Código da Vida



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Embora na conferência da OAB tivéssemos apenas abordado o pro­blema, a verdade é que a Amazônia se tornou uma terra sem lei. Tudo ali é mentira: títulos de propriedade privada de terra sobre áreas devolutas, de domínio público; derrubada de florestas, negócio altamente rentável, mas desgraçadamente destrutivo das riquezas ambientais; grileiros, ladrões, pis­toleiros, assassinos, misturados com uns coitados que se dizem trabalhadores sem-terra, mas igualmente aventureiros, pois ninguém respeita a floresta. To­dos matam a mata. Seja o poderoso grileiro, seja o modesto sertanejo que chegou a pé, todos têm tara pela tora.

O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, órgão científico que reúne 2500 cientistas do mundo todo, reunido em Paris decretou: o aquecimento global é irreversível e provocará mudanças intensas, longas e violentas. A emissão de gases, desde o final do século XIX, já comprometeu o clima dos próximos cem anos. Não há mais volta. As fumaças do carvão, desde as primeiras que transformaram o mundo econômico, somadas às do petróleo queimado, enfim, os combustíveis fósseis que moveram as indús­trias, os navios, os carros, os caminhões, os trens, vão se vingar do homem. A eles se juntarão os fantasmas das florestas derrubadas e incendiadas.

Há pouco tempo, com o assassinato da freira Dorothy Stang, em Anapu, Pará, Gervásio construiu sua própria teoria, que, na prática, nada tem de diferente:

— Quem matou a religiosa foi o Governo brasileiro. Os pistoleiros ape­nas executaram a tarefa. Isso vem de longe. Em 1985, em Carajás, assassina­ram uma outra freira, irmã Adelaide Molinari. Naquele ano, em Xinguara, mataram mais de dezessete pessoas, e ninguém foi punido até hoje. Há mais de vinte anos, vêm sendo executados sindicalistas, gente pobre e maluca, que ouviu histórias sobre terras fáceis e se mandou para lá.

— Você acha que o Governo pode resolver o problema com reforma agrária? — perguntei a Gervásio.

— Não. O modelo de reforma agrária pensado pelos brasileiros já foi para o espaço. Essa história de assentamento de famílias de pequenos agri­cultores virou lambança. O que se faz é dar um pedaço de terra, para os sem-nada poderem apenas morar. Depois, as confusões surgem naturalmente. Vira movimento político. Só isso. Hoje não existem mais os sem-terra. O movimento virou concentração de desempregados, que prestam para reali­zar marcha. Nisso são bons, organizados.

Gervásio estava inspirado:

— Assentamento acaba servindo até de esconderijo para bandido — continuou ele. — Surge o comércio de lotes, o troca-troca do uso. Veja o que acontece na Serra da Capivara, patrimônio da humanidade, no Piauí. Os sem-terra invadem e destroem os abrigos de arenito, onde estão pinturas rupestres de mais de 10 mil anos. E reivindicam o lote de terra para morar nele. Vivem da caça no local e do desmatamento. Em outros estados, os sem-terra querem saber de agricultura? Que nada! Negociam “direitos”, abrem um botequim, cultivam porres e cachaçadas. Pouco trabalham e fundam cooperativas.

Gervásio era impressionante. Conhecia fatos nos mínimos detalhes. E prosseguiu:

— Aos poucos, o crime se infiltra entre eles. No Rio Grande do Norte, achacam fazendeiros para não invadirem suas terras. E ainda usam o Incra para ameaçar os que resistem, com declaração de improdutividade de suas fazendas. Em São Paulo, no município de São Simão, ocuparam terras da Es­tação Experimental, estão destruindo as matas e as plantas do banco genético da Embrapa,31 há mais de dez anos sabe para quê? Para fazer carvão. Os sem-terra ali viraram carvoeiros. Cada rancho tem seu forno. Cada forno devora árvores e árvores e árvores. No Pará, a coisa é mais feia. Na Amazônia, em ge­ral, a questão é insolúvel.

— Mas é fundiária — afirmei.

— Mais que fundiária. É o processo de destruição da floresta amazôni­ca. Toda vez que o Governo constrói uma estrada naquela região, o que acon­tece? Progresso? Civilização? Nada disso! Surgem os grileiros de terra, que atraem as madeireiras para cortar as árvores, levar os troncos, deixar as áreas limpas para plantio e fazer estradas vicinais, por onde transportam a pilha­gem. E logo vêm os sem-terra reivindicando direito de ocupar áreas tomadas pelos grileiros, porque são públicas. Eles sustentam que as terras, por serem públicas, são deles. Como são mais pobres, merecem o apoio e a orientação dos religiosos, em geral estrangeiros, que foram para lá salvar almas não sei há quanto tempo.

— Mas é uma questão social relevante, pois se trata de pessoas lutando pela sobrevivência por meio da produção agrícola, o que interessa ao país. Podiam ser orientadas para explorar a agricultura sem matar a mata.

— Não interessa, não senhor! — respondeu Gervásio em voz alta. — Ao país interessa conservar a floresta amazônica e encontrar meios inteligen­tes de explorá-la sem destruí-la. Com a bagunça, vão acabar fazendo da Ama­zônia o que fizeram com a Mata Atlântica.

— Mas a ida de gente para aquelas bandas é uma realidade creio que irreversível.

— Coisa nenhuma! As matas ainda estão lá, e, portanto, ainda há tem­po. Tem que pôr para correr os grileiros, os madeireiros, com todos os seus exércitos de pistoleiros; fechar os cartórios de notas que fornecem escrituras frias para falsos proprietários de terra, que dizem tê-las comprado no inven­tário de Pedro Álvares Cabral. Aliás, naquelas bandas, cartório de registro de escrituras de quando em vez pega fogo, e os registros se perdem. Ficam va­lendo os papéis fajutos, que foram falsificados para dar títulos de proprie­dade a grileiros.

— Mas até isso acontece? Fogo nos cartórios?

— Acontece de tudo naquele imundo mundo sem solução e sem Rai­mundo, apenas com pistoleiros do tipo Fogoió.32

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Gervásio estava furioso. E continuou:

— O povo pobre, atraído para lá, foi traído lá mesmo. Tem que ser con­duzido de volta à realidade, a lugares onde possam trabalhar de verdade como gente digna, e não como formigas daninhas perdidas na floresta. No Pará, é fantástico o número dos crimes de morte sem solução. Por quê? Porque ali as razões dos assassinatos tornaram-se motivos considerados justos. Pessoas são mortas por causa de mulher, boi e terra. Entre eles, não há razão moral para punir os assassinos.

— Creio que a solução — disse eu — está em medidas governamentais que levem para lá a presença do Estado de Direito, polícia, Judiciário, instru­mentos de aplicação da ordem legal.

— Faça poesia, meu poeta. Deixe de pensar em solução jurídica! Lem­bro-me de um verso seu no livro Café: cada árvore caída é uma oração inter­rompida. Uma floresta inteira derrubada é agressão a Deus. Dentro em breve, teremos um problema que vai fundir a cuca de vocês, juristas: os povos mais fortes ou organizações como a ONU começarão a cobrar de nós a preservação da Amazônia nos termos ditados por eles. Você vai ver. Teremos um choque entre a soberania nacional e o Direito da Humanidade. Nossos homens pú­blicos estão preparados para um debate dessa grandeza? Ultimamente, o povo tem elegido um número enorme de analfabetos, que não sabem distin­guir uma coisa da outra.

— Espera um pouco — interrompi. — Nós temos gente capaz de en­frentar a discussão. O Professor Aziz Ab’Saber, que conhece tudo da Amazô­nia. Gente nossa, nunca ouvida, nem consultada. Um Cristovam Buarque, por exemplo, grande estudioso da Amazônia. Sabe das coisas. Ele há muito tempo adverte sobre o embate que se travará entre soberania política e ética internacional. Acredita também na hipótese de não cuidarmos da floresta e na conseqüência de organismos internacionais virem para cá, mesmo contra nossa vontade.

— Que nada. Ele sabe das coisas para conversar aqui, em conferências nas universidades brasileiras. Foi candidato a Presidente da República com uma linda bandeira, a educação. Teve apenas dois por cento dos votos. O po­vão não está nem aí. Mas o pepino está lá fora. Por exemplo: um Pascall Lamy, francês, ex-comissário para o Comércio da União Européia, hoje di­retor geral da Organização Mundial do Comércio, figura de influência no inundo, prega abertamente a gestão coletiva de bens públicos mundiais. E cita a Amazônia, em defesa do direito da humanidade a respirar. Foi ele que, aliado à incompetência do Governo Lula, matou as negociações da Rodada de Doha, frustrando o mundo de um acordo contras as tarifas do comércio externo e os subsídios agrícolas dos países ricos. Há também um Roger Higman, inglês, que já chegou a redigir as regras de administração interna­cional da Amazônia.

— E você acha que isso, um dia, será possível?

— Não sei. Mas tudo tem um começo. E faz tempo que começou. No século passado, no tempo de D. Pedro II, em 1850, um tal de Mathew Maury, do Observatório Naval de Washington, sustentava o direito de livre navega­ção internacional no Rio Amazonas. Sabe qual o fundamento?

— Não tenho a menor idéia — respondi, por ignorar completamente esse dado da História.

— Pelo volume de água do Rio Amazonas, que, só por isso, deveria ser incorporado ao direito marítimo sob leis internacionais. Para dar efetividade a essa teoria, os americanos mandaram um navio invadir o nosso rio. Subiu até Iquitos, no Peru, sem licença do nosso Governo. Aquele tal de Maury fez a primeira propaganda internacional da internacionalização da Amazônia. D. Pedro II reagiu e criou um problema diplomático com os norte-ameri­canos. Seu embaixador nos Estados Unidos, Sérgio Teixeira Macedo, brigou duro e convenceu o governo de lá a parar com essas besteiras.

— Pois nunca ouvi falar disso — confessei eu, reconhecendo minha in­suficiência de conhecimentos da História do Brasil, aliás, tanto quanto a mé­dia geral dos brasileiros.

— O mais perigoso — prosseguiu Gervásio — talvez seja a nossa incom­petência em lidar com a matéria. Os militares, no governo deles, partiram do princípio de que a floresta pode ser destruída desde que o seja por brasileiros. Os governos civis que se seguiram não mudaram o rumo da cretinice e permi­tiram as madeireiras, os grilos de terra, os falsos assentamentos de sem-terra, na maioria também falsos. Hoje, existe até site na Internet vendendo terras na Amazônia para os americanos. No anúncio, além de ofertas de lotes de até um milhão de acres ou mais, afirma-se que a floresta é o melhor investimento da atualidade. Acrescentam: ali não tem furacão, terremoto, terrorismo. Paraíso para viver, com abundância de água. E mentem: clima fresco, agradável.

— Na Internet?

— Sim, senhor. Pode acessar: www.resourcesbrazil.com. Pergunto: o que estão comprando aqueles americanos? Dentro de pouco tempo, aparece­rão por aqui com suas escrituras e com tropas para fazer valer suas proprie­dades. Tudo isso misturado acaba sempre em desmatamento predatório e conflitos. O mundo está de olho. Um dia vai querer pôr a mão.

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— Você está falando bonito e certo, meu caro Gervásio — observei diante de seu discurso. — Mas falar certo e bonito nada resolve. Lembro-me de um livro, publicado em 1970, com o título Amazônia: expansão do capi­talismo, que previu como o desenvolvimento capitalista da Amazônia seria caracterizado pela violência e pela brutalidade. Sabe quem é o autor?

— Nem conhecia a existência desse livro! — respondeu Gervásio, atô­nito. — Quem o escreveu?

— Fernando Henrique Cardoso.

— Não me diga! Essa é surpreendente!

— Quando ele era professor de sociologia e ainda não havia sido con­taminado pela política — contei —, sabia pensar. Na época, os militares sus­tentavam a tese, sempre fundada na maldita segurança nacional, de que a Amazônia deveria ser povoada pelos brasileiros e, assim, assegurar nossa posse do território. Nada de planejamento. Apenas povoar, e o resto que se danasse. Para isso, abriram a estrada Transamazônica sem nenhum plane­jamento para o que viria depois. Abriram a Belém-Brasília. Deu no que deu. Fernando Henrique previu. O livro dele é muito bom na análise desse problema.

— E quando Fernando Henrique tornou-se Presidente da República lembrou-se do que escreveu e fez alguma coisa pelo problema da Amazônia?

— Fez nada. Permitiu, também sem planejamento, que o Movimento dos Sem-Terra levasse gente para lá e deixasse o Sul em paz. E paz não houve. O movimento dos sem-emprego a cada dia tornou-se mais violento. No Rio Grande do Sul, além das invasões, adotou-se a estratégia de guerrilha para destruir propriedades e até centros de pesquisas florestais.

— É verdade. Surgiu uma tal de Via Campesina que, financiada pelo Ministério do Meio Ambiente, invadiu e destruiu os laboratórios da Aracruz. Eu não como eucalipto, gritava uma das mulheres predadoras do horto flo­restal. Vinte anos de pesquisas científicas foram pisoteadas e reduzidas a pó. Dinheiro público sustentando ações de vândalos e bandidos. E Via Campe­sina tem um site na Internet, no qual festejou seus atos de violência utili­zando-se de versos de Vinícius de Morais: as mudas gritaram de repente e não mais que de repente o riso da burguesia fez-se espanto, tornou-se esgar, desconcerto. Além da destruição de vinte anos de pesquisa científica, assassi­naram o soneto de Vinícius.

— Sob os aplausos do chamado líder do MST João Pedro Stédile, que ainda está solto em nome da democracia, mas fazendo agitação contra o agronegócio, dizendo que não há mais o antigo latifúndio improdutivo. Ago­ra a luta é contra as empresas produtivas, o capital internacional, o capital fi­nanceiro, como costuma dizer para incentivar quebra-quebra sob os olhares complacentes do Governo. Uma cantilena antiga, dos anos 60, para justificar a baderna moderna. E ninguém faz nada para impedir essa desconstrução da ordem pública e do ordenamento jurídico.

Gervásio estava ferino. Tivemos a boa idéia de tomar um cafezinho. Ele continuou:

— O PT tem um membro de seu diretório, íntimo amigo do Presidente Lula, um tal de Bruno Maranhão, que comandou uma invasão da Câmara dos Deputados pelos sem-terra, integrantes de uma organização que recebeu mais de cinco milhões de reais do Governo, dinheiro nosso, do povo, usado para financiar quebra-quebra do patrimônio público. Quebraram tudo, computadores, portas e tentaram assassinar um segurança. Lembra-se do dia em que isso aconteceu?

— Creio ter sido em um dia qualquer de junho.

— Dia qualquer não senhor. Foi no dia 6 de junho de 2006, que se es­creve 6.6.2006, os números da Era da Besta. Trabalham para o diabo esses se­guidores de Fernando Henrique e Lula.

— Mas tudo isso aconteceu no Governo Lula. Fernando Henrique, creio, nada tem que ver com essa história.

— Claro que tem. Ele plantou as sementes das impunidades, colhidas e multiplicadas pelo MST. Quanto ao livro, você se lembra, Fernando Henrique pediu expressamente que os brasileiros esquecessem tudo o que havia escrito, e sua palavra passou a ser, para sempre, um risco na água. Hoje está por aí, fa­lando mal do Governo, querendo voltar ao poder, confessando desejá-lo para comandar o atraso. No caso da freira Dorothy, parece que ele calou o bico. Por quê? Porque ele, indiretamente, permitiu as circunstâncias que mataram a freira. Defender o direito da humanidade é fácil. Difícil é disciplinar o ser humano.

Depois de refletir um pouco, Gervásio concluiu com a voz pausada:

— Um dos maiores males que o Fernando Henrique fez ao Brasil foi ter criado a reeleição e eleito o Lula, que se reelegeu graças ao grande sociólogo. Ele foi o maior eleitor desse espetáculo de vacuidade.



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Conversamos sobre as várias hipóteses para salvar da devastação aque­las e outras áreas da Amazônia. Expliquei ao Gervásio que nossa legislação permite três modalidades de defesa: decretação formal de floresta nacional, que admite, sob vigilância, o corte sustentável de madeira; criação de parque nacional, que não admite exploração alguma, a não ser o fim turístico; e, finalmente, a instituição de estação ecológica, que se torna inviolável, fechada até para visitas.

— Parece que o Governo Lula resolveu tentar algo diferente — comen­tei. — Privatizar a exploração da floresta fundada numa informação tributá­ria: será possível, segundo cálculos do Ministério da Fazenda, recolher cerca de cem milhões de dólares anuais em impostos, se a atividade for permitida a particulares. E querem permitir sob a forma de concessão por sessenta anos para exploração de terras públicas. A Receita Federal fez as contas e entende que a solução renderá altos lucros para o Tesouro Nacional.

— Santo Deus! — disse Gervásio. — A Receita Federal, que sistemati­camente sufoca os empresários brasileiros com a maior carga tributária do inundo, preparou-se para acabar também com a Amazônia?

— Tudo em nome do assassinato da freira Dorothy. Disseram que se devia prestar um tributo ao sacrifício da religiosa, e o Governo entendeu como arrecadação tributária. E a corrupção? Você pensa que toda essa ma­deira, ilegalmente extraída em volumes fantásticos, anda sozinha pelas matas, pelas estradas e chega aos portos sem logística? Primeiro é preciso ter Autorização para Transporte de Produtos Florestais.33 Quem emite? Pode in­vestigar. Tem funcionário do Ibama, funcionário dos governos estaduais, gente graúda metida nisso.34

Lembro-me bem que, no Governo Sarney, houve um desmatamento na Amazônia de 17,6 mil quilômetros quadrados no biênio 1988/1989. Mais ou menos no grito, e com a colaboração dos governadores, conseguimos baixar para 13,8 mil quilômetros quadrados no biênio 1989/1990. Mantida a nossa estratégia, no início do governo Collor o desmatamento baixou para 11,1 mil quilômetros quadrados. Depois voltou a degringolar. Em 1994/1995, chegou a 29,1 mil quilômetros quadrados e, finalmente, no Governo Lula, com a Mi­nistra Marina Silva prometendo passaportes para o paraíso, o desmatamento manteve-se em 27,2 mil quilômetros quadrados em 2003/2004.

É um crime pior do que o caixa dois, coisa de bandido, segundo o então Ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos. Não dá para dizer que o Presi­dente Lula não sabia de nada. Vinte e sete mil quilômetros quadrados de mata derrubada é muito chão. O comércio de tanta madeira somente pode ser efe­tivado com a conivência dos governos estaduais e federal. Ou não?

Basta olhar para o sul do Maranhão. Desmatamento desenfredado, so­bretudo nos municípios de Grajaú e Arame, com a derrubada de jatobás, ipês, cedros e outras árvores centenárias. Quase trinta mil hectares. No Governo José Reinaldo, cria do José Sarney, lembrou-me Gervásio. E acrescentou:

— Os índios guajajaras também vêm desmatando a troco de dinheiro. Nas suas reservas ninguém entra, a não ser grileiros, madeireiros, carvoeiros, serradores, plantadores de maconha e bandidos, uma vez que a polícia não tem coragem de enfrentar os índios. As toras desfilam sobre caminhões à noite e livremente.

74

De repente, Gervásio me olhou e mudou de assunto:

— Você evitou algo parecido com a Ilha de Fernando de Noronha. Ago­ra me lembro. O Brasil deve essa a você. Pouca gente sabe. Ou pelo menos ninguém reconheceu até hoje.

É verdade. Eu mesmo já havia esquecido. A Constituinte, contrariando a velha regra de que as ilhas oceânicas eram de domínio da União, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (art. 15), extinguiu o Território Fe­deral de Fernando de Noronha, “sendo sua área incorporada ao Estado de Pernambuco”.

Lembro-me de que a disposição, aprovada com grande alegria na As­sembléia Constituinte, causou-me arrepios. Uma das mais lindas ilhas do mundo, com riquíssima vida marítima, praias paradisíacas, pedaço esplendoroso de beleza, onde, como diria o poeta, a natureza esmerou-se em quan­to tinha, poderia ser atirada à especulação imobiliária. Tive visões horríveis. Cheguei a sonhar com arranha-céus e loteamentos por todo o território da ilha, golfinhos mortos, surfistas banidos das ondas, restaurantes nas encostas, lixo por toda parte. E acordei assustado com uma idéia me atormentando.

Era o dia 10 de setembro de 1988. A Constituição seria promulgada no mês seguinte, no dia 5 de outubro. Havia tempo. Mandei fazer o levantamen­to do território. Redigi um decreto cujo artigo primeiro dizia:

“Art. 1º — Fica criado, no Território Federal de Fernando de Noronha, o Parque Nacional Marinho de Fernando de Noronha, com o objetivo de proteger amostra representativa dos ecossistemas marinhos e terres­tres do arquipélago, assegurando a preservação de sua fauna, flora e de­mais recursos naturais, proporcionando oportunidades controladas para visitação, educação e pesquisa científica e contribuindo para a proteção de sítios e estruturas de interesse histórico-cultural porventu­ra existentes na área.”

Mostrei o texto para Sarney. Ele vibrou. Chamou o Ministro da Ma­rinha, Almirante Henrique Sabóia, que exultou e declarou que o referendava, com a firme convicção de prestar um expressivo serviço ao Brasil.

Assim, antes da promulgação da Constituição, o Diário Oficial rodou com o Decreto nº 96.693, de 14 de setembro de 1988, que transformou o ter­ritório de Fernando de Noronha em parque nacional marinho, intocável, pois, pela atividade imobiliária. A ilha foi transferida para o estado de Per­nambuco, mas já era área de preservação, permitida, apenas e dentro de limi­tações austeras, à exploração turística. Pequenos hotéis e pousadas nas bor­das, com as atuais Pousada Maravilha, Pousada Zé Maria, Pousada Alamoa e tantas outras.

Já que a lei permitia a criação de “parque nacional”, inventamos o par­que nacional marítimo e salvamos a Ilha de Fernando de Noronha para todo o sempre. Amém.

Não é preciso dizer que os interessados levaram algum tempo para des­cobrir. Mas descobriram. Minha venerável mãe, humilde mulher de agri­cultor paulista, foi alvo de um festival de xingatório. “Fio de uma égua!” foi a expressão mais branda, segundo me contaram. Mesmo assim, Fernando de Noronha, com suas incríveis dez fortificações construídas pelos portugueses, primeiro e mais avançado sistema de defesa territorial do Brasil, é um triste espetáculo de abandono. A expressão “não restará pedra sobre pedra”, creio ter sido inventada naquele arquipélago, diante dos fortes construídos pelos nossos descobridores e há séculos sem a menor conservação.

75

Mas Gervásio não perdoou:

— Vocês podiam ter feito a mesma coisa com muitas áreas da floresta amazônica.

— Alto lá, meu caro! — respondi, recusando a crítica. — Os trabalhos com a Constituinte nos absorveram completamente, mas nos lembramos de lutar por um capítulo inteiro na defesa do meio ambiente. Está lá. Pode ler. Capítulo V. Começa no art. 225 da Constituição. O dever do Poder Público e da coletividade de defender o meio ambiente e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.

— E daí? É norma apenas teórica, bem ao estilo de poeta: norma decla­matória. De efetivo, nada! — resmungou Gervásio.

— É melhor você ler a Constituição. O texto é longo e quase exaustivo. O parágrafo primeiro daquele artigo enumera tudo quanto o Poder Público deve fazer para assegurar a efetividade deste direito coletivo: preservação e restauração do processo ecológico; definir em todas a unidades da Federação, portanto no Pará e no Amazonas, espaços territoriais a serem especialmente protegidos. Alteração dos comandos protetores, somente por lei. Tudo escri­to na Constituição. A gente acredita que é para valer.

— Mas não vale. Ou, no caso da Amazônia, não está valendo — con­cluiu Gervásio. — Que Deus tenha a alma da irmã Dorothy! Não sei, porém, ninguém sabe, o que o FBI foi fazer lá no local do crime, nem por que a Igreja brasileira ficou em silêncio diante do assassinato da religiosa. O Reino da Dinamarca continua escondendo coisas. Mais mistérios nos códigos da vida. Mas você está perdoado.

— Obrigado pelo perdão, mas perdoado por quê?

— Porque, nessa questão ecológica, você foi pioneiro no Brasil e... pos­so gabar?...

— Pode.


— ... no mundo, com aquele decreto redigido por você em 1961, em de­fesa dos recursos naturais, quando, pela primeira vez no direito brasileiro, apareceu a palavra “poluição”. E o mundo não dava a mínima para a defesa da ecologia. Impõe-se registrar, pela importância e pela larga previsão, o Decreto nº 50.877, de 29 de julho de 1961, do Presidente Jânio Quadros, que dispôs sobre o lançamento de resíduos tóxicos ou oleosos nas águas inte­riores ou litorâneas. No resto do mundo, a consciência pela defesa do meio ambiente somente foi despertada bem mais tarde. Para ter uma idéia, a pri­meira lei publicada em defesa de recursos naturais foi em 1976, na Itália, quinze anos depois do decreto redigido por você.

— O mérito também é do Jânio, que aprovou a idéia.

— Benditas sejam as caipirinhas no bar do posto de gasolina do Viola, no Guarujá!


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