Código da Vida



Yüklə 1,99 Mb.
səhifə10/40
tarix11.08.2018
ölçüsü1,99 Mb.
#69544
1   ...   6   7   8   9   10   11   12   13   ...   40

57

Fiz uma reunião com meus assistentes e comuniquei-lhes as novidades contadas pelo Sinval. Teríamos um laudo oficial para balançar a convicção do Juiz e do Ministério Público, criando o benefício da dúvida para o nosso cliente. Cada assistente foi contando em que pé estavam as suas investigações sobre a vida da mulher. Parece que, embora residindo em São Paulo, ela co­nhecia e freqüentava quase todos os grandes hotéis da cidade, com exceção de um único, por motivos muito óbvios.

Uma das minhas assistentes, a Dra. Maria Clotilde Simigaglia, comuni­cou-me algo surpreendente. Descobriu a escola em que as crianças estuda­vam e disse que, por meio de amigos íntimos, ficou conhecendo a diretora. Tornou-se amiga dela. Passaram a freqüentar-se, a jantar no fim de semana, chegaram à maior intimidade. Clotilde sempre teve grande empatia e simpa­tia. Envolvia as pessoas com gestos sinceros e tornava-se uma convivência e uma companhia agradabilíssima. Mas, com a diretora da escola das crianças? O que isso queria dizer?

— Chefe, a coisa está no seguinte pé — no escritório, eles tinham a ma­nia de me chamar de chefe. — Depois de algum tempo, comentei com a di­retora o caso, nosso ponto de vista e meu desejo de conhecer as crianças, ju­rando, claro, não tocar no assunto. Apenas conviver um pouco com o menino e a menina, ficar com eles numa sala de aula e ministrar-lhes lições extracur­riculares de pintura, escultura e uma bela farra de trinta minutos. A princí­pio, a diretora estranhou, mas cedeu, fazendo-me jurar, e eu jurei, que não mencionaria nada do processo e não falaria nem da mãe, nem do pai delas. Convenci-a de que, se eu me tornasse íntima das crianças, elas se sentiriam mais à vontade na futura audiência em juízo.

Clotilde tinha, realmente, grande facilidade em relacionar-se com crian­ças de qualquer faixa etária. Ficavam fascinadas por ela e suas brincadeiras. Contou-me que os filhos do Sr. Olavo Brás eram conduzidos à escola por um motorista, que ia buscá-los no final das aulas. Geralmente chegava atrasado. As crianças ficavam esperando. Disse que a diretora apresentou-a como tia “Clô” e arrumou um tempinho para ficarem juntas. E que passou a freqüen­tar a escola todos os dias. Se desse para ficar com as crianças, tudo bem. Se não desse, voltava no dia seguinte. No fim das aulas, com o atraso do moto­rista, teve inúmeras oportunidades bem aproveitadas. A tia “Clô” já se consi­derava alvo de absoluta confiança das crianças e uma companheirona para brincar. Confessou-me que chegou a estudar e a aprender mágica para sedu­zir as crianças.

Clotilde assegurou-me que, no dia da audiência, essa intimidade iria fa­cilitar muito o trabalho de todos: juiz, advogados, promotor. Mas ela ainda pretendia, antes da audiência, conseguir algo mais.

— O quê? — perguntei.

— Se conseguir, será uma surpresa, e positiva, para nossa causa.

— Mas diga, então, até para eu ficar torcendo.

— Não. Talvez você me proíba de fazer. Vou tentar sem seu conhecimento prévio. Se tiver sucesso, avaliaremos depois.

Mais um mistério no caso do meu quase-suicida. Dessa vez, o suspense era criado por uma assistente minha. Não podia censurá-la, nem forçá-la a nada. A verdade é que havia tido uma idéia brilhante de tornar-se íntima das crianças, detalhe importante para a futura audiência judicial. Esperávamos que diante do juiz as crianças contassem a verdade. E Clotilde havia criado as condições para isso. Realmente era mágica. A lentidão do Judiciário é tama­nha, que dá tempo para tudo isso, até para acompanhar o crescimento de crianças na escola.

58

Sempre tive sorte com advogados assistentes, meus queridos colabora­dores. Alguns, eu mandava para os Estados Unidos, a fim de estagiar no es­critório de um advogado americano, meu amigo. E de lá voltavam com boa experiência não tanto em Direito, mas em lidar com cliente rico.

Uma assistente minha, que veio estagiar no escritório depois de apre­sentada por Franco Montoro e era de família humilde de Minas Gerais, gente que trabalhava na enxada, causou furor na nossa advocacia, não apenas pela inteligência, mas também pelas idéias práticas que tinha para resolver pro­blemas. Chamava-se Mara Galbier.

Certa vez, estávamos com grande dificuldade para citar um empresário famoso em São Paulo. Sua empresa, respeitada, tradicional, dificultava ao máximo a entrada de oficiais de justiça. No escritório, nem pensar, e sua casa era indevassável. Ficamos colecionando as certidões dos oficiais de justiça, para requerer a citação por edital, o que também não era fácil. Havia um misterioso sistema de defesa do empresário contra citações ou notificações judi­ciais, quando a ele endereçadas pessoalmente. Mara pediu um tempo. Soube que o empresário estava doente. Vestiu-se de enfermeira e colocou um avental de médico no oficial de justiça, inclusive um estetoscópio em seu pescoço.

Chegou às pressas na residência do homem, anunciando o médico, os portões se abriram, ela entrou e acompanhou o oficial de justiça até o quarto do empresário. Lá se identificaram e citaram o réu.

Pela agilidade de raciocínio da moça, entendi que deveria mandá-la para os Estados Unidos, a fim de fazer estágio no escritório do meu corres­pondente. Até então, somente havia mandado os homens. Ela foi e nunca mais voltou. Casou-se com um dos advogados sócios do escritório e hoje pertence a uma das maiores firmas de advocacia em Nova York. Filha de enxadeiros. Mineirinha.



59

Isso tudo aconteceu porque ela me foi apresentada por Franco Montoro, amigo de Mário Covas. E também de Jânio Quadros, que, depois da Prefeitura, resolveu ser candidato a Governador de São Paulo. Em Santos, o ademarismo era absoluto, mesmo porque, além da força de seu partido polí­tico, o PSP, tinha um líder local de grande prestígio, Sílvio Fernandes Lopes. Rubens Ulhoa Cintra e eu, jornalistas de A Tribuna, resolvemos apoiar Jânio e nos engajar na campanha. Atraímos o engenheiro magrinho, Mário Covas, o nosso Zuza, e conseguimos a adesão da respeitabilidade do advogado Ariosto Guimarães.

Fizemos tudo o que podíamos fazer nesse exercício vocacional para o suicídio. Nenhum de nós entendia de política partidária e muito menos das malícias eleitorais. Jânio, creio, perdeu para os votos brancos no litoral pau­lista, mas foi eleito Governador do Estado de São Paulo.

Depois da posse, já como Governador, visitou Santos e foi direto para a redação de A Tribuna, agradecer o apoio dos dois jornalistas. Conquistou to­dos os outros, inclusive os diretores, Giusfredo e Roberto Santini, que ha­viam permitido, em nossas colunas jornalísticas, o escandaloso partidarismo em favor de um dos candidatos, quando a postura ética teria que ser a imparcialidade.

Um dia me chamou a São Paulo, no Palácio dos Campos Elíseos. Entrei em sua sala escura, meio fantasmagórica. Tinha um processo sobre sua mesa.

— Quero que você estude isto.

— O que é?

— Política do café.

— Ah! Afinal chegou sua vez — disse-lhe, lembrando nosso primeiro encontro à beira das caipirinhas.

— São os trabalhos da Secretaria da Fazenda, do Professor Carvalho Pinto, que reuniu as reivindicações dos fazendeiros paulistas e dos comissá­rios de café no porto de Santos, inteiramente antagônicas. Tenho que resumir tudo em documento que assinarei e entregarei ao Presidente da República como a posição oficial do Governo de São Paulo para o próximo regulamen­to da safra. Você ainda escreve sobre esta geringonça?

— Escrevo.

— E já entende?

— Um pouco.

— Então, por favor, meu amigo, leve este calhamaço e me devolva com um resumo. Mas venha pessoalmente, para me explicar suas conclusões.

Levei, estudei, redigi, voltei. Jânio tinha uma perspicácia fenomenal e uma enorme facilidade para aprender qualquer coisa, por mais complicada que fosse. Prestava profunda atenção, sem importar a qual expositor, fazia perguntas sobre pontos que lhe pareciam obscuros e passava a dominar o assunto com tranqüila familiaridade.

Depois me contou que reuniu seus economistas e assessores, inclusive o Professor Carvalho Pinto, e fez a exposição discorrendo sobre todas as reivin­dicações da cafeicultura e dos exportadores do porto de Santos. Criticou-as, rejeitou as absurdas e comunicou suas conclusões em detalhes. Os funcioná­rios estaduais ficaram abismados com a facilidade do Governador para en­tender e resolver a questão que, para seus antecessores, era o mais puro grego. E lançou o grito de guerra: enquanto houver confisco cambial, não haverá re­gulamento de embarque capaz de salvar o Brasil e sua cafeicultura. Era o pri­meiro tijolo de sua candidatura a Presidente.



60

E veio a campanha para Presidente da República. De novo, engajei-me na política e, dessa vez, ganhar em Santos foi fácil. Mas, durante a campanha, de quando em quando, Jânio me chamava para outros lugares. Um dia, fui ao Rio de Janeiro. O assunto era café. Dei a necessária assessoria. Ele se hospeda­va no Hotel Glória, e lá me hospedei também. À noite, no jantar, apresentou-me a um jovem deputado da UDN, que se chamava José Sarney.

— Quero que os jovens se conheçam. O Brasil precisa da inteligência de vocês, meus meninos — e foi conversar com os demais políticos convidados: Carlos Lacerda e outros líderes do partido de oposição na época.

Sarney e eu, como bons meninos, começamos a nos investigar cuida­dosamente, com perguntas hábeis e respostas cuidadosas. Naquela época, ambos adorávamos uísque, sobretudo quando era de graça. Abusamos um pouco, e a conversa ficou mais fácil. De repente, estávamos falando de poe­sia. Descobrimos ter a incorrigível tendência para os versos, literatura, so­nhos, ideais e, o mais surpreendente de tudo, idéias.

A conversa enveredou para Fernando Pessoa. Aí lhe contei que eu parti­cipara do lançamento do poeta português no Brasil, com a fundação do Cen­tro de Estudos Fernando Pessoa, juntamente com Geraldo Ferraz e Patrícia Galvão, em 1956. E que essa iniciativa despertara a atenção de Rui Afonso, que participava do coro dos tebanos numa peça grega, traduzida por Gui­lherme de Almeida e encenada em São Paulo, no Teatro de Arena. Rui teve a feliz idéia de aproveitar o coro dos tebanos e formar um conjunto de decla­madores chamado Jograis e, no Teatro Oficina, em coral, declamaram as poe­sias do poeta português. Sucesso absoluto, começando por “Ode marítima”, poema fantástico.

Sarney ouviu tudo com calma, sorveu um longo e saboroso gole de uísque e disse:

— Ótima contribuição, mas quem lançou Fernando Pessoa no Brasil fui eu.

Pulei da cadeira. Impossível! Nossa primeira discussão. Como? De que forma, em que ano?

— Em 1947, em São Luís, Maranhão. Publicamos poesias dele trazidas por Bandeira Tribuzi, que as conheceu em Portugal. O poeta ainda estava vivo.

Não havia jeito. Ele ganhara a batalha. Mas não tinha o pincenê de Fernando Pessoa, meu prêmio de consolação. Ele seguiu na campanha de Jânio no Nordeste, e eu fiquei no humilde círculo municipal de Santos.

Voltamos a nos encontrar em Brasília, depois da posse do presidente eleito. Jânio me convidara para ser seu oficial de gabinete, encarregado de assessorá-lo na política do café e outros assuntos. Sarney foi indicado vice-líder do Governo na Câmara dos Deputados e todo começo de noite passava pelo Planalto, onde vinha discutir com o Presidente os problemas do Con­gresso, e aproveitávamos para sair juntos, rumo a duas doses de uísque, antes de ir para casa.

O líder do Governo era o Deputado Pedro Aleixo, que se recusava a comparecer à Câmara para assumir o posto. Estava magoado com Jânio, em virtude da vitória da chapa Jan-Jan, Jânio e Jango, e da derrota do candidato a vice pela UDN — União Democrática Nacional —, Professor Milton Cam­pos. Naquele tempo, a lei permitia o lançamento de candidato a vice inde­pendentemente do candidato ao cargo principal de Presidente da República. Com isso, ganhamos a convivência de Sarney.



61

No Planalto, ano zero, trabalhava-se muito. Não havia infra-estrutura, ainda não existia fax, as comunicações se faziam por telex, telefone funcio­nava mal, os ministérios fingiam mudar para Brasília, mas continuavam no Rio. Confusão total. O maravilhoso sonho de Juscelino Kubitschek nas pri­meiras horas era um pesadelo.

A República estava isolada no planalto goiano. A melhor colaboração vinha do Gabinete Militar, sob a chefia do General Pedro Geraldo. Ali se praticavam milagres para manter o Palácio do Planalto em comunicação com a máquina do Governo. Entre os oficiais de enorme eficiência, dois se destacaram: o Major Leônidas Pires Gonçalves e seu colega Ivan de Souza Mendes.

Foi um martírio dar os primeiros passos na administração pública fe­deral naqueles tempos. Onde está o Ministro da Fazenda? No Rio. Onde está o Ministro das Relações Exteriores? No Rio. Acharam o Ministro da Fazenda? Está em trânsito.

Em trânsito queria dizer voando num avião Viscount, que não chegava nunca, não tinha horário certo para decolar, vôo cancelado, muita confusão. Mesmo assim, em apenas sete meses de Governo, Jânio conseguiu fazer o pib crescer 9%.

— Quero um favor de você, e muito especial — disse-me ele, acen­dendo a luz vermelha do lado de fora de sua sala, para ninguém entrar. — Santos. Você conhece bem a cidade e seus políticos, como convém a um jor­nalista competente.

— Conheço, é claro. Qual o problema?

— As eleições municipais, que se realizarão dentro de alguns meses. Vai haver um confronto entre janismo e ademarismo. Pelo janismo, o candidato a prefeito será o Athiê Jorge Cury, que perderá para o candidato do Ademar, seja qual for. Gostaria que você fosse a Santos, reunisse nossos amigos e lan­çasse um candidato em nome do janismo. Sua autoridade lá, sob esse aspec­to, é indiscutível.

— Espere um pouco: se eu conseguir que os nossos amigos lancem um candidato, o Athiê vai desistir?

— Não. Continuará candidato.

— Então vamos perder mais fácil ainda.

— Mas teremos perdido, porque o janismo foi dividido. É essa a sutileza.

— Uma sutileza de elefante.

— Elefante é o Athiê, que não abre mão da candidatura, e sua derrota será fragorosa. Lance um outro janista idôneo, se possível seu amigo, na sua faixa etária, e que tenha participado de nossa campanha.

— Mário Covas — disse eu.

— Pode até ganhar.



62

Lá fui eu para Santos. Convencer o Zuza foi uma dureza. Primeiro, por­que não queria saber de política. Participar da campanha do Jânio era uma coisa, mas ingressar ele próprio na política era outra, que não lhe agradava de maneira alguma. Depois vacilou. Lila, sua mulher, ajudou-me decisivamente. Com a vivacidade característica de sua inteligência, Mário Covas fez seus rápidos cálculos matemáticos (nisso era imbatível) e logo concluiu: “Além do mais, o eleitorado janista vai ficar dividido, e não temos a menor chance de ganhar!”. Expliquei-lhe a angústia de Jânio e a sutileza do elefante. Consentiu em ser candidato.

Athiê não desistiu e atrapalhou o que pôde. Nos fins de semana, eu ia a Santos e dava à campanha de Covas a “autenticidade” janista. Finalmente, vieram as eleições, e quase ganhamos. Covas ficou em segundo lugar, com uma votação consagradora para um estreante na cidade tão politizada. Athiê sofreu a prevista rejeição do eleitorado. Jânio vibrou. Telefonou para o Mário Covas, dizendo que esperava dele a liderança do janismo em Santos.

Um pouco antes da posse do vencedor do pleito eleitoral pelo ademarismo, o Dr. Luiz La Scala, o prefeito eleito sofreu um acidente e faleceu, si­tuação altamente triste, constrangedora, lamentável.

Mas o fato desencadeou um movimento irresistível nos meios políticos. Deveria assumir o segundo colocado, porque, sem a posse do titular, o vice, o radialista José Gomes, ainda não teria o direito de substituí-lo. O pessoal foi discutir no Judiciário. Em primeira instância (hoje, jurisdição de primeiro grau), a sentença foi clara: o vice tinha direito autônomo. Se o titular não assume o cargo, o vice tem direito de tomar posse. Fim de papo.

Fim de papo coisa nenhuma. Recurso para o Tribunal Estadual. Sen­tença confirmada. Recurso para o Tribunal Superior Eleitoral.

Entendimento confirmado: o vice, embora o titular não tenha assu­mido, tem direito autônomo ao cargo, para o qual foi eleito tão legitima­mente quanto o seu companheiro de chapa, ou independentemente dele.

Ficamos conformados. O pronunciamento da Justiça é mais sábio do que a inexperiência da moçada movida a entusiasmo.



63

Vamos fazer um vôo no tempo, um vôo de vinte e cinco anos para o fu­turo. Mário Covas, eleito deputado federal. Tancredo Neves, eleito presidente da República no Colégio Eleitoral, juntamente com seu vice, José Sarney.

Na véspera da posse, Tancredo adoece e vai para o hospital, fato que o País conhece. E armam a encrenca legal que eu conhecia bem: o titular não tomou posse e, em conseqüência, o vice não pode assumir. O cargo vago teria que ser exercido pelo Dr. Ulysses26 Guimarães, presidente da Câmara. Confusão geral no país. Rádio, televisão, juristas dando opinião de um lado, rebatida por outros juristas, políticos inflamados, e o Dr. Ulysses, é claro, deli­ciado com a hipótese, mais pressionado por amigos do que por idéia pró­pria. Um grupo de deputados, liderados por Freitas Nobre, e de senadores, instigados por Saldanha Derzi, fazia algazarra para Ulysses assumir a Pre­sidência da República, solução que, pelo Direito Constitucional vigente, equivalia a declarar vagos os cargos de Presidente e de Vice-Presidente, isto é, um golpe de Estado.

Sarney, um eterno e teimoso conciliador, conta essa história de forma diferente. Afirma que o Dr. Ulysses defendeu a posse do Vice desde o pri­meiro minuto. Não é bem assim. Nos primeiros momentos, o então Presi­dente da Câmara deslumbrou-se com a hipótese de assumir a Presidência da República, movido, porém, pela idéia de convocar eleições diretas no prazo constitucional. Afinal, ele era chamado de “o Senhor Diretas”. Deixou-se prazerosamente emprenhar pelos ouvidos.

Para complicar ainda mais, o então Presidente da República, o último da ditadura, General João Batista Figueiredo, mandou mais lenha na foguei­ra. Sarney não podia assumir. Prendo e arrebento. Seu Ministro do Exército, General Walter Pires, com gestão por mais um dia, ameaçava acionar seu “dispositivo” para impedir a posse de Sarney. Figueiredo foi claro: se Sarney assumisse, não lhe passaria o cargo. Estava de mal, isto é, odiava Sarney, por­que possibilitara a eleição de Tancredo. O candidato do general era Paulo Maluf, que perdera no colégio eleitoral. Figueiredo e muitos militares acha­vam que a culpa era de Sarney. A Aeronáutica queria anular a eleição pelo Congresso. Confusão dos diabos.

Eu estava num restaurante de Brasília, tomando aperitivo bem antes do jantar e, com alguns amigos, festejando o fim da ditadura. Zequinha Sarney me achou:

— Papai quer falar com você agora, lá no apartamento dele. Eu levo você.

Lá se foi o meu jantar. No apartamento, a maior confusão. Sarney es­tava calmo, mas o entorno estava muito agitado. As idas e vindas do Hospital de Base eram martirizantes. Versões, recados, comentários, opiniões, vaticínios, deduções e, ainda bem, algumas orações comovidas. Passado algum tempo, chegou o General Leônidas Pires Gonçalves, já nomeado Ministro do Exército por Tancredo, decreto assinado, como todos os demais que seriam publicados depois da posse do Presidente da República. A nomeação, por­tanto, não valia.

Leônidas trazia um exemplar pequeno da Constituição, aberto no arti­go que tratava da posse de Presidente e de seu Vice, e que dizia:

“Se decorridos dez dias da data fixada para a posse, o Presidente ou o Vice-Presidente, salvo motivo de força maior, não tiver assumido o car­go, este será declarado vago pelo Congresso Nacional” (parágrafo único do art. 76 da Constituição então vigente).

Esse “ou” era de uma clareza ensolarada. Se um não pode tomar posse, pode o outro. Logo, depois do “ou”, o outro pode. O “ou” do texto legitimava a posse do Vice sem a posse do titular. Além do mais, para entregar o cargo ao Presidente da Câmara, o Congresso deveria iniciar o processo com uma prévia declaração de vacância, o que seria uma farsa por duas razões: o Pre­sidente eleito, doente, não podia tomar posse por motivo de força maior, res­salva expressa no texto constitucional. E o Vice não estava doente. Nada o impedia de tomar posse no cargo para o qual fora eleito — o de Vice —, com as funções de substituir o Presidente em caso de impedimento temporário, ou de sucedê-lo em caso de morte, renúncia ou impeachment. É a disciplina constitucional. A urubuzada temia a primeira hipótese. Se Tancredo morres­se, Sarney seria o Presidente nos seis anos seguintes.

Aproximei-me de Sarney e disse, apontando para o general:

— Eu e meu colega aqui, emérito constitucionalista, concordamos que o Vice pode tomar posse por causa do “ou”. Se o Congresso não se reunir, a Constituição autoriza a posse perante o Supremo Tribunal Federal.

Sarney sorriu, porque eu chamara o general de colega. O destino é ca­prichoso. Leônidas tinha pertencido à equipe de Jânio em 1961, trabalhara na Presidência da República. Fôramos bons companheiros. Era major na­quele tempo, como contei acima. A amizade permitia a brincadeira, mesmo no ambiente tenso daquela noite.

Afonso Arinos deu uma entrevista para a televisão:

— O Dr. José Sarney não é vice do Dr. Tancredo Neves; é Vice-Presi­dente da República.

Permanecia, porém, o impasse. E Sarney explicou por que me chamara:

— Claro que quero sua opinião, mas a questão constitucional não é tão complexa como está sendo pintada pelos políticos. Eu até preferia espe­rar o Tancredo para tomarmos posse juntos. Mas temos todos que nos sub­meter ao procedimento constitucional. O problema é que um dos líderes dessa tese doida contra a posse do Vice é o Mário Covas. Gostaria que você falasse com ele.

— Zuza, aqui é o Saulo. Tudo bem?

— Tudo bem nada — respondeu. — Veja a crise que está nos ameaçando.

— A crise está sendo criada por vocês do MDB — Movimento Demo­crático Brasileiro —, que querem dar a Presidência da República para o Dr. Ulysses e, para isso, estão enchendo a cabeça do velho.

— Saulo, respeito sua amizade pelo Sarney, mas a verdade é que, Tan­credo não tomando posse, o Vice não tem a quem substituir, já que o cargo está vago. Pela Constituição, deve assumir o Presidente da Câmara, estando vago o cargo.

— Pára com isso, Zuza! Desde quando você virou jurista? E outra coisa: minha amizade pelo Sarney é igual à que tenho por você. Nisso o jogo está empatado, e é favor respeitar. Agora me permita esclarecer o que está escrito na Constituição, pois aqui entra, mais do que amizade, a minha inteira devo­ção ao Direito. Dessa matéria entendo eu.

Descrevi didaticamente. Ele ainda ficou na dúvida, rebatendo com o argumento de que outros advogados tinham opinião contrária, acrescendo um fundamento, mais fruto de paixão do que de sua inteligência: esta Cons­tituição é dos militares.

— Mas você foi eleito por ela. Tancredo e Sarney também. O Dr. Ulys­ses é Presidente da Câmara por causa desta Constituição dos militares. E espere aí. Guarde a faca. O principal objetivo do meu telefonema é avisar você que já existe jurisprudência na Justiça Eleitoral, declarando que o vice, mesmo sem a posse do titular, tem direito autônomo ao exercício do cargo, como substituto no impedimento, ou sucessor na vacância, independente­mente da posse do titular — repeti. — Jurisprudência firmada há mais de vinte anos.

— Em que caso?

— No seu.

— Quê?


— No seu caso, meu querido, na eleição para a Prefeitura de Santos. Você mesmo ingressou em juízo para impedir a posse do José Gomes, o vice do La Scala, que morreu antes de assumir.

— Meu Deus, é verdade!

— Já pensou algum advogado soprar para a imprensa, no meio desta confusão, que a jurisprudência foi firmada num caso seu, e você continua a berrar que o Vice não tem direito à posse?

— Você não vai fazer isso comigo!

— Desde que você pare de contrariar a jurisprudência de nosso país, que você mesmo provocou. E passe a respeitar a Constituição dos militares, pela qual você se elegeu, até que o Congresso escreva outra pelos meios nor­mais, com sua ajuda.

— Está bem, está bem. Vou falar com o Ulysses, e acabamos com essa encrenca.

Já era noite alta, quando Ulysses Guimarães deu entrevista às televisões e às rádios, reconhecendo que o Vice deveria tomar posse.

Horas complicadas aquelas. Sarney me contou, e a madrugada já vinha chegando, que Tancredo, com sua enorme experiência e vivência de muitas crises brasileiras, havia articulado a pacificação com todas as alas militares já antes da eleição no Colégio Eleitoral. E nisso teve a ajuda inestimável de Leônidas Pires Gonçalves, inclusive mais tarde na nomeação de Moreira Lima para Ministro da Aeronáutica. Uma expressiva parcela da Força Aérea, ligada ao brigadeiro, inconformada com a vitória de Tancredo, tinha “planos radi­cais para cancelar a eleição presidencial”.

Aliás, na campanha pelas eleições diretas, que mobilizou o povo brasi­leiro de forma impressionante, os comunistas e esquerdistas extremados qua­se puseram tudo a perder. Houve um comício em Goiânia, ao qual compa­receram em peso com bandeiras vermelhas, foice e martelo, gritando frases duras contra os militares. Não deu outra: nova conspiração das altas patentes. Vinte anos não foram suficientes! É preciso mais!”. Fomos salvos, por incrí­vel que pareça, porque o Congresso Nacional derrotou a emenda das diretas. Diante disso, os militares passaram a acreditar que poderiam ganhar as elei­ções naquele eleitorado encurralado e medroso.

Lançada a candidatura de Tancredo Neves, os militares vieram com Paulo Maluf, que derrotou Andreazza na convenção do PDS — Partido De­mocrático Social —, partido deles. É preciso lembrar que o sistema autoritá­rio da ditadura resolveu devolver não a liberdade política aos brasileiros, mas o poder aos civis, certos de que o eleito seria Paulo Maluf, cria do General Costa e Silva, e fidelíssimo aos comandantes, inclusive ao General Newton Cruz, que cavalgava golpes de Estado em todos os seus sonhos.

O Presidente da República, João Figueiredo, declarava em público que o vencedor das eleições no Colégio Eleitoral seria empossado. Defendia a lega­lidade então vigente. Mas, em particular, dizia: “Tancredo, never!”..

Pois o Colégio Eleitoral elegeu Tancredo Neves por 480 votos contra 180 dados a Paulo Maluf. Desde esse resultado, começaram os problemas para a posse do presidente eleito. Tudo era pretexto. As fotos do comício de Goiânia, bandeiras vermelhas com foice e martelo, voltaram a circular nos quartéis. O PT agitando o máximo, com viseiras e sem visão. Quase faz os mi­litares retomarem o poder por mais vinte anos.

O próprio Tancredo Neves, no Hospital de Base, confidenciou a seu so­brinho, Francisco Dornelles, temer que Figueiredo não permitisse a posse de Sarney. Quase acertou. O general engoliu a posse, mas não transmitiu o cargo.

Depois que Mário Covas se convenceu, Leônidas e Ulysses Guimarães foram ao Leitão de Abreu, Ministro Chefe do Gabinete Civil do Presidente Figueiredo, e comunicaram haver harmonia no entendimento de que o Di­reito Constitucional vigente determinava a posse do Vice independentemente de haver assumido o titular do cargo.

Walter Pires, então Ministro do Exército, ao ter conhecimento de que seria empossado Sarney, avisou: “Então vou agora mesmo para o ministério, mobilizar nosso dispositivo”. O doutor Leitão de Abreu calmamente ponde­rou: “General Walter Pires, o senhor não é mais ministro. Nos quartéis, quem já está dando ordens é o General Leônidas”. A nomeação dele para Ministro do Exército, naquele momento, não era válida. Leitão de Abreu blefou. E ninguém pagou para ver.

Na verdade, toda essa conversa de interpretações constitucionais queria dizer o seguinte: não adianta pensarem em mais um golpe, pois haverá resis­tência e, desta vez, com divisão das próprias Forças Armadas. Leônidas Pires Gonçalves estava do lado da legalidade, com o controle da tropa e daquele pequenino “ou” do artigo da Constituição.

Restaurar a democracia, naquele momento, não foi fácil. Eu estava lá. Meninos, eu vi!

Leônidas voltou ao apartamento de Sarney. Havia pouca gente, pois a notícia de que Ulysses estava convencido apaziguou os ânimos. Mas o que se desejava saber era como estavam os “ânimos” da tropa, não muito afeita a essa história de Direito Constitucional, mesmo porque o “agito” tinha sido muito grande pela televisão e rádios. O novo Ministro do Exército, meu an­tigo amigo “Major” Leônidas, relatou a conversa com Leitão de Abreu, a en­gasgada de Walter Pires e assegurou que tudo estava em ordem. Eram três horas da madrugada, quando ele ligou para o Sarney e disse:

— Boa noite, Presidente!

Fiquei mais uns dez minutos, tempo para retomar uma dose de uísque, operação que havia interrompido antes do jantar. Aliás, acabei não jantando. Foi minha vez de dizer boa noite, observando:

— Sem continência, visto que sou reservista de terceira categoria.

Sarney devolveu rápido:

— Mas pode fazer continência no uísque. Amanhã precisamos estar lúcidos.

— Calma, meu compadre! Você precisa estar lúcido. E estará. Eu não. Depois de sua posse, volto para casa. Não pertenço a seu governo. Sou advo­gado em São Paulo, embora exerça a advocacia com total lucidez .

No dia seguinte, Sarney tomou posse perante o Congresso, sem contes­tação de ninguém. Recebeu cumprimentos do Dr. Ulysses Guimarães e de Mário Covas Júnior, deputado e engenheiro já não tão magrinho como antes.

Até hoje, ao lembrar esses fatos, Sarney faz enorme confusão sobre um detalhe importante: costuma dizer que eu queria pedir mandado de segu­rança para assegurar sua posse. E dá risada! Na confusão, ele próprio não en­tendeu. O que eu afirmei foi que, pela Constituição vigente (está escrito lá, basta ler), se o Congresso não se reunisse, a posse poderia ser tomada perante o Supremo Tribunal Federal. Eu próprio havia feito minhas sondagens, e o Supremo estava pronto para reunir-se e dar posse ao Vice-Presidente eleito. Basta conferir com seus ministros. Estão, felizmente, quase todos vivos.



Yüklə 1,99 Mb.

Dostları ilə paylaş:
1   ...   6   7   8   9   10   11   12   13   ...   40




Verilənlər bazası müəlliflik hüququ ilə müdafiə olunur ©muhaz.org 2024
rəhbərliyinə müraciət

gir | qeydiyyatdan keç
    Ana səhifə


yükləyin