Casa dos mortos



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os autˆnticos, os que estavam pr'¡vados de todos os seu's

ireifos, raspados a navalha e marcados com ferro em brasa,

icaram 16 ate ... expira‡ão da peria; como não eram, porem,

razidos novos contingentes dessa especie, dentro de dez anos

a forfaleza não deveria conter mais nenhum for‡ado civil. A

se‡ão especial fambem foi conservada, e as vezes chegava

para ela um criminoso imporfariM, condenado pelo conser

lho de guerra, ... espera da organiza‡ão, na Siberia, de

trabalhos for‡ados particularmente rigorosos. Desse moclo,

nossa vida continuou exatamente como no passado: a.mesma

disciplina, o mesmo trabalho, e pouco mais ou menos o mesmo

regulamento. S6 a adminisfra‡ão fora renovada e compl'-

cada. Nomeou-se um oficial superior, comandante de com-

panhia, com quatro oficiais que sucessivamente ficavam com

a guarda. Subsfifuiram-se os invalidos por doze sub-oficiais-

Dividiram-se os defenfos em esgiadras de dez homens, ‡g-

mandadas cada uma por um ‡~Abo escolhido enfre eles pro-

prios, - cabo apenas no nome, segundo e facil de imaginar.

Como era justo, Akim Akimifch foi logo um dos cabos. Toda

essa nova organiza‡ão, - a forfaleza, os "cabos", os for-

‡ados -, continuou como antes sob a autoridade de um go-

vernador. E as cousas ficaram nisso. De come‡o, os for‡ados,

se agitaram muifo, discutiram, procuraram esfudar os novos

chefes; mas quando vi~am que na realidade tudo continuava

imufavel, aquie+aram-se, e a vida prosseguiu o seu curso.

Pelo menos finhamos um lucro: conseguiramos nos desemba-

ra‡ar do maior. Cada um de n6s respirava mais livremente,

e recuperava coragem. O pavor desaparecera, todos so-

biam que agora, em caso de necessidade, a gente poderia

se explicar com os chefes, e, salvo um erro, os inocentes n~i9

pagariam pelos culpados. A venda de vodca continuou d

mesma maneira, apesar da substitui‡ão dos invalidos poir

sub-oficiais. Esses sub-oficiais revelaram-se, na maioria, ho-

mens serios e de juizo, capazes de compreender a situa‡ão.

ft

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS



381

E' verdade que a principio houve um ou dois que tentaram

frafar-nos como a soldados, mas depressa compreenderam

com quem lidavam. Os mais recalcifrarifes foram corrigidos

pelos proprios for‡ados, o que provocou alguns incidentes.

Tenfavamos os sub-oficiais oferecendo-lhes bebida; depois,

quando lhes passava a bebedeira, a gente os fazia compre- #

¢ncler, ao nosso modo, que se podiam embriagar-se com os

for‡ados, não valiam, por consequencia ... E os sub-oficiais

acabaram por olhar com indiferen‡a, ou melhor, acabaram

esfor‡ando-se por não enxergar mais as fripas cheias de

vodca. Melhor que isso, faziam como oufrora os invalidos,

iam ao mercado fra-zer kalafchi para os presos, carne e outros

artigos, tudo que poderia ser introduzido no prŠsidio sem

lhes rebaixar muito a dignidade. Para que servia aquela

transforma‡ão em prisão militar? Não o sei. A mudan‡a

se operou no fim de minha pena, contudo five que viver ainda

dois anos sob o novo regime.

.--- Devo descrever aqui toda a minha vida durante esses

anos de prisão? Não o creio. Se devesse confar por ordem

tudo que vi e senti durante esse fempo, feria que duplicar,

ou afˆ mesmo +riplicar o n£mero desfas p ginas. Ademais,

a descri‡ão se +ornaria fastidiosa . Todos os acontecimentos

assumiam um s6 e £nico aspecto, sobretudo se, pela leitura

dos cap¡tulos anteriores, o leitor 16 fez uma id‚ia suficiente-

mente clara da vida dos for‡ados de segunda categoria. Eu

gostaria de descrever num quadro impressionante pela ve-

racidade a nossa fortaleza e tudo que sofri durante longos

anos. Consegui esse fito? Ignoro-o; eu proprio não o po-

deria julgar. mas sinfo que posso terminar aqui; revolvendo

essas lembran‡as, a magoa me sufoca, e como poderia eu re-

cordar todas as minucias daquela vida? Os £ltimos tempos

por assim dizer desbotaram na minha memoria. Muita cousa

esqueci de todo. En+refanfo esses anos tão umformes ar,

rasfaram-se todos, sombrios, -tristes. Tenho lembran‡a de

longos dias de fedio, semelhantes ...s gotas -que, depois da

chuva, caem de uma em uma dum te+o. Um intenso, ardente

f

i #



382 DOSTOIEVSKI

desejo de ressurrei‡ão, de renovamento, de vida fransfor-

mada, me dava coragem para ter paciencia, e esperar. No

fim, eu conseguira me enrijecer; esperava a passagem de

cada dia, para o descontar; embora me restasse ainda um

bom milhar deles a passar no presidio, era sempre com sa-

tisfa‡ão que eu cortava um algarismo a esse milhar. Cada

dia decorrido, acompanhava-lhe o enterro, via-o descer no

+umulo, e, alegremente, me preparava para a chegada do

seguinte; dizia a mim mesmo que, +Örando-se um de mil, fi-

,cam apenas novecentos e noventa e nove. Lembro-me-tam-

bem de que, cl'urante todo esse tempo, apesar das centenas

de companheiros que me cercavam, eu vivia numa solidão

estranha, e estimava essa solidão. S6 com minha alma, con-

siderava minha vida anterior, analisava-a nos mais ¡nfimos

detalhes, e me condenava severamente, sem piedade. Em

certos momentos, ate, aben‡oava a sorte que me concedera

aquela solidão, sem a qual não poderia meditar assim, nem

fazer uma severa revisão do passado. Que esperan‡as me

germinavam então, no peifo! Eu pensava, resolvia, jurava

que na minha vida futura não haveria nenhum dos erros, ne-

nhuma das quedas de outrora: tra‡ava um programa com-

ple+o, ao qual prometia firmemente obedecer. Desenvolvia

em minha alma a f‚ cega de realizar, de poder realizar esse

programa. Esperava, ansiava pela liberdade, queria ensaiar

minhas for‡as numa nova luta. *As vezes, uma impaciencia fe-

bril me constrangia ... Mas ‚-me muito doloroso recordar

isso tudo, que, alias, so interessa a mim ... Se o descrevo,

‚ porque suponho que me hão de compreender, hão de sentir

a mesma, cousa todos os que são atirados numa prisão, na flor

de Mocidade e do vigor.

Contudo, para que insistir nesse assunto? E para não

terminar assim, de chofre, vou ainda narrar alguma cousa.

 o melhor que posso fazer, afim de não terminar estas notas

de,modo excessivamente brusco.'

. Ocorre--me que talvez alguem pergunte se seria im-

possivel um preso fugir do presidio, se durante tantos anos

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

383

nenhuma evasão se deu. Como j o contei, um defento



que passou dois ou fres anos numa fortaleza, come‡a a dar

valor a esse lapso de tempo, e p6e-se involuntar¡amenfe a

pensar que melhor sera ficar ali at‚ ao fim; sem trapalhadas,

sem perigo; terminada a pena, sair como colono livre, legal-

mente. Mas um c lculo dessa natureza so pode ocorrer aos

for‡ados cuja condena‡ão 6 curta. Os que +em a sua frente

longos anos de deten‡ão, estão prontos a correr todos os #

riscos. Entretanto, no nosso presidio ninguem se evadia, e

seria dificil dizer por que; sem duvida, deve-se atribuir essa

reserva ao medo inspirado pela inflexivel disciplina militar,

ou ... situa‡ão da cidade da qual dependiamos - em plena

estepe. Houve, todavia, um caso de evasão, no meu tempo:

dois for‡ados a tentaram, ambos criminosos de impor+an-

*ão, A.,


Depois da partida do nosso maior, o seu esP,

viu-se comple+arnen+e abandonado e sem prote‡ão. O +em-

po lhe endurecera o cara+er: muito mo‡o ainda, era c¡nico,

malicioso, sem escrupulos. decidido a tudo. Se lhe houves-

sem dado a liberdade, continuaria decerto a exercer a espio-

nagem e a fazer dinheiro . de todas as maneiras mas sem se

deixar apanhar estupidamente como da primeira vez, e sem

pagar a tolice com trabalhos for‡ados. La no presidio, pra-

ticava para o futuro, fabricando passaportes falsos. Alias,

nao posso garantir muito isso, porque ouvi a his+oria da boca

de outros for‡ados: a lhes dar credito, ele 16 exercia o oficio

de falsario na cozinha do maior, nos tempos em que ia l ,

o que lhe produzia pingues rendimentos. Em suma, estava

resolvido a tudo para mudar de sorte. Pude obwrv6-lo

bem: e o seu cinismo, que raiava a mais revoltante abje‡ão,

... mais fria audacia, desperfava-me um horror invencivel.

Creio que tendo vontade de beber uma garrafa de vodca,

o não podendo obtˆ-la senão gra‡as a um assassinato, ele

não recuaria diante do crime, con+an+o que o pudesse exe-

cufar em segredo, escondido de todos. No presidio, apren-

dera a calcular. Foi na sua pessoa que Kulikov, da se‡5o #

34 DOSTOIEVSKI

especial. fixou a escolha para companheiro. ja falei em Kuli-

kov. Homem maduro, manfinha-se forte, apaixonado, ativo,

com capacidades extraordinarias e diversas. Parecia dessas

pessoas que conservam ate ... mais extrema velhice a von-

fado e a for‡a de viver. Eu me sentiria surpreso se o visse

resignado a ficar ali, -como os outros. Porem Kulikov j to-

m ra a sua decisão. Qual dos dois teve mais influencia

sobre o oufro? Ignoro, mas ambos se equivaliam muito bem.

Feitos um para o outro, depressa estreitaram a amizade: pen-

so que Kulikov contava com A. para lhe obter um passaporte.

A. era de nobre familia, e isso autorizava +odas as esperan-

‡as - com a simples condi‡ão de conseguirem chegar ...

Russia. De qualquer modo, essas esperan‡as deveriam ir

mais longe que a simples rotina da vagabundagem siberiana.

Kulikov, comediante nato, poderia desempenhar muitos pa-

p‚is, na vida: pelo menos contava com a variedade das suas

aptidões. O presidio sufoca pessoas dessa especie. E com-

binaram portanto a evasão.

Mas sem a conivencia do vigilante, qualquer fuga seria

impossivel. Era preciso en+enderem-se com o bom-em. Num

dos batalhões sediados enfre n¢s, encon+rava-se um polaco

energico, digno falvez de melhor sorte, individuo de certa

idade, porem severo, serio. Enviado para servir na Siberia,

quando mo‡o, a saudade o venceu, e o rapaz deserfou. Foi

apanhado, fustigado, e condenado a dois anos de bafalhão

disciplinar. Quando o devolveram ... fropa, tivera tempo

para refletir-, entregou-se ao servi‡o com um interesse, um

zelo que lhe valeram as divisas de cabo. Tinha uma exagera-

da concienc¡a do seu valor; seus modos, suas palavras, res-

piravam orgulho, confian‡a propria. Muitas vezes, duran-

+e todos aqueles anos, eu reparei nele, entre os soldados de

nossa escolta. Ali s, os polacos me haviam falado no seu

nome. Parece-me que a saudade da pa+ria, a nostalgia, se

haviam mudado em odio surdo, irreconciliavel. Esse ho-

mem era capaz de tudo, e Kulikov mosfrou faro, escolhen-

do-o para cumplice. Chamava-se KoKer. Os +res se con-

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

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luiaram e marcaram um dia. Estavamos no mes de junho.

o clima da cidade era quase umforme, sobretudo no verão:

o.calor persisfenl-e ajuda os vagabundos. Como e facil de

conceber, de modo nenhum poderiam os cumplices sair di-

refamenfe da fortaleza. A cidade fica numa colina, as pro-

ximidades são descampadas, e numa extensão bastante vas-

ta, floresta alguma prende o olhar. Era preciso pois tro-

car de roupa, e para isso tinham que ir ao bairro Onde Kuli- #

kov Ia h muito tempo possuia um esconderijo. Não sei

se os seus amigo% do fal esconderijo esfavam +o+almenfe a par

do segredo. Podem-se fazer suposi‡ões, mas a cousa nunca

foi devidamenfe esclarecida. Nesse ano, num dos recanfos

do arrabalde, uma rapariga mo‡a e agradavel, chamada

"Vankan',,a", come‡ara carreira: dava grandes esperan‡as, -

esperan‡as que ali s cumpriu em parte. Chamavam-na +am-

bem '. Labareda". Decerto essa mulher desempenhou um pa-

pel no caso, pois Kulikov, ia ha um ano, fazia loucuras por

ela. Nossos homens se apresentaram de manhã a chamada,

e fizeram com que os dessem como ajudantes ao for‡ado

Chilkine, forneiro -e gesseiro de profissão, que esfava enfã'o

frabalhando num quartel vazio: os soldados que o habitavam

Ja havia muito viviam acampados sob fendas. Koiler arran-

jou fambem um gei+o de ser escolhido para a escolfa dos

frˆs, mas como para +res for‡ados o regulamento exige duas

sentinelas, deram a Koiler, soldado antigo e cabo, um recruta

que ele deveria iniciar no servi‡o. Era mister que os nossos

for‡ados exercessem uma enorme influencia sobre Koiler e lhe

inspirassem desmedida confian‡a, para que aquele velho sol-

dado, com tantos anos de experiencia, graduado, austero,

ajuizado, se resolvesse a acompanha-los.

1

Chegaram ao quartel as seis horas da manh3. O local



.~ esfava deserfo. Depois de trabalhar uma hora, Kulikov e

¡

A. disseram a Chilkine que iriam a oficina, alegando a princ¡-



pio que queriam ver nao sei quem, e, depois, que iam apanhar

uma ferramenta que lhes faltava. Precisavam agir com as-

+ucia - isto e, com naturalidade, enquanto tratavam com. #

U6

DOSTOIEVSKI



Chilkine. Chiikine era um desses astutos arfesãos moscovi-

tas, inteligentes mas de poucas palavras, de aspecto ~

e descarnado, fei+os para usar a vida inteira o colete e a

blusa da moda, no boa cidade de Moscou: pore . m o destino

resolvera outras cousas a seu respeito; depois de longas pe-

regrina‡ões ele acabara caindo em prisão p*petua, na se‡ão

especial, ou seja, entre os mais perigosos reincidentes da jus~-

fi‡a militar. Ignoro o ponto de partida de carreira tão Ia-

menfavel, mas Chiikine jamais demõnstrava a minima acri-

monia, o menor mau humor; de tempos em tempos, embria-

-se como uma esponja, todavia, fora isso, seu procedi

1 gava 1-,

monto nada deixava a desejar. Como ele não estava no se-

gredo e não era nenhum tolo, Kulikov lhe piscou o olho, dando

a entender que iria buscar aguardente escondida na oficina.,

desde a vespera. A id‚ia agradou a Chilkine: ficou s¢ 'com

o recruta, sem alimentar a menor suspeita. E A., Kulikov e

Koller afas+aram-se em dire‡ão do +ai arrabalde.

Passou-se meia hora. Como os ausentes não retorna-

Chilkine, subitamente alarmado, e que - * ita

vami wa mu

cousa neste mundo, pos-se a refletir, e tanto refle que seri-t,

flu que as botas lhe comichavam. Lembrou-s - te' que Kuli-

kov se mostrara num estado de esp¡rito anormal. Por duat

vezes vira A. -lhe cochichar qualquer -cousa; e nas duas vezo

Kulikov respondera ao c£mplice com uma batida de p lpa¡~. 1 1 1

bras significativa: disso Chilkine estava certo, imSiramente,_

certo. KoIler fambem lhe chamara a aten‡ão, por~que aritˆs,

de se afastar com os dois for‡ados, perdera tempo a ens¡n~ -',

cousas ao recruta, a lhe explicar como deveria agir ner

ausencia, fato ins¢lito, sobretudo partindo de homem

quela tˆmpera. Em suma, quan+o'mais Chilkine exarni

as circunsfancias, mais a desconfian‡a lhe aumentava. E,

mo o tempo ia passando e ninguem voltava, a sua inqu4

‡ão acabou por ultrapassar todos os limites. Compr

muito bem os riscos que corria, naquele caso- as sUsp, '.wA

,-lflr

dos chefes poderiam recair sobre a sua pessoa, acu64 ~



de haver permitido que os companheiros partissem por esta r

-l)-


I #

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

389

de conivencia COM a fuga. Se demorasse a denunciar o



desaparecimento de Kulikov e A., essas suspeitas tomariam

ainda maior consisfencia. N3o finha pois um insfanfe a per-

der. Então se lembrou de que nos £ltimos tempos Kulikov

e A. se tinham tornado amigos intimos, passavam o tempo

cochichando juntos, e iam conversar por +ras das casernas,

longe de todos os olhares. Recordou-se at‚ de que esse fato

lhe despertara a curiosidade . . Olhou então para a senti-

nela; o rapaz bocejava, encostado ao fuzil, e furacava o nariz

com o dedo, num'ieito tão inocente que Chilkine não consi-

derou oportuno desvendar-lhe os seus pensamentos. Pediu-

lhe apenas que o acompanhasse a oficina. Queria saber se

os companheiros haviam chegado 16; quando verificou que

ninguern os vira, suas duvidas se confirmaram. "Se eles ti-

vessem ido apenas beber e divertir um pouco na cidade, como

Kulikov o fazia as vezes, porque me esconderiam isso?" pen-

sava Chilkine. Resolveu-se então: abandonando o trabalho,

¡rigiu-se ire amen e para o r sidio.

Eram cerca de nove horas quando Chilkine se apresen-

tou ao sargento e lhe explicou as causas do seu retorno. O

sub-c,ficial assusfou-se, e a principio recusou acreditar. Chil-

kine, e claro, so lhe apresentou a cousa sob forma de mera

suspeita. O sargento voou a casa do maior, o maior cor-

reu. ... do governador, e um quarto de hora depois tinham

sido tomadas as medidas necessarias. Fizeram um rela+orio

ao governador geral. Os criminosos eram de impor+ancia,

e dever-se-ia temer uma reprimenda severa, de Peiersburgo.

Bem ou mal, A. fazia parte dos condenados pol¡ticos. Quan-

to a Kulikov, pertencia a se‡ão especial, isto ‚, ... se‡ão dos

super-criminosos, da qual afˆ então ninguern conseguira fu-

gir; e alem do mais, era militar. Recordaram que, de acor-

do com o regulamento, todos os homens dessa se‡ão, quando

iam para o trabalho, deveriam levar um e ate dois soldados

de escolta. O regulamento não fora pois cumprido, o que

agravava o caso. Mandaram-se correios a todas as capi-

fais de distrito, as circurivizinhan‡as, a todos os povoados. #

390


DOSTOIEVSKI

grancles e pequenos. Fez-se conhecer por toda parte a no-

ficia da fuga, e foram dados os sinais caraterisficos dos eva-

didos; mand,,,,,rn-,e cossacos no seu rastro ... enfim, um Pa-

vor horrivel se disseminou. . . Durante esse tempo, no inte-

rior da fortaleza, a agita‡5o era grande. A medida que iam

voltando do trabalho, os for‡ados sabiam da noticia, que j

corria de boca em boca, e cada um a recebia com uma ale-

gria secreta, mas intensa. Todos sentiam o cora‡ão lhes

bater corri for‡a ... Aquela evasão rompip a monotonia da

vida no presidio, agitava o formigueiro. Despertava um eco

fraternal no peito de todos os de+en+os, vibrava neles certas

cordas ha muito tempo adormecidas. A esperan‡a, a auda-

cia, a possibilidade de "mudar de sor+e", faziam fremir as

almas. "Se, eles puderam fugir, porque não o poderei eu?"

E cada um, a esse pensamento, fitava no vizinho os olhos pro-

vocantes, cada um se sentia bruscamente +ornado de orgulho,

e encarava de cima os sub-oficiais.  ciaro que imediata-

mente apareceram os oficiais. O proprio governador apresen-

+ou-se. N¢s nos diverfiamos a grande; encaravamos os che-

fes com silenciosa gravidade, e com certo desprezo- "Quan-

do a gente quer ... 11 Esperando uma busca, +inhamos cor-

rido a esconder o que era nosso; porque ninguem ignorava

que, nesses casos, os chefes tratariam de tudo com grande

rapidez. E as previsões mos+raram-se exatas: houve um

grande reboli‡o, puseram tudo de pernas para o ar, pesqu¡-

saram individualmente cada preso, sem nada encontrar, 6

l¢gico. A +arde, mapdaram os for‡ados para o trabalho sob

escolta redobrada. A noite, os oficiais de guarda fizeram

rondas continuas. Procederam-se a duas chamadas, contra o

costume: e novo reboli‡o se regis+ou; mandaram-nos formar

no patio para nos contar outra vez, e depois novamente

verificaram dentro do alojamento ... A agita‡ão andava

pois no auge.

Mas isso quase não inquietava os presos. Tinham assu-

mido ares indiferentes, e como sempre, nesses casos de "Cor-

ridas", portaram-se muito bem durante toda a noite. "Pelo

41

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS



391

menos não vão poder culpar a genfei" E por seu lado, os

chefes meditavam: "Não terão ficado alguns cumplices

aqui?" Foram dadas ordens não s¢ para vigiar os for‡ados

como para lhes espionar as palavras. isso so os fez divertir: #

"Eles não seriam tão tolos que fossem deixar c£mplices; esses

golpes se preparam na surdina. Camaradas do estofo de

Kulikov e de A. não vão mostrar rastro, sabem esconder o

E' gente que passa por um

jogo! Ninguern soube nem viu!

byraco de rato, quanto mais por uma porta fechada!" Em

resumo, a fama de Kulikov e de A. aumentava sempre; todos

,'~',tinham orgulho por eles; calculava-se que a fa‡anha dos dois

1 . %


~,:~passaria a mais remota posteridade, que sobreviveria ao pre-

sidio.


- São uns mesfresi

- E os chefes que pensavam que ninguem pode sumir

daqu¡! Agora j estão os dois bem longei acrescentavam

,~ outros.

- E estão longel repetia um terceiro com ares impor-

,~fantes-

, mas isso s¢ aqueles dois eram capazes de fazerl Não

te comparar com eles, hein?

Em qualquer outro momento, o defento a quem se diri-

-plicado aceso na defesa da propria

ia a pergunta teria re

rira. Desta vez, mantinha um silencio modesto: "E' ver-

'Oade, a gente não ‚ igual a eles; e -preciso passar por muita

ousa anfesli'

Afinal, irmãos, para que ficar aqu¡? disse um quarto,

então ouvira em silencio, sentado sossegadamente na

a cozinha. Esfregava a face com a palma da mão e

com voz um pouco arrastada e mole, que tra¡a um

I~refo, sentimento de satisfa‡ão. - Que estamos fazendo

. ‚qu¡? Somos vivos sem vida, e mortos que não foram enter-

,,~,tados, não e mesmo?

- O presidio não e uma bota que a gente possa des-

Cal‡ar ...-toa, não?

Ora, Kulikov, entretanto ...

, cheio de ardor.

replicou um mocinho. #

4 RECORDA€õES DA'CASA DOS MORTOS 393

DOSTOJEVSKI

392

- Kulikov? interrompeu um outro, piscando o Olho com



desprezo para o lado do mocinho. Kulikov, meu filho, era

Kulikovi


Isso significava que os Kulikov não são fabricados as

duzias.


- Mas A. tamb‚m tem o seu valor, não9

- A. e esperto como um gatol E' capaz de enganar

ate Kulikov, e obriga-lo a ver a lua ao meio-dia!

- Sera que eles ia estão longe? isso e que eu queria

saber!

E logo se puseram a falar do caminho que os fugitivos



poderiam ter percorrido. Que dire‡3o +ornariami Para on-

de seria melhor encaminha rem-se? Qual a cidade mais pr¢-

xima? Descobriram-se for‡ados que conheciam a região,

e suas explica‡ões foram avidamente escutadas. Falaram

nos habitantes das aldeias vizinhas, declararam-nos inseguros.


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