a:
"Meus olhos não mais ~vistarri
11 a provincia onde nasc¡.
'irido penando, inocente,
"condenado a este martirio.
"Adeus, amores antigos!
"No telhado chora o mocho,
11
e a mata ecoa o seu pranto.
"E o meu cora‡ão se aperta!
"Nunca mais, ai, nunca mais!
"hei de rever minha terra!"
Cantavam-na frequentemente, mas em solo, jamais em
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