Código da Vida



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A Constituinte, em conseqüência das intermináveis negociações polí­ticas, deixou para leis complementares e leis ordinárias quase todas as maté­rias de importância. Tentamos colaborar, elaborando projetos e mais pro­jetos para cumprir os mandamentos da nova Carta da República. Serviço que não acabava mais. Em meio a tudo isso, Oscar Correa, Ministro da Justiça, encheu-se com os problemas criados pelo Ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, pediu demissão e foi embora.

Eu estava de férias. Havia feito uma “vaquinha” com Toninho Drummond, que trabalha na TV Globo em Brasília, e João Di Gênio, um gênio da educação no Brasil: alugamos um barco na Grécia e fomos passear pela ilhas do Mar Egeu e devorar locais da cultura grega. O grego, dono do barco, era um vigarista. Deixou-nos escolher, no mapa de navegação, quais as ilhas que gostaríamos de visitar; e, depois, fez o roteiro diferente. Levou-nos às ilhas de seu esquema. Entre elas, estava Mikonos. Felizmente. Quando estávamos chegando, o rádio do barco recebeu a comunicação de que o Presidente do Brasil queria falar com o Dr. Saulo Ramos.

O dono do barco passou a nos tratar com mais respeito. Ancorou em Mikonos e nos indicou uma cabine telefônica de onde podíamos ligar para o Brasil. Havia uma fila enorme. Preparei-me para esperar mais de hora. Toninho Drummond ao meu lado, solidário, e o sol era escaldante. Então ouvi uns turistas franceses comentarem que, de um hotel ali perto, podia-se falar rapidamente. Pedi detalhes. Ensinaram-me o caminho. Cheguei. Havia ape­nas um casal ao telefone, na recepção do hotel. Chegou minha vez. Liguei para o Sarney:

— O Oscar Correa — disse ele — pediu demissão. Preciso substituí-lo. Quero que você assuma o Ministério da Justiça. Posso anunciar a escolha? Você aceita?

— Aceito — respondi, enquanto olhava um garçom passar com cer­vejas geladas sobre uma bandeja.

— Então, volte imediatamente!

— Calma, meu presidente! Eu aceito o convite, mas voltar imediata­mente é outra coisa. Estou no Mar Egeu, sob o sol que iluminou Aristóteles. Não é fácil deixar tudo isso assim de repente.

Ainda não havia visitado nada. Precisava passar uma tarde na Acrópole.

— Vou anunciar seu nome hoje. Trate de voltar o mais depressa possí­vel. Venha trabalhar!

Peguei minha mala no barco, despedi-me do Di Gênio e do Toninho Drummond. Enfrentei um aviãozinho, que partiu da Ilha de Mikonos para Atenas. Consegui, no mesmo dia, um vôo para a França. Na decolagem, vi a Acrópole. Mas meu rumo era Paris. Sonhei em passar aquela noite tomando um vinho, jantar num bistrô do Quartier Latin. Encontrar Napoleão Sabóia e jogar conversa fora. Falar do Maranhão e de seus lençóis de areias desenhadas. Não sei como acontece: o pessoal do Itamaraty já sabia de tudo. Quando de­sembarquei na capital francesa, já tinha vôo marcado para o Brasil na mesma noite. Tudo emendado, rapidinho. Comi sanduíches. Não vi o Napoleão, nem o Sabóia, nem o Bonaparte.

Lá fui eu para o Ministério da Justiça. Não abomino nada. São os có­digos da vida. Mas, para assumir o cargo, deixei a Grécia, uma troca pela concórdia. O velho Aristóteles dizia que o homem deve empenhar-se em favor da concórdia, pois ela pacifica as pessoas de bom coração.

Não interrompi as tarefas iniciadas na Consultoria Geral da República. Continuei trabalhando nos projetos das leis previstas pela nova Constituição e, conforme o assunto, para os de maior relevância e urgência, sapecava me­dida provisória. Sarney aprovava todas, depois de algumas discussões bravas, que nossa amizade e a recíproca confiança permitiam.

Criamos, por medida provisória (a de n° 143), a impenhorabilidade do bem de família, incluindo a entidade familiar. Aquela história do Código Ci­vil, de permitir a instituição do bem de família por meio de escritura pública, era uma velharia. A maioria absoluta dos brasileiros nem sabia da existência do permissivo legal. Instituindo a impenhorabilidade pela lei, a questão teve desfecho simples: é bem de família, seja imóvel, sejam bens móveis em casa alugada, instrumento de trabalho, geladeira, televisão, e muito mais do que a cama do casal, tudo o que esteja dentro de casa, nada pode ser penhorado ou executado por dívida das pessoas integrantes da família.

O mundo caiu em cima de nós. Os bancos queriam me matar, com exceção de um homem de grande visão: Lázaro Brandão, presidente do Bradesco, dotado de invejável espírito público. Deu-me uma palavra de apoio, observando que os bancos teriam apenas de fazer hipotecas nos empréstimos pessoais, custo pequeno diante do enorme benefício que a nova lei traria para o povo. A medida foi chamada de “lei do calote”.

Com o tempo, o país compreendeu, e não se discutiu mais. A lei aí está para sempre (Lei 8.009/90) e prestigiada pelo novo Código Civil. Quem se interessar pelos fundamentos e pela história jurídica do instituto, encontrará tudo no livro Impenhorabilidade do bem de família, de Carlos Gonçalves, Edi­tora Síntese, e no meu prefácio a essa obra, a partir da terceira edição. Conto tudo: onde nasceu a idéia, o porquê, que países a adotaram.

Não paramos. Criamos a prisão provisória para os suspeitos da prática de crimes hediondos. Gritaria dos criminalistas, não sei por quê. Havia antes a prisão para averiguação, inteiramente discricionária. Acabaram-se os tem­pos em que a polícia prendia e escondia o suspeito, o advogado conseguia um habeas corpus, mas não encontrava o cliente em delegacia alguma. A prisão provisória terminou com esse velho e odioso costume policial de esconder pessoas presas. A polícia ou o Ministério Público requerem, e o juiz permite o encarceramento para investigação, quando há fundamentos para isso. No mesmo dia e na mesma hora em que o Congresso Nacional transformava a medida provisória em lei, a Lei nº 7.960/89, o Supremo Tribunal Federal de­clarava sua constitucionalidade, em ação contra ela proposta pela OAB. Creio que essa coincidência, além de inédita, nunca mais vai acontecer, pelo menos nos próximos mil anos.

Pena que esse tipo de prisão acabou se banalizando sob autorização ju­dicial de rotina e se transformou em show policial para encenação de noti­ciário de televisão. Se soubesse que ia acabar assim, em vez de conceber a me­dida para o ordenamento jurídico brasileiro teria dado a idéia para o Manoel Carlos usar em alguma novela da Globo.

Redigimos também o projeto de lei que listava os crimes hediondos e revogamos a tristemente famosa Lei Fleury, que permitia a criminosos de alta periculosidade permanecer em liberdade até o trânsito julgado da sentença que os condenava. Fui honrosamente xingado e apedrejado por inúmeros e misteriosos delinqüentes. Com essas pedras, construí este livro. Hoje, sinto-me gratificado com a aplicação da lei em muitos e muitos casos graves. Foi aplicada contra vários assassinos e seqüestradores, inclusive contra os cruéis e execráveis matadores de Tim Lopes, jornalista carioca barbaramente tortu­rado e trucidado por criminosos hediondos do Rio de Janeiro.

Nesse trabalho todo, José Celso de Mello fazia falta. Mas, agora, era Ministro do Supremo e já proferia seus primeiros votos. Brilhantes. Inclusive a favor da prisão provisória. Pena que o Supremo Tribunal Federal, pressio­nado pelo Ministro da Justiça do Governo Lula, Márcio Thomaz Bastos, aca­bou permitindo, por um voto e em um caso concreto de crime hediondo, a progressão do regime de cumprimento de pena dos crimes comuns, o que irá soltar depois de pouco tempo estupradores, seqüestradores e traficantes.

O país recebeu com revolta a notícia dessa decisão inteiramente maluca: a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo de lei que manda pren­der e manter preso o criminoso hediondo.35 Resolveu-se que se deve prender o criminoso cruel, mas um pouquinho só. É inconstitucional mantê-lo preso. Embora, em certos casos, suas vítimas estejam constitucionalmente mortas para sempre.

Márcio Thomaz Bastos, quando era ministro de Lula, alegou que a lei dos crimes hediondos foi “escrita sob a emoção da violência” e que ela “satis­faz os anseios de segurança da sociedade, mas não coíbe a criminalidade”. Ora, eu escrevi o projeto com serenidade, para cumprir um comando consti­tucional muito claro contido no inciso XLIII, do art. 5º, da nossa Lei Magna, que manda diferenciar o tratamento de tais crimes, inafiançáveis e insuscetí­veis de anistia ou graça.

Não têm graça alguma as gracinhas do Ministro da Justiça de plantão, e esta última de uma pequena maioria inafiançável dos ministros do Su­premo Tribunal Federal ao comparar, na execução penal, os autores de cri­mes hediondos e os autores de crimes comuns, reconhecendo-lhes direitos iguais. Aposto que o STF vai voltar atrás, como já fez muitas vezes em seus grandes erros. De qualquer forma o Congresso Nacional, pressionado pelo assassinato do menino João Hélio no Rio de Janeiro,36 votou lei instituindo regime diferenciado no cumprimento de penas para os autores de crimes hediondos.

Mas, infelizmente, a Lei nº 11.464/2007 deixou uma brecha para os criminosos hediondos saírem das prisões com alguma facilidade. No Brasil, ultimamente, há uma forte tendência para proteger-se bandido, tanto nos julgamentos, como na legislação.

No dicionário encontram-se várias definições para solidariedade, entre elas as seguintes:

“Sentido moral que vincula o indivíduo à vida, aos interesses e às res­ponsabilidades dum grupo social, duma nação, ou da própria humanidade.

Relação de responsabilidade entre pessoas unidas por interesses co­muns, de maneira que cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o(s) outro(s):

Sentimento de quem é solidário.

Dependência recíproca.”

Qual a que melhor se aplica aos que protegem bandidos?

E precisamos acabar com essa teoria de bobos que sustenta terem os crimes hediondos aumentado depois da lei, como se a punição mais severa excitasse os bandidos. O que faz aumentar a criminalidade, além das con­dições sociais, é a quase certeza da impunidade. Se a lei punitiva estimula o crime (que coisa mais idiota!), dever-se-ia revogar o Código Penal.

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Mesmo antes da Constituinte, eu já havia ousado sugerir outras ino­vações absolutamente necessárias ao Brasil. Sarney era avesso ao uso de decreto-lei. Tivemos discussões intermináveis a esse respeito. Algumas idéias ele recusou, bateu o pé, não quis saber. Uma vez o pessoal da agricultura levou-o assinar um decreto de desapropriação para a reforma agrária. Na área a ser desapropriada, estava incluída toda a cidade de Londrina. Deus nos acuda. Daquele dia em diante, Sarney não assinava nada sem minha revisão na parte jurídica e a revisão da língua portuguesa pelo Joaquim Campeio. Minhas minutas de decretos, decretos-lei, medidas provisórias, eu próprio levava ao Campeio para as correções. É um craque. E mais ainda: companhei­ro de sinuca. Nas raras folgas, ou fins de semana, ele programava umas par­tidas, convidando parceiros para umas tacadas honestas na República.

Consegui, nesse tempo, convencer Sarney a tomar uma providência que eu julgava fundamental.

Contando agora, as pessoas podem duvidar. O Brasil não tinha uma lei que regulasse as licitações públicas e o contrato administrativo. Simplesmente não tinha. Havia algumas regras para licitação, baixadas pelos militares, no Decreto-Lei nº 200; e o contrato administrativo era disciplinado — que disciplinado?! —, tinha como referência o Código de Contabilidade da União, de 1928. Leram bem? 1928. Eu nem era nascido!

Passei a trabalhar na solução. Não podia conformar-me com este fato: meu país não tem disciplina legal para dois assuntos de tamanha importân­cia! E o mais grave: o contrato administrativo derivava diretamente da licita­ção, da concorrência pública. E é matéria de Direito Público, inteiramente distinta dos contratos de Direito Privado.

Contei com a valiosa e inestimável colaboração do maior craque na matéria: o mestre Hely Lopes Meirelles. Depois de alguns meses de trabalho, estava pronto o decreto-lei, reunindo nossas idéias e, sobretudo, a jurispru­dência brasileira que se formara em torno do vácuo legal. Sarney o estudou durante três dias e voltou radiante. “Fantástico! Maravilha! É incrível que não tivéssemos um diploma como este!” E o assinou, depois, é claro, de revisto pelo Campeio. Decreto-Lei 2.300.

No Brasil, há uma curiosidade intrigante. Quando um assunto está há anos sem solução e alguém tem a idéia de resolvê-lo, logo surgem as críticas. E, uma vez resolvido, aparece outro alguém para alterá-lo, a pretexto de aperfeiçoá-lo. Por que não fez antes? Não há explicação. Isso aconteceu com o Decreto-Lei 2.300. No Governo Itamar Franco, alteraram consideravelmente aquela legislação e conseguiram estragá-la em vários aspectos (Lei 8.666). Mas temos, a despeito dos remendos, um estatuto legal da licitação e do con­trato administrativo, criado originariamente por um decreto-lei, veículo que soubemos usar melhor que os militares, em homenagem à Conferência da OAB em Belém do Pará.

Na história recente do Brasil, essa legislação é a mais importante ao lado da Lei de Responsabilidade Fiscal, editada no ano 2000 pelo Governo Fernando Henrique, coordenada pelo Ministro Martus Tavares e elaborada pelos excelentes economistas José Roberto Afonso e Guilherme Gomes Dias. Não sei se tiveram ajuda de algum jurista. Se não tiveram, é obrigatório o registro: terá sido a primeira vez que economistas escreveram lei correta­mente. E que lei! Claro que contra ela os políticos também se insurgiram, à frente toda a bancada federal do PT, sob o comando de Lula e de Palocci, que parece haver se penitenciado do erro, quando virou governo. Até ação direta de inconstitucionalidade propuseram contra o estatuto que se editava para acabar com o velho costume de gastar dinheiro público sem qualquer controle.

Registro o fato, para que os advogados jovens possam discernir entre a mentalidade política e a realidade jurídica. O político brasileiro é sempre contra tudo o que venha do adversário. Não reconhece a qualidade jurídica das iniciativas sérias. Depois que vira governo, delas se utiliza com entusias­mo e até com exagero. E mais: chega a propagar aos desinformados que eles foram os autores da idéia.

Assim, Fernando Henrique Cardoso se insurgiu contra meu parecer que anulou os juros fixados na Constituição. Quando virou governo, foi o que mais utilizou a liberdade de aumentar a taxa de juros na política monetarista. E assim os petistas fizeram com ele, quando mandou para o Con­gresso o projeto da Lei de Responsabilidade Fiscal. Votaram contra, critica­ram, espernearam, e, um dia, viraram governo. A lei de Fernando Henrique passou a ser elogiada e aplicada pelos petistas com religioso entusiasmo. Mas os petistas têm uma particularidade: não aplicam a lei contra os correligioná­rios que a infringem.



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Volto ao meu trabalho, iniciado na Consultoria Geral da República. Ti­nha que estudar e elaborar projetos de lei ordenados pela nova Constituição. No Ministério, havia menos tempo. Mas trabalhar era preciso. Sem a mesma amplitude e importância do estatuto das licitações públicas e do contrato administrativo, outras medidas legislativas precisavam ser implantadas, so­bretudo para limpar a legislação da ditadura que se acumulara durante vinte anos, o chamado “entulho autoritário” e que continuava vigente.

No meio desse mundão de serviço, minha secretária no Ministério da Justiça entrou em minha sala e educadamente me disse:

— Ministro, desculpe interrompê-lo. Há um senhor ao telefone, diretor da penitenciária, dizendo que um dos reclusos é seu amigo de infância e quer falar com o senhor. Chama-se Antônio, mas pediu para dizer que é o Tonho, filho do Zé do Eliazé.

— Qual a linha?

— Linha dois.

Atendi. O diretor da penitenciária passou-me o Tonho:

— Saulo, é o Tonho da Santa Luzia. Você se lembra de mim?

— Claro que me lembro! Que diabo é essa história de você estar cum­prindo pena? Que crime você cometeu?

— Homicídio.

— Meu Deus! Você matou quem?

— Matei a Iracema.

— Jesus! Quando eu saí de Cravinhos, você era o namorado dela. O que aconteceu para justificar essa tragédia?

— A gente se casou. Chegamos a ter filhos. Depois, a sem vergonha me traiu. E não foi com um só, não; foi com vários.

Na minha memória, veio aquela brincadeira do telefone de barbante nas caixas de pó-de-arroz: “Faço o que você quiser!”. Coitada da Iracema. Coitado do Tonho.

— Eu queria que você fizesse alguma coisa por mim. Você é o Ministro da Justiça. Acho que pode me ajudar. Diminuir a pena. Arrumar uma provisória.

— Tonho, preste atenção: o Ministro da Justiça nada tem que ver com o Poder Judiciário. Todo mundo faz confusão. Eu não posso fazer nada. A pe­nitenciária é estadual. O Brasil não tem penitenciária federal, o que é uma vergonha.

Aliás, o sistema penitenciário brasileiro caminha para uma situação caó­tica. A superlotação e as condições degradantes dos presos, tratados como animais, levaram um juiz de Minas Gerais, em Contagem, à loucura: man­dou soltar dezenas de condenados por assaltos, homicídios e estupros. Nossos governos, estaduais e federais, em pleno século XXI, ainda não sabem da exis­tência de Beccaria.37

O pobre do Tonho nada tinha com isso, mas eu já estava com a mania de constantemente me irritar por não termos presídios federais38 e invocava essa falha até se estivesse conversando sobre futebol. Com mais paciência, expliquei-lhe que não podia mexer no caso de sua condenação; mas, por desencargo de consciência, prometi mandar, e mandei, um estagiário do meu escritório para estudar algo, uma revisão ou qualquer coisa que o fizesse sentir-se atendido por mim. Sobretudo garantir-lhe tratamento humano no cumprimento da pena. Embora estivesse afastado da advocacia, o escritório continuava funcionando, proibido por mim de pegar causas contra a União, o que deixou meus colegas furiosos. Advogar contra o Governo Federal era, naquele tempo, o filé-mignon da profissão.

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Collor já estava eleito, e, em dezembro, Sarney convocou-nos para uma reunião no Planalto: Ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega; Ministro do Planejamento, João Batista Abreu; Ministro do Exército, General Leônidas Pires Gonçalves; Ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Otávio Moreira Lima; Ministro da Marinha, Almirante Henrique Sabóia; Ministro Chefe da Casa Civil, Ronaldo Costa Couto; e Ministro Chefe do SNI, General Ivan de Souza Mendes. Estava ausente de Brasília o Ministro das Relações Exteriores, Roberto de Abreu Sodré.

Ninguém sabia o objetivo da reunião. O Presidente apenas nos con­vocou, porque desejava discutir conosco uma colocação do Ministro da Fazenda de que a inflação, que estava flutuando sem grandes saltos ao longo dos últimos meses, iria, a partir do mês de janeiro, disparar. Não por motivo do Governo Sarney, que encerrava o ano com superávit primário e sem déficit mas porque as expectativas quanto ao novo governo e seu plano econômico iriam desencadear uma inflação de natureza psicológica nos meses seguintes (coisas dos economistas, inflação psicológica, deixa estar!), e essa atingiria números estratosféricos. Isso iria provocar um caos, e a solução proposta pelo Ministro Maílson da Nóbrega era que o Presidente Sarney fizesse como o Presidente Raúl Alfonsín — que até hoje é condenado por isto —: renunciar ao seu mandato, ou antecipar a posse de Fernando Collor.

O Presidente abriu a reunião, dizendo que ouvira da área econômica uma análise sombria sobre o que se esperava dos próximos três meses, até o fim do governo. Ninguém seguraria a inflação. Então, resolveu reunir os mi­nistros da área militar, da Casa Civil, da Casa Militar, do SNI e da Justiça, para ouvi-los. Na abertura da reunião, Sarney disse que deveríamos deliberar sobre a proposta dos dois ministros da área econômica: Sarney devia renun­ciar, e imediatamente!

“Puta merda! O que é isso?”, pensei eu. Outra renúncia na minha vida? Chegava a do Jânio, que fora um estrago, acabara em mudança do regime para parlamentarismo e desaguara na ditadura militar. É sempre assim: um golpe de Estado justifica outro. Estávamos no fim de um governo democrá­tico. O país tinha um presidente eleito pelo voto direto. No que resultaria uma renúncia àquela altura? Seria golpe? Ou pretendiam armar confusão para, no meio do pega-pra-capar, voltar a um outro tipo de ditadura?

Então Maílson explicou sua tese, com apoio de João Batista Abreu:

— Não há mais como segurar o estouro da inflação. Nos próximos me­ses, a política monetária ficará fora de controle. Tenho que admitir: o Plano Verão fracassou.39 O Presidente eleito, Fernando Collor, e sua já escolhida Ministra da Fazenda, Zélia Cardoso de Mello, estão dando entrevistas incen­diárias e insinuando medidas drásticas que irão tomar. O empresariado e as fontes de produção vão disparar, numa corrida de aumento de preços insu­portável. Não sabemos a proporção da crise nos últimos meses de nosso Governo, mas será catastrófica. Se o Presidente renunciar agora, ou antecipar a posse do eleito, as expectativas serão revertidas e, em caso de renúncia, assumirá o Governo o Dr. Ulysses Guimarães.

João Batista Abreu era um pouco delicado demais, tinha uns trejeitos de mãos, falava afetado. Não prestei atenção no que ele disse. Minha cabeça já estava a mil por hora. O que estão propondo que façamos com o Brasil? Deixar a bomba para o Dr. Ulysses seria um ato terrorista. Antecipar a posse de Collor exigiria mudança constitucional a toque de caixa. De qualquer ma­neira, haveria confusão lascada.



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— O Dr. Ulysses está de acordo? — perguntei por instinto de advogado que interroga testemunha mentirosa.

— Está — respondeu João Batista.

No Governo, há um ritual iniciado nos primeiros dias da República. Em reunião de ministros, fala em primeiro lugar o titular do ministério cria­do antes dos outros. O primeiro ministério criado na República foi o da Jus­tiça. E eu ia falar antes. Sarney me passou a palavra:

Senhor Presidente, queira me desculpar — comecei eu com calma —, mas os ministros da Fazenda e do Planejamento estão propondo uma solução teratológica! É loucura de camisa-de-força. Acabamos de voltar à democracia com o nosso Governo, temos uma Constituição legitimamente votada por uma Constituinte livre, estamos com um Presidente da República eleito pelo voto direto, cuja posse está marcada para o próximo mês de março, o siste­ma institucional funcionando, tudo começando de novo e bem. Um impacto como este — a renúncia do Presidente da República — pode balançar os ali­cerces da democracia brasileira, ainda uma criança, que está dando seus pri­meiros passos. Tem apenas cinco anos. Tanto os brasileiros como os países do resto do mundo não entenderão um gesto tão imprudente, senão doidivanas como esse. Seremos vistos como irresponsáveis. Considero a proposta uma traição não somente ao Presidente da República, mas ao Brasil.

— Traição! Não aceito essa palavra. É muito forte — retrucou Maílson.

— Vai aceitar, sim senhor — disse o General Leônidas, dando um tapa na mesa.

Sarney tem um domínio absoluto dos nervos nessas situações. Inteligente e perspicaz, queria descobrir o que estava por trás daquilo. E pediu calma aos ministros. Solicitou ao General Leônidas que esperasse sua vez de falar, pois seria o próximo depois do Ministro da Marinha, na ausência do Ministro das Relações Exteriores. Mandou que o Ministro da Justiça concluísse.

— Pedindo vênia ao senhor Ministro da Fazenda — continuei eu com a macia conversa de advogado —, o termo traição é o único cabível. O Presidente, ao tomar posse, que já foi tumultuada na época, jurou cumprir a Constituição, defender o país, promover o bem geral, sustentar a união e a integridade do Brasil.

Vendo Leônidas do meu lado, aproveitei para usar argumentos que sen­sibilizam os militares:

— A renúncia, assim, é uma deserção de suas funções, da chefia do Governo, do comando supremo das Forças Armadas e uma traição ao jura­mento feito, pois a anomalia pode causar impacto nas instituições, sempre muito submetidas às paixões políticas e às ambições pelo poder. É melhor não provocar a quebra da regra do jogo. Se os últimos meses vão ser difíceis, vamos enfrentá-los.

Tomei um fôlego e continuei:

— Creio que a culpa pode ser dos atuais discursos do Collor, mas em grande parte foi do Plano Verão, executado à base de portarias e de alergia à legalidade. Tudo o que se faz fora da lei acaba em desordem. Segundo apren­di, aqui no próprio Governo, o fracasso dos planos econômicos deve-se ao fato de se tentar a estabilização financeira apenas no âmbito federal. Deixa­ram-se de lado, ou não se conceberam, medidas que impusessem austeridade fiscal aos estados e aos municípios. Com todo o respeito aos economistas, não se combate inflação só de um lado do campo, enquanto do outro há uma farra de gastos acima das receitas.40 Mas que haja apenas a desordem mone­tária, sem contágio da ordem institucional. Minha opinião é esta: o Presi­dente deve passar a faixa ao Presidente eleito, e não fazer como o General Figueiredo fez com ele, fugindo pelos fundos.

O General Ivan de Souza Mendes votou com os ministros da área eco­nômica, Maílson e João Batista.41

Foi a vez do General Leônidas falar. Ferveu e reagiu a ele, e disse em voz alta:

— Fica quieto, Ivan! Se você insistir nesse assunto, nós discutimos lá fora: só eu e você.

Os ministros militares votaram com o Ministro da Justiça. Inclusive o General Bayma Denis, sempre muito atento a tudo e uma espécie de termô­metro entre o passado recente e o nosso nervoso presente. O Ministro Costa Couto, especialista em panos mornos, preocupou-se mais com a hipótese de o Leônidas dar um murro no Ivan quando saíssem, do que com a idéia da renúncia; e escusou-se de dar qualquer opinião, como bom mineiro.

Sarney encerrou a reunião, dizendo que não tinha nenhuma decisão a tomar naquele momento, mas que iria pensar no assunto. Pediu que Leô­nidas e eu ficássemos, pois tinha outra matéria a tratar conosco. Era nada. Quis ganhar tempo para o Maílson ir embora sem atropelos. Eu aproveitei para sugerir:

— Põe esses dois para fora! O anunciado estouro foi provocado por eles com aquela maluquice do Plano Verão, elaborado sem a assistência de ju­ristas e num momento em que esse tipo de solução já estava desacreditado!

Esses grandes erros do Governo, de todos os governos, cada qual com os seus erros próprios e impróprios, são depois desmentidos e tudo fica por isso mesmo. É bom lembrar de Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), que observou:

“No Brasil, as coisas acontecem, mas depois, com um simples desmen­tido, deixaram de acontecer.”

Serve para muitos outros fatos, os antigos e os modernos.



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