Casa dos mortos



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- Deve ter uns vinte rublos, observou outro. Todo o

mundo sabe que um botequim não e mau negocio.

- Então não me querem mesmo? TenhobtIue comer

por conta da casa?

- Sim, cai fora. Vai pedir cha aos harines na outra

mesa.


- Que barines? Não ha bar¡ne nenhum aqu¡. Agora

são iguais a gente, resmungou um outro gal‚, que esfava

sentado longe. a ainda não dera pal#vra.

- Bem queria eu fornar ch ! Mas não sou homem

para pedir - tenho vergonha na cara! declarou o preso do

bei‡o grosso, olhando-nos com a cara bonachona.

- Se quer cha, com todo gosto lhe ofere‡o, falei eu.

Quer?


- Se quero? Pois não! - E aproximou-se de nos.

- Eh! Em casa dele +ornava sopa sem colher, e agora

bebe cha com os barines1 continuou o pneso resmungão.

- Sera que ning*uem aqu¡ toma cha? perguntei. Mas

ele não achou que me devia responder.

- Kala+chil olha os ka10chil! quero um fambem!

Um jovem de+enfo enfrava realmente com um rosario

de kallOchi, ~que ia vendendo pelo alojamento. A vendedora

lhe dava de gra‡a um em cada dez, para lhe pagar o tra.

balho, e com isso ele jantava.

- Kala+chi, kalafchi quentinhos! gritava o rapaz enfra.f-

do na cozinha. Quem quer kalafchi, lindos kalafchi de

Moscou? Eu bem que os comeria, mas preciso dos cobres.

Vamos, €hos, s6 me resta um! Quem feve mãe?

Esse apelo ao amor maferno provocou risadas, e lhe

compraram alguns kalafchi.

(10) Alegoria popular, que significa fwc (N. de R. Q)

O

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS



4~

- Escutem, rapazes, falou ele. Gazine es+repou-se!

Est bˆbedo como uma vaca - 'so falta aparecer mesfre

"Oifo olhos" ... #

- O melhor e esconder Gazine. Mas est mesmo

chumbado?

- Esta e furioso.

- Então precisa duns tapas ...

- De quem estão falando? indaguei do poiaco sen-

+ado ao meu lado.

- De Gazine, um preso que vende bebidas. Quando

junfa uns cobres, embriaga-se e fica uma fera. Sem bebida,

e quieto; porem quando esfa bˆbedo, mostra o que e: atira-

se aos outros, de faca na mão. E, então, o aquietam.

, Como?

- Uns dez dos outros se afiram a ele, esmurram-no



af‚ que fique desacordado - quase morto. Depois o es-

tiram na tarimba, coberto com o capote.

- Mas não correm risco de o matar?

- Sim, e outro qualquer levaria o diabo - ele não.

 forte como um +ouro. Mais forte que os outros todos:

quando for amanhã de manhã levanta-se como se não hou-

vesse nada.

- Diga por favor, perguntei ainda ao polaco. Aqueles

ali comem em separado e eu esfou bebendo cha simples.

E entretanto, parece que me invejam o cha. Por que?

- Oh! nSo* e por causa do cha, explicou o polaco; e

o barine que eles hosfilizam. Tem raiva dos harines por-

que não parecem com eles. Qualquer um ficaria contente

em o ofender, irritar, humilhar. Vai ver o diabo por aqu¡!

Pode crer, a vida aqui e dura, e muitissimo mais dura para

,nos do que para os outros.  preciso muito boa vontade

para se acostumar. Vai ter muitos aborrecimentos, sofrer

mai de um insulto, porque toma cha e n8o come na game-

Ia, - embora muitos presos comam a parte e tomem cha;

mas eles podem, nos, não.

Dizendo isso, deixou-me. Alguns minutos &~pois suas

predi‡6,es se realizaram. #

O

lu

A,



VF

IL ~ v . 1-101 -

Primeiras impressões

(continua‡ão)

1 11~ L?

A ssim que M-cki (o Polaco) acabava de sair, Gazine, in-

feiramente bˆbedo, irrompeu na cozinha.

Em pleno dia de trabalho, durante o qual deveriam

todos estar cumprindo as suas tarefas, com um chefe se-

vero que poderia aparecer a qualquer instante, com um

sub-c,ficial de servi‡o, e os invalidos, e todo o pessoal da

vigilancia, a entrada daquele ebr¡o punha em choque com-

pletc, as id‚ias que eu houvera formado sobre a vida no

presidio. Alias, fiquei muito tempo sem conseguir explica-

‡ão para fatos desse gˆnero, que me pareciam de inicio

verdadeiros enigmas.

J6 contei que cada um dos for‡ados tinha a sua ocupa-

‡ão pessoal. Isso representa uma exigencia nafuralissima da

vida na prisão; ademais, fa-lo ganhar dinheiro, e o de+ento

preza tanto o dinheiro quanto a liberdade; sente uJ consolo

i

I #


dentro do bolso: fica Pouco

em fazer retinir algumas moedas

inquieto, desanirgado, quando 1não tem

... vontade, triste, ~O

dinheiro nem meios de o obter. Entretanto, embora o di-

um ~esouro inapreciavel. o seu feliz pos

nheiro represente

suidor não o conserva nunca consigo. Em primeiro lugar.

como o esconder, de, modo que não seja nem roubado nem

confiscado? o maior, mal descobria algum peculio, nas suas

buscas repentinas, dele se apossava imedia+amente. Talvez

o empregasse no melhoramento da ra‡ão: mas +omava-0.

Corri mais frequencia, porem, era o dinheiro roubado. Seria

imposs¡vel ter confian‡a em alquem. Des~obrimos afinal um

m‚todo de o guardar sem perigo: entregava moIo a um velho

que. pertencia a confraria de VietI‡a, hoje refugiada entre os

mujiques de Starodubov ti). E não posso deixar de dizer

algumas palavras a respeito desse velho, embora sais um

pouco do meu assunto.

Era um homenzinho encanecido, de uns sessenta anos.

Despertou intensamente a minha curiosidade, logo ... che-

gada, porque diferia em tudo dos outros presos. Seu olhar

tinha uma expressão +ão meiga, +ão calma, que eu contem-

plava sempre com um prazer especial aqueles olhos claros,

luminosos, aureolados de pequenas rugas. Conversavamos fre-

quentemeriM, e raras vezes tenho encontrado tanta bondade,

tanta mansidão! Cometera, entretanto, um crime grav¡ssi-

mo. Iinham-se registrado, entre os seus companheiros de

cren‡a, varias deser‡ões; o governo -estimulava bastante os

trƒnsfugas e tudo fazia para obter novas conversões. O

nosso velho e alguns outros fanaficos do seu grupo resolve-

ram "manfer a verdadeira fe", como diziam. Quando se

quis edificar uma igreja ortodoxa, eles a incendiaram. Preso

como um dos insfigadores do crime, foi o velho mandado

(1) No fim do s‚culo XVII, Vietka, burgo situado então no territorio polonˆs e

que hoje faz parte da provincia russa de Mohilov, constituiu durante meio s‚cuio o prin-

cipal refuSio dos "ritualistas", ou adversarios das reformas lit¢rgicas preconizadas pelo

patriarca Nikon. Durante a guerra de sucessão da Polonia (1734) as tropas russas des-

truiram esse refugio; e Starodubov, situado na provincia de Tchernigov, lhe herdou a

influencia. (N. de H. MA

Os dissCentes de Starodubov eram chamados, raskoiniki, ou "velhos crentes".

(N. de R. QJ

D`GSTOIEVSKI

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

(t

I #


si

para os trabalhos for‡ados na Siber¡a. Era um comerciante

abastado, e tinha mulher e filhos. Abandonara tudo para

tomar o caminho do exilio. - achando, na sua cegueira,

que estava sofrendo pela f‚. Vivendo junto a ele, a gente

meditava, involun+ariamente: qual a razão por que aquele

homem resignado, +imido como uma crian‡a, pudera , revol-

Interpelei-o varias vezes a respeito da sua "f‚' - e Ele

far-se? as as r pli-

nao abandonava uma linha das suas convic€ões. m de. Con-

cas que dava não traiam jamais a minima animosida

tudo, queimara uma igreja e não o negava, pois aos seus

olhos aquele ato, aquele limarfirio", constauiam uma honra.

vão o sondei, em vão o in+erro-

uma gloria. Entretanto, em

quek nunca descobr¡ nele o menor tra‡o de orgulho ou de

vaidade. Tinhamos entre n¢s outros "velhos crentes", sibe-

rianos na maioria, bastante instruidos, bons dialeficos a sua

maneira, extremamente aferrados ao texto sagrado, porem

intolerantes, cheios de astucia e presun‡ão. Nosso velho não

os imitava em nada. Versado nas Escrituras mais que qual-

quer um deles, fugia no entanto as controversias . Tinha o

genio extremamente comunicativo, estava sempre alegre, ria

frequentemente - não com a gargalhada grosseira e cinica

dos for‡ados, - mas com um riso manso e claro que corres-

pondia bem a sua cabe‡a grisalha, e no qual se sentia uma

grande e ingenua simplicidade. Posso enganar-me, todavia

me parece que a gente pode conhecer um homem pelo seu

riso, e que, se ao 'primeiro encontro um desconhecido ri ante

nos de uma maneira agradavel, sua alma e boa. O nosso ve-

lho gozava dum respeito unƒnime, do qual absolutamente não

/I ~11


se orj~lhava. Os for‡ados, que o chamavam avo , não o

ofendiam jamais. E isso explicava em parte a influencia por

ele exercida sobre os-seus correl igiona rios. Entretanto, apesar

do esfoicismo real com que suportava os trabalhos for‡ados,

uma tristeza crescia dentro dele, tristeza profunda, incura-

vei, que dissimulava o melhor que podia. Nos dois ocupava-

mos o mesmo alojamento. Uma noite, pelas fres horas, es-

cutei alquem chorar baixinho. O pobre coitado, sentado

I #

52 DOSTOIEVSKI



junfo ao fogareiro, naquele . mesmo lugar ocupado outrora

pelo leifor da Biblia que quisera matar o maior, lia ora‡ões

I.S

num caderno manuscrito. , Solu‡ava, e de tempos em tem-



pos dizia: "Senhor, não me abandones! Senhor, da-me for-

‡as! Meus filhos, meus filhinhos, nunca mais os +ornarei a

ver!" Não posso exprimir o do que aquela cena me causou.

Foi pois a esse velho que pouco a pouco os for‡ados

iam enfregando o seu dinheiro. ~Embora fossem todos la-

drões, cada um tinha a certeza de que, com o "av"", podia

ficar sossegado. Sabia-se que ele dispunha dum esconde-

rijo num lugar onde ninguem o descobriria. Mais +arde, o

velho confiou o seu segredo a alguns dos polacos e a mim:

numa das estacas da pali‡ada havia um no na madeira, que

parecia estar solidamente ligado ao +ronco, mas podia ser

retirado, o que descobria um oco bastante profundo; ele Ia

depunha o dinheiro, e depois recolocava o no de modo fão

perfeito que ninguem jamais desconfiou de nada.

Mas afas+ei-me do meu assunto. Tinhamos ficado nisto:

por que o dinheiro demora +ão pouco tempo no bolso dum

for‡ado?  que não s0 lhe e dificil conserva-lo, como o pre-

s¡dio provoca uma tristeza +ão grande! O for‡ado, por sua

propria natureza, fem umabsede fão grande de liberdade e

por sua posi‡ão social e fão descuidoso, +ão desordenado,

que lhe vem naturalmente a id‚ia de ao menos uma vez dar

alegria ao cora‡ão, afogar todo o desgosto em barulho e

musica, afim de esquecer, um minufo talvez, a sua desgra‡a

abominavel! Nada mais estranho que ver alguns deles a

frabalhar meses e meses sem uma folga, com o fito ¢nico

de dispender num so dia todo o lucro obtido; depois disso,

novamente se curvam, novamente se encarn¡‡am na labuta,

afˆ a proxima bambochafa.

Muitos deles gosfavam de usar roupa vistosa, mais ou

menos exquisifa, cal‡as pretas de fantasia, cafe+ãs cur+os

... moda siberiana. Tambem esfavarri muito em moda cami-

sas de chifa e cinfurões com fivelas de cobre. Os presos

se enfeitavam aos domingos, exibiam-se em todo o esplen-

dor atrav‚s do alojamen+o. Chegava a ser infantil a safis-

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

fa‡ão que sentiam com o seu fraio novo. Alias, em muitos

aspectos, não passavam os gales de crian‡as grandes. Falar

verdade, todos aqueles ouropeis rapidamente desapareciam;

algumas vezes naquela mesma noife o seu proprie+ario os er~-

penhava ou vendia por quase nada. Sempre havia, alias,

pretexto para festas: ou porque era dia santo, ou porque

era aquele o dia onornastico de um dos defenfos. O ani-

versariante, assim que acordava, acendia uma vela defronte #

ao icone, e fazia as suas ora‡ões: depois endorningava-se, en-

comendava uma refei‡ão, - carne, peixe, e pratos a moda

siberiana, - e os devorava como um bicho esfomeado, -em

geral sO, pois raramente convidava um amigo para lhe par-

filhar o festim. Então aparecia -o vodca. O for‡ado

bebia como um odre, e andava pelas casernas, titubeando,

trope‡ando, mas altivo por mostrar a todos que "esfava de

farrcV - pois aquilo lhe era uma garantia da estima geral.

O povo russo sente uma esfranha simpatia pelo bˆbedo, po-

rem, no presidio, essa simpatia chegava ate ao respeito: os

paus-dagua pertenciam a uma especie de aristocracia. Assim

que se sentia alegre, o for‡ado exigia musica. Havia entre

nos um polaco, condenado por deser‡ão - um crapula, a

bem dizer, mas que possuia um violino e tocava. Como

não tinha nenhuma profissão, o seu unico recurso consistia

em se alugar a um aniversariante e tocar para ele alegres

musicas dansan+es. Essa fun‡ão o obrigava a acompanhar

o seu ebrio patrão de alojamento em alojamento, arranhan-

do a rabeca com quanfa for‡a tinha. Muitas vezes o rosto

lhe traduzia o +edio, o desespero, o cansa‡o, mas ao escutar

o grifo "Toca, diabo, ganha o teu dinheiro!" fazia o que

podia, a manobrar o arco. O fes+eiro sabia muito que se

por ajaso ficasse por demais ruidoso, feria quem cuidasse

de Si- , dei+a-lo-iam, escondˆ-lo-iam mal aparecesse um chefe,

uilo seria feito com absoluto desinteresse. ' Por seu l¡ado,

os sub-c,ficiais e os invalidos que zelavam pela ordem inferna,

poderiam ficar sossegados: o bˆbedo n3o provocaria ne-

nhuma complica‡ão, pois todo o seu' alojamento feria nele

os olhos.

1i #

54 DOSTOIEVSKI



Ao menor barulho, a menor revolta, tinham meios de o

fazer calar, ou simplesmente o amarravam. Por essa razão

os sub-c,ficiais fechavam os olhos: sabiam muito bem que se

não tolerassem o vodca ali dentro, as cousas andariam muito

piores. Mas como o obtinham os presos?

O vodca era comprado dentro do propric, presidio, a

defentos apelidados "bofequineiros" e cujos negocios ca-

minhavam muito bem, embora os nossos beberrões fossem

em pequeno numero: aquelas orgias custavam caro e nos

finhamos grande dificuldade em obter dinheiro. O comarcio

de vodca se iniciava, desenvolvia-se e se concluia de, maneira

realmente original. Vejamos um defento sem profissão defi-

nida, e pouco dado ao trabalho (havia desses) mas desejoso e

impaciente por enriquecer. Como possue alguns copeques,

resolve comerciar com aguardente, -.empresa bastante au-

daciosa. Grande e o risco: pode paga-lo na "rua verde", e

ao mesmo tempo ver dinheiro e mercadoria confiscados. En-

fr,efanto, o botequineiro não hesita. A principio. não dis-

pondo senão de alguns cobres, ele propric, introduz o vodca,

do qual, O 10giCO, so se desfaz com grande lucro. Repete a

experiencia segunda. terceira vez; se não e apanhado, em

breve possue um peculic, que lhe permite dar expansão ao

negocio. Torna-se negociante, capitalista; tem agentes e

auxiliares; arrisca-se muito menos e enriquece muito mais ...

São os auxiliares que se expõem no seu lugar.

Ha sempre no presidio alguns loucos que o jogo ou os

excessos arruinaram de todo, gente sem oficio, lamentavel,

esfarrapada, mas de certa maneira dotados de 'audacia e

energia. Essas criaturas não possuem senão uma cousa: as

costas, e aquilo ainda pode ter uma utilidade. O desgra‡ado

resolve porfanfo lan‡ar mão desse ultimo capital: enfende-se

com um bofequineiro, propõe-se a lhe con+rabandear vodca.

E todo bofequineiro rico utiliza muitos empregados dessa es-

pecie. Tem, na cidade, rela‡ões com um individuo qual-

quer, um soldado, um artesão, uma meretriz, que, mediante

comissão relativamente elevada, compra num bofequim a

aguardentis do rimim r~dedor, e vai depo;s escondˆ-la

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

55

perto do local onde trabalham os for‡ados. Esse inferme



diario, come‡a sempre provando a qualidade da mercadoria:

e substitue implacavelmente por agua pura a por‡ão consu-

mida nessa prova. Os seus fregueses não podem ter ex¡

gencias: devem se dar por felizas em arranjar vodca, seja qual

for. O fornecedor vˆ então a chegada dos carregadores

indicados pelo bo+equineiro. Essas trazem consigo algumas #

tripas de boi que foram antecipadamente lavadas e cheias de

agua, para ficarem frescas e macias. Depois que o vodca

e mudado de recipieriM, os carregadores enrolam as +ripas

em redor do corpo - nos lugares mais secretos em que e pos-

sivel af6-las.  a¡ que se mostra toda a asfucia, toda a ha

bilidade do contrabandista. Sua honra esta em jogo. 

preciso enganar vigilantes e sentinelas: e ele os engana. Um

bom contrabandista sempre se arranja de modo que o sol

dado da escolta (em geral um recruta) de nada desconfie.

 claro que, para come‡ar, o for‡ado estuda bem a psico

logia do soldado; leva farribem, em confa a hora e o local

da sua tarefa. Se, por exemplo, e foguis+a na olaria, trepa

no for= quem e que vai enxergar o que ele esta fazendo?

Quando volta ao presidio, fraz sempre na mão uma moeda

de quinze ou vinte copeques, para ado‡ar os possiveis ri

gores do cabo da guarda que esta ao portão, e e encarre

gado de examinar os presos que reforriam do +rabalho, antes

que Nem entrada no recinto da fortaleza. O portador de

vodca espera que não lhe inflijam a vergonha de apalpa-lo

minuciosamente em certos lugares - mas acontece, as

vezes, que um cabo mais insistente va direto aqueles ditos

lugares e descubra o contrabando. Resta então uma derra

deira esperan‡a ao desgra‡ado: as escondidas do soldado

da escolta, enfia na mão do cabo a moeda que trazia

consigo. Essa manobra quase sempre lhe permite penetrar

sa . o a salvo no presidio. Algumas vezes, porem, o negocio

acaba mal: ele então +em que contar com o seu Ultimo capital

- isto 6. as costas. Faz-se um relaforio ao maior. a‡oifa-se

impiedosamonfr, o capitel, e confisca-se o corpo de de';+o.

I #


56

DOSTOIEVSKI

Nesses casos, o contrabandista assume 'toda a responsabili-

dade e evita cuidadosamente denunciar o botequineiro, não

que receie ficar deshorirado pela dela‡ão; mas simplesmente

porque aquela dela‡ão de nada lhe servir . Sera fustigado

do mesmo modo e seu unico consolo sera ver o negociante

apanhar ao seu lado. E, afinal de contas, ainda precisa do

patrão, embora, segundo os usos e o contrato previamente

feito, não fenha-o carregador direito a indeniz 3 1

pelos a‡oites recebidos.

A 1:'


-,, o a guma

Issima.


as, as aeia‡Ses são no presidio ~cousa comuni *

O delator não e objeto de nenhum desprezo, não provoca

nenhuma indigna‡ão, ninguem o evita, pelo contrario, e ate

uma amizade procurada. Se alguem tentasse mostrar aos

for‡ados quanta vilania ha numa dela‡ão, eles decerto não o,

compreenderiam. Aquele ex-fidalgo, s6rdido e viciado, com

quem rompi rela‡ões desde o primeiro dia, era amigo de

Fedka, a ordenan‡a do maior. Servia-lhe de espião e Fedka

contava ao comandante tudo o que o outro lhe comunicava.

Ninguern ignorava -esse fato. nunca entretanto um dos presos

cuidou em castigar esse canalha, nem mesmo em lhe fazer a

menor censura.

Mas eis-me de novo afastado do meu assunto. Quando a

aguardente ‚ infroduzida sem trope‡os, o negociante se apo-

dera das +ripas cheias, paga os contrabandistas e p6e-se a

fazer c lculos. Considerando que a mercadoria lhe sai

muito cara, acha justo aumentar um pouco os seus futuros

lucros, acrescenta rido-lhe mais uma boa por‡ão de agua.

Depois de tudo pronto, espera, --rifão, a freguesia. No do-

mingo seguinte, ...s vezes mais cedo, o cliente se apresenta

sob a forma dum detenfo que trabalhou varios meses como

um boi de canga e reuniu vinfem por vinfem o dinheiro ne-

cessario aos seus prazeres. J h muito tempo, durante o

sono, durante o trabalho, o miseravel pensa, encantado, na-

quele dia. A id‚ia da festa em perspectiva o ampara afra-

ves da dureza da sua vida. Enfim, acaba de luzir a aurora

da data festiva, e como o dinheiro junto nSo foi roubado nem

confiscado'. enfrega-o ao bofequineiro. O negociante lhe

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

#

57



serve o vodca, do mais puro que e POssivel, - isto e, batiza-

do apenas duas vezes; mas ... medida que se esvazia a garrafa,

vai enchendo-a com agua. Nessas condi‡6es, como a dosa

e paga cinco ou seis vezes mais cara do que nos botequins

de verdade, e facil de conceber quanto e preciso beber,

quanto dinheiro ‚ mister gastar, para chegar a embriaguez.

Entretanto, dada a falta de h bito e a abstinencia anterior,

o for‡ado se embebeda muito depressa, mas, em geral, con-

finua a.beber ate não ter mais um real consigo. Então,

como o bofequineiro tambem exerce a usura, o aniversariante

empenha toda a roupa; em primeiro lugar a sua linda blusa

nova, depois os trapos velhos, enfim os objetos que recebeu

do governo. Bebido afinal o derradeiro farrapo, o "espon-

ja" se deita, e quando no dia seguinte se levantar com a

inevifavel ressaca, pedira -em vão ao botequineiro que lhe

arranje uma gota de vodca para lhe corrigir o mal-estar.

Então, tristemente, +era que suportar os seus inc"modos, e

voltara inconfinen+i ao trabalho. "E de novo vai se matar

durante meses, com vivas saudades daquele dia feliz. Pouco

a pouco no entanto se reanimara, esperara outro dia seme-

lhante, ainda longinquo, talvez, mas que acabara afinal por

nascer.


Quanto ao bofequineiro, depois de fazer fortuna - al-

gumas dezenas de rublos - prepara uma ultima provisão

de vodca - sem batismo, dessa vez - porque e destinada

a si proprio. Basta de negocios, agora +em direito de se di-

verfir. E come‡a então a fes+an‡a, bebida, comida e mUsica.

'Ele +em dinheiro, pode comprar a aquiescencia das autorida-

des subalternas. A festa dura, as vezes, alguns dias. Note-se

que a provisão de vodca depressa e esgotada; ele, então, vai

procurar os colegas, que ia o esperavam, e continua a beber

enquanto tiver uma moeda no bolso. A despeito da vigilanc¡a

dos defen+os, acontece as vezes que um dos bebedos caia

sob os olhos do maior ou dum oficial: levam-no então ao

corpo da guarda, confiscam-lhe o dinheiro, se ainda traz al-

gum consigo, e, finalmerte, passam-no pelas varas. Ele sofre

6

I #


58 DOSTOIEVSKI

o castigo, ergue-se, sacode-se, volta a caserna a dentro de


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