Código da Vida



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Não é comum e acaba sendo constrangedor o advogado indispor-se com um Ministro do Supremo e, sobretudo, quando Presidente da alta corte. Eu já havia passado por essa experiência, quando o então Presidente do Su­premo Tribunal, Antônio Neder, deferiu a citação de Roberto Carlos numa ação proposta em Buenos Aires por um músico argentino que o acusava de plágio. A música era “Amigos”, sucesso mundial. Cantaram-na para o Papa, se não me engano, no México. Diante da aclamação internacional pela obra de Roberto e Erasmo, o argentino resolveu reivindicar a autoria, acusando a dupla brasileira de haver plagiado uma milonga qualquer que havia com­posto antes. Propôs o processo em Buenos Aires e pediu a citação dos réus por carta rogatória, que, obrigatoriamente, vai para o Supremo Tribunal deferir ou não, após o exame da legalidade do pedido da justiça estrangeira.

A canção fora composta no Brasil, lançada no Brasil, os compositores e cantores eram residentes no Brasil. Não há a menor hipótese de ter compe­tência a justiça estrangeira para julgar ação judicial contra brasileiros domi­ciliados aqui e por atos aqui praticados. Se alguém, na República do Burundi, ou na Guiné, ou no Japão, ou no arquipélago de Galápagos, cismar de pro­cessar, nos respectivos países, Chico Buarque, Caetano Veloso ou outros bra­sileiros, é fácil imaginar a balbúrdia internacional que isso estabelecerá. O princípio é simples: a soberania nacional que inclui, por óbvio, a soberania do Judiciário sob cuja jurisdição se encontram o fato e seu autor.

Todo o mundo sabia disso, menos o Presidente do Supremo Tribunal da época. Advogado de Roberto Carlos, entrei com agravo regimental. A questão, por sua relevância, iria para o plenário de nossa corte suprema. Embora Antô­nio Neder fosse um ministro fabricado pelos militares, até soldado raso se emocionava quando se tratasse de soberania nacional. A redação de meu agra­vo foi impiedosa. O argumento mais suave que usei foi que o Presidente do Su­premo Tribunal Federal estava decretando a extradição civil de brasileiro.

Antônio Neder, ao ler o agravo, deve ter consultado colegas, ou sei lá quem mais, e me chamou ao seu gabinete. Lá fomos nós, eu e Luiz Carlos Bettiol, meu sócio de escritório em Brasília. Neder já sabia que ia perder de dez a um no plenário. Então, resolveu reformar seu despacho, retratando-se e indeferindo a citação do meu cliente. E nos pediu:

— Reformei meu despacho. Estou indeferindo a citação. Mas solicito um compromisso de vocês: não digam nada à imprensa. Quero a palavra de vocês de que isso ficará entre nós.

Advogado tem que ganhar a causa. Os incidentes colaterais perdem a importância, se o objetivo principal for alcançado: vitória do cliente. Bettiol e eu empenhamos a palavra.

No dia seguinte, saiu no Diário Oficial apenas o despacho do Presidente do Supremo negando a citação solicitada na carta rogatória da Argentina. Nada, nada sobre o primeiro despacho nem sobre o agravo. E a imprensa no­ticiou que o Presidente do Supremo Tribunal Federal negou o pedido do país vizinho, fundado no princípio inamovível da soberania do Judiciário nacio­nal e no direito fundamental de serem os brasileiros, aqui residentes, proces­sados de acordo com nossas leis. Beleza!

Ao contar isso neste livro, não estou quebrando a palavra empenhada. Apenas narro um fato histórico, embora de uma questão simples de Direito, até porque não publico aqui as razões do agravo que interpus contra o pri­meiro despacho do ilustre ministro. Era esse texto que ele não queria ver na imprensa. E, claro, havia adicionalmente uma pequena malandragem por parte dele: dar a impressão de que seu segundo despacho era o primeiro.

A partir desse acontecimento, nunca mais tive desavenças com os pre­sidentes do Supremo. Somente muitos anos mais tarde voltei a ter com Celso de Mello, não por tê-lo chamado de juiz de merda, pois naquela época ele ainda não era presidente, mas quando, nessa condição, em vez de defender a Magistratura, apoiou Antônio Carlos Magalhães, acusando os magistrados de defenderem privilégios. Escrevi contra os dois fortes artigos de jornal, iguais ao acima transcrito e, como convém às publicações na imprensa, não usei um único nome feio. Nenhum. Podem conferir.

E, porque vivo lendo nossos poetas, costumo adotar na vida seus ensi­namentos, como este de Cecília Meirelles:

“Há pessoas que nos falam e não escutamos.

Há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam.”

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O mundo gira, a Lusitana roda, tudo dá voltas e cambalhotas. Um dia, fui internado no Incor, Instituto do Coração, passando mal. Fibrilação no átrio do coração. Socorrido por médicos competentes, David Pamplona e José Ramires, dois craques, fui salvo. Voltei para casa. E parei de fumar. Nunca mais. Por ser considerada a cidade da saúde, Serra Negra não tem médicos, hospital ou clínicas. Em Ribeirão Preto, por indicação de um velho amigo de juventude, o Dr. Ulisses Meneghelli, o cardiologista que me suporta é o Dr. Luiz Eduardo Mori, perfeito para mim, porque, além de competente, é médico do Poupatempo. Nas consultas, conta histórias de pescador.

Tempos depois não fui poupado: andei lutando contra anemia. Perdia sangue. Não se sabia por onde. Fizeram colonoscopia e descobriram tumo­res. Malignos. Foram extraídos e me pouparam de uma perigosa cirurgia. Desta vez, os craques em medicina, a quem devo minha salvação, foram os doutores Luiz Macedo e Arnaldo Ganc, ambos do Hospital Albert Einstein, instituição acima da excelência, dirigido pelo talento do jovem médico Cláudio Lottemberg.43 E devo também a firme resolução de me aposentar, como contarei no final deste livro,

Eu estava lá, em Ribeirão Preto, me convalescendo de todos esses dolo­rosos sustos. Toca o telefone. Celso de Mello, Ministro do Supremo Tribunal, queria falar comigo. Vinte anos depois. Compungido, solidário, preocupado com a crise que sofri. Não sei como ficou sabendo de minhas andanças hospitalares. Parecia sincero. Contou de sua hérnia de disco, internação no hospital de Brasília, dores, dez dias de martírio.

Fiquei comovido. Tive até vontade de deletar os capítulos em que conto nossas trombadas. Mas estaria mentindo. Odeio mentir.

Passei a mão na cabeça da minha cachorrinha, Nana, deitada ao meu lado, parecendo querer ajudar-me na cura, transmitindo seu amor sem pala­vras. Ela era a festa da casa. Adorava minha mulher. Toda manhã nos recebia aos pulos, querendo alcançar o colo com incrível agilidade. O mais impres­sionante era seu olhar de ternura expressa com impressionante lealdade em seus grandes e brilhantes olhos negros. Era a alegria de meu combalido coração.

Dias depois, ela morreu.

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Fui à Vara de Família falar com o escrivão. Usei todo o meu estoque de simpatia. O homem nem piscou:

— O juiz não fez diligência alguma. Quem lhe disse isso?

Pergunta embaraçosa. Não podia admitir a fonte. Fiz como nos tempos de jornalista. Se contasse que a informação viera das crianças, teria que revelar a infiltração da minha assistente na escola, com o intuito determinado de inves­tigar os menores. Se o juiz e o curador soubessem disso, haveria complicações.

— Confio na sua discrição — respondi. — Mas tenho investigadores fazendo campana na mulher. E eles viram dois homens entrarem na casa dela ontem de manhã. Pela descrição, um deles parecia ser o juiz: magrinho, ca­belo bem preto, bigodinho tipo de galã do cinema antigo, à Clark Gable. Só pode ser ele.

— Fotografaram?

— Não.

— Desculpe, Dr. Saulo. Que campana mais malfeita! Sem fotografia? Nem parece serviço de seu escritório. Fique tranqüilo: não foi o meu juiz.



Fingi acreditar, mesmo porque minha história da campana sem foto­grafia era realmente horrível. Não tinha muito moral para continuar forçan­do um interrogatório do escrivão. E eu havia falado na empregada. Ele não se lembrou. Ainda bem.

Depois, criei coragem e passei pela sala do juiz, somente para “cumpri­mentá-lo”. O mesmo velho motivo: tinha um caso na vara vizinha (era ver­dade), estava passando (não era bem verdade, sem constituir mentira) e viera dizer “boa tarde”.

Sempre muito gentil com todos os advogados, levantou-se, cumpri­mentou-me. E perguntou:

— Como vai o seu cliente, o Sr. Olavo Brás?

— Consegui tirar o suicídio da cabeça dele. Está mais calmo.

Fiquei radiante com o fato de o juiz lembrar o nome do cliente. Era evidente que o caso o impressionara muito. Com centenas e centenas de pro­cessos passando diariamente por sua mesa, lembrar-se do nome do cliente e associá-lo ao respectivo advogado, antes de se completar a instrução, de­monstrava uma atenção muito especial. Mas nenhuma palavra sobre dili­gência, nem sequer sobre a petição requerendo o depoimento da psiquiatra. Nada.

Quando, voltando ao cartório, contei ao escrivão que o juiz perguntara pelo meu cliente, mencionando-lhe o nome, ele muito educadamente observou:

— Doutor, não quero estragar seu entusiasmo, mas o meu juiz conhece os detalhes de todos os casos que tramitam pela vara. É impressionante. O nome das partes, o problema discutido e o nome dos respectivos advogados. Sabe tudo. Tenho muitos anos de experiência nesta e em outras varas por onde passei: nunca vi um juiz com tamanha memória. Interesse e atenção, a maioria dos magistrados dedica aos casos. Mas este, além dessas qualidades, guarda tudo de cada processo. Até daqueles já julgados e que não estão mais aqui.

— O senhor não estragou meu entusiasmo. Ao contrário: aumentou-o. Redobro minha certeza de que o caso do meu cliente está submetido ao jul­gamento de um homem competente. Nem sempre se tem essa sorte em pro­blemas complicados como o do Sr. Olavo Brás.

O escrivão concordou e, dando a impressão de estar com um pequeno peso na consciência, confidenciou-me:

— A diligência de que o senhor falou, não houve. Tenho certeza. Mas ele lhe disse alguma coisa sobre o seu requerimento de ouvir a psiquiatra da mulher fora de audiência?

— Não disse nada. Apenas passei pela sala dele para cumprimentá-lo e saí.

— Então o senhor vai ter uma surpresa. A petição foi trazida por uma assistente sua, a Dra. Patrícia Alessandra Pofo, que a deixou comigo. Eu mes­mo fui despachá-la. Ele mandou juntar e ouvir o advogado da outra parte. A intimação vai ser feita pessoalmente. Creio que irá deferir, pois, ao despachá-la, ele sorriu e comentou: — Ótima idéia!

Voltei ao escritório intrigado. Certeza eu tinha de que o juiz havia feito a diligência. Mas nenhuma palavra? Nenhuma indireta, ainda que sutil? Bem, é verdade: que sutileza seria possível num caso assim? Ou conta tudo, ou não se toca no assunto. E o escrivão? Sabia ou não sabia? Minha experiência de advogado traquejado estava sendo cruelmente desmentida.

Invoquei, como um penitente faz em suas orações, todas as raízes de minha paciência, aquela paciência que constitui a ciência da espera com sa­bedoria. Um misto de confiança e atenção, calma e vigilância, certeza e dis­posição, para intervir com rapidez, na hipótese de fraquejar a certeza.

Na advocacia, esse exercício, essa paciência, essa forma de lutar em to­dos os planos, no primeiro ou no segundo, a coragem de enfrentar e, quando necessário, abrandar os termos, enganar o óbvio para vencer com a surpresa, aprendi durante a ditadura militar. E precisamente a psiquiatra da mulher do Sr. Olavo Brás, que iríamos ouvir em depoimento, lembrou-me um antece­dente que provoquei perante a Justiça Militar.



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Naquela época, defender os acusados de subversão, ou de serem comu­nistas, era penoso. O sistema entendia que a defesa estava advogando contra o regime, e os advogados, em geral, corriam o risco de serem considerados coniventes com os atos de seus clientes. A começar pelos “tribunais” de pri­meira instância, com o pomposo e aterrorizante título de “Auditoria de Guerra”, composta de um juiz auditor e oficiais das três armas.

Nos debates orais, se o advogado se distraísse, ou se empolgasse, e cha­masse o sistema de ditadura, não tinha perdão: era preso por desacato. Lem­brem-se de que um dos crimes era apenas “ser comunista”. Professar a ideologia, sem nenhuma conduta concreta que ofendesse a ordem jurídica, era considerado traição à Pátria. Bastava ser “marxista”. Cadeia nele.

Muitas vezes invoquei a velha lição de Burke:

“Somos patriotas sem esquecer que somos cavalheiros.”44

Dizer isso a um capitão? Ele nem sabia quem era Burke, não entendia o que era ser cavalheiro, e patriotismo para ele era cassar comunista.

Difícil era aparecer na Auditoria de Guerra quando, contra atos por ela praticados, o advogado ingressava com recurso para o Superior Tribunal Mi­litar, sobretudo com habeas corpus, pedindo o trancamento de ação penal ali instaurada. No texto da petição endereçada ao tribunal, a gente desabafava. Tudo o que não se podia dizer durante as sessões de trabalho na Auditoria, dizia-se nos requerimentos ou recursos ao STM.

Um dia, a ditadura, que tinha no Ministério Público um ativo e sub­serviente aliado, resolveu processar os professores universitários. E surgiu de­núncia criminal contra o Professor Florestan Fernandes, catedrático da Universidade de São Paulo, e seu assistente, Fernando Henrique Cardoso, entre outros.

Aceitei defender o Professor Florestan, e o meu colega e amigo Evaristo de Morais Filho, advogado no Rio de Janeiro, ficou com a defesa de Fernando Henrique.

Combinamos uma estratégia. Eu entraria primeiro com o pedido de habeas corpus em favor do Professor Florestan, e, se vitorioso, o pedido em favor de Fernando Henrique ficaria mais fácil, pois se teria firmado a jurisprudência relativa ao mesmo processo. E por outro motivo: Florestan era uma figura res­peitável, suas condutas eram de um intelectual autêntico, e seu conceito como sociólogo era internacionalmente consagrado. Fernando Henrique, seu assis­tente, era mais falastrão, bom professor, mas com uma clara tendência a fazer política partidária, sem ligar muito para o prestígio da cátedra. Misturava os alhos, de olho em sua carreira, que, afinal, chegou à Presidência da República, tal como Lula, que veio do Nordeste em pau-de-arara, vangloriando-se de não precisar de diploma para subir na vida. Há muita semelhança entre eles, apesar da diplomação de um e a emplumação do outro.



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Ingressei com o HC em favor de Florestan Fernandes em junho de 1966. O processo tomou o nº 28.463.

E sapequei logo de início: “... rogando o impetrante que venha esse Egrégio Tribunal socorrer, com urgência, a cultura nacional tragicamente agredida naquele espantoso processo, cujo trancamento requer pelos seguin­tes fatos e razões de Direito”.

Entre essas razões, depois de descrever os méritos do professor, soció­logo de renome internacional, motivo de orgulho para o Brasil, desci o ca­cete: “esse homem encontra-se, em nossa terra, submetido a processo crime e sob a mais espantosa violência de que se tem notícia na história forense, pois foi levado a essa bárbara coação por uma denúncia estarrecedoramente inepta, de tatibitate formulação, peça de completa e lamentável paixão polí­tica, sem suporte fático, sem descrição de conduta punível, sem pé, sem ca­beça, sem entranhas e, até, sem gramática”.

Ele estava denunciado como incurso no art. 2º, item III, da Lei nº 1.802, de 5 de janeiro de 1953, isto é: “tentar mudar a ordem política ou social esta­belecida na Constituição mediante ajuda ou subsídio de Estado estrangeiro ou de organização estrangeira ou de caráter internacional — Pena: de dez a trinta anos de reclusão”.

A denúncia dizia que o Professor Florestan Fernandes era “considerado pelo Professor Ricardo Roman Blanco, tanto mais virulento que o Professor Schemberg, sendo suas aulas autêntica doutrinação marxista”.

Esse professor Blanco era da Universidade de Brasília, dedo-duro do re­gime militar, e sua opinião, na ditadura, já valia como condenação contra não importa quem ele se voltasse.

A acusação insistia em que Florestan havia sido homenageado pela União Brasil-URSS e omitia homenagens iguais recebidas dos Estados Unidos e de Israel. No meu trabalho, argumentei:

Um país capitalista, o mais capitalista da história dos povos, resolve pre­miar o mesmo professor homenageado por um país comunista. O fato demonstra, portanto, a universalidade de sua obra, cujo nível está muito acima das transitórias divergências políticas entre nações e, por isto mes­mo, não participa de tais conflitos a não ser na qualidade de analista científico, como não participa, tampouco, do minúsculo mundo liliputiano das miniaturas delituosas, que a ficção da denúncia vê agigantadas ape­nas por medi-las diante de concepções policialescas da Idade Média.”

Para não deixar dúvida, mais à frente, voltei a atirar:

“Acresce que o paciente não é comunista, embora sua cultura socioló­gica possa, por avançada, evoluída, sábia e livre, escandalizar supers­tições medievais.”45

Ganhei o habeas corpus pelo voto condutor do General Peri Beviláqua, e o Professor Florestan Fernandes foi excluído do processo por ausência de justa causa, sob a expressa declaração de inépcia da denúncia. Julgamento em agosto. Em novembro, foi julgado o pedido de Fernando Henrique Cardoso, beneficiado pela jurisprudência já firmada. Também foi excluído da ação penal (HC nº 28.567).

Em compensação, fiquei meses sem poder comparecer perante a Audi­toria de Guerra. Meus casos que tramitavam por lá, passei-os a outros cole­gas, para não prejudicar os clientes, porque era nesses que os doutos julgado­res se vingavam dos advogados, sobretudo de mim, que os chamara de medievais. Não haveria perdão. Eu iria para a fogueira, porque realmente eles eram da Idade Média. O comunista e o socialista eram criminosos. O advo­gado era bruxo. A escuridão era total.

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Naquela mesma auditoria, havia eu tido outro caso em que aprontei barbaridades. Advogar corretamente, invocando a lei e as garantias constitu­cionais, era inútil. Direitos humanos? Brincadeira. Direito de defesa plena, nem pensar. A gente tinha que inventar. Inventar qualquer coisa.

Luiz Carlos Prestes, para não ser preso, combinou descaradamente com o DOPS pagar um preço por sua fuga. Deixaria em sua casa as cadernetas em que anotara os nomes, endereços e outras informações sobre seus compa­nheiros do Partido Comunista. Houve até um detalhe curioso. Combinada a hora de fugir, a busca seria feita imediatamente após. Mas sua mulher esque­ceu o casaco na residência, e Prestes telefonou ao delegado do DOPS, infor­mando a falha de memória da esposa e pedindo mais tempo, porque voltaria à sua casa para pegar o casaco. Assim se fez.

Quando a polícia política chegou, Prestes já havia sumido. O casaco também. Ficaram as cadernetas. O caso tornou-se famoso, porque muita gente foi presa. Dezenas de membros do partidão tiveram que fugir. Cente­nas de famílias ficaram desorganizadas, foram massacradas pela brutalidade policial. Trabalhadores, presos ou foragidos, não tinham como sustentá-las, porque deixaram seus empregos. Uma vez, contei isso a uma revista e fui processado, por haver denegrido a memória de Prestes. O Tribunal de Justiça de São Paulo trancou a ação penal. Assim, o fato, que era conhecido do DOPS e vazou na época, não tinha prova concreta. Com o processo, passou a ter o respaldo judicial. Muito mais tarde, com a queda da União Soviética, esse acontecimento estava bem documentado nos arquivos da KGB, na Rússia. O DOPS não mentira.

A ação penal contra as pessoas denunciadas apenas por terem seus no­mes nas Cadernetas Prestes materializava uma violência brutal. Não lembro quantas cadernetas eram. Creio que chegavam a vinte, ou quase. Todas escri­tas à mão. Não fizeram sequer perícia grafotécnica ou grafoscópica, para sa­ber se a letra era de Prestes.

Folheando-as, era possível encontrar, além dos nomes, umas frases des­conexas, algo como “o sol vai nascer na Cordilheira dos Andes”, algumas ten­tativas de fazer literatura com a desgraça alheia, ou com os próprios sonhos e devaneios, sem grande qualidade literária, ainda que fosse legítima a defesa da ideologia para quem nela crê. Sonhar é preciso. Matar não.

Aceitei advogar para muitos dos réus presos. Passei horas examinando aqueles cadernos. Invocar a lei, os direitos constitucionais, era bobagem. Contra tais direitos, levantava-se a defesa da Pátria diante da ameaça do co­munismo. E, por incrível que pareça, a maioria dos militares acreditava nisso sinceramente. Havia, pois, honestidade intelectual dos dois lados: dos que le­vavam e dos que davam porradas.

De repente, tive uma idéia para tumultuar o processo. Pedi o exame das cadernetas por um grupo de psiquiatras, para que se tivesse certeza sobre a sanidade mental da pessoa que escreveu aquelas frases e as informações sobre membros do partidão. Essa foi demais: exame psicológico de cadernetas!

Não pedi que os psiquiatras avaliassem indiretamente a sanidade men­tal de Prestes, pois isso somente poderia ser feito mediante exame pessoal. Pedi a avaliação da escrita, para saber se havia indícios de distúrbios cerebrais em seu autor. Era uma decisão difícil. Afinal Luiz Carlos Prestes era um herói nacional, desde a velha Coluna de sonhadores. Embora advertido da obser­vação de Paul Claudel de que as pessoas só são heróis quando não podem agir de outra maneira,46 não me sentia confortável em duvidar da saúde mental de uma figura ilustre, sobretudo em nosso país tão pobre de homens assim. Mas centenas de pessoas estavam presas, e possivelmente essa tática poderia libertá-las.

O problema era fundamentar o requerimento, justificar a petição. Mi­nha cabeça ferveu, mas consegui.



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Ainda tenho, por milagre, cópia da petição, pois meus arquivos são e sempre foram um desastre em matéria de organização. Eis os trechos iniciais do requerimento:



“... nos autos da ação penal que lhe é movida perante este Juízo, por seu advogado, vem requerer sejam as anotações das cadernetas, existentes no processo, submetidas a análise de uma junta de psiquiatras a fim de constatar-se ou não a existência de indícios de debilidade mental no autor da­quelas notas. Requer a produção desta prova pelas seguintes razões:

Nº 1 — São as chamadas ‘Cadernetas Prestes’ as únicas provas materiais de que se serviu a acusação para atribuir aos réus a conduta típica do artigo 9º e outros da Lei de Segurança Nacional.

Nº 2 — A despeito de sabermos que o escrito particular possui fraco valor probatório na ação penal, a acusação deu a esses documentos uma importância relevante, e os trechos deles extraídos fundamentam todas as denúncias oferecidas neste feito.

Nº 3 — Atribuída a autoria das anotações ao Sr. Luiz Carlos Prestes e estando este foragido, tornou-se impossível a obtenção do seu depoi­mento pessoal, complemento indispensável à apreciação da prova em sentido estrito produzida por escrito particular.

N º 4 — Através do depoimento pessoal do suposto autor das caderne­tas, poder-se-ia contar com um meio mais seguro para aferição do valor da prova de acusação, uma vez que, ‘para nós’, o documento é essencial­mente prova pessoal: e prova pessoal não se pode obter, sem a consciên­cia da própria afirmação, na pessoa afirmante (Nicola Framarino Dei Malatesta, A lógica das provas em matéria criminal, vol. II, pág. 285).

Nº 5 — Aliás, convém atentarmos para a lição do mestre italiano que, na mesma obra, adverte: ‘se suprimirmos a consciência das afirma­ções escritas, que nos resta? Nada mais que a exteriorização material de um estado espiritual, que pode ser simplesmente uma aberração e uma enfermidade.

Nº 6 — Não se pretende, convém frisar, obter, neste momento, perí­cia médico-legal para verificação do estado mental do Sr. Luiz Carlos Prestes, o que só seria materialmente possível através da ‘Inspectio Corporis’. O que se pretende, através da análise científica daqueles docu­mentos, é saber se há ou não a necessidade daquela averiguação, pois, se positiva a resposta a essa indagação, o processo penal não poderia pros­seguir sem a realização daquele exame médico-legal direto, uma vez que se não pode admitir um tão grave procedimento criminal, envol­vendo tantas pessoas, fundado em notas escritas, que podem ser uma ‘aberração e uma enfermidade’.

N° 7 — Aceitando-se a hipótese de serem de autoria do Sr. Luiz Carlos Prestes aquelas anotações, maior razão nos assiste em temer sejam elas fruto de um delírio, uma vez que esse cidadão — e isto é notório — há decênios tem uma fixação de idéia — a revolução comunista no Bra­sil — que o pode ter arrastado, na sua idade atual, a uma das espécies de esquizofrenia paranóide, em cujo quadro clínico predomina a tendên­cia de um sistema delirante mais ou menos estruturado, geralmente num misto de grandeza e perseguição. Perfeitamente viável seria a hi­pótese do Sr. Luiz Carlos Prestes, vítima dessa espécie de enfermidade mental, transpor para os seus cadernos de notas as alucinações revolu­cionárias que lhe teriam afetado a sanidade mental: Insanis, Paule, multae te literae ad insaniam convertunt.

E poder-se-ia, ainda, estar diante de uma das formas de psicopatia de que nos fala Von Rhoden (Einführung in die Kriminalbiologisch Methodenlehre, pág. 150), a pseudologia. Ora, os pseudólogos têm precisa­mente nas notas, diários, cartas, escritos, o meio preferido de manifes­tar a irrefreável necessidade de mentir.



Nº 8 — Também o esquizofrênico apossa-se da mania de escrever. São célebres os estudos de Bunke, fundados precisamente nos escritos de seus clientes, entre os quais encontrou uma frase que passou a ser o exemplo mais típico do pensamento esquizofrênico: ‘devo descender de Diógenes, porque Diógenes buscava um homem com uma lanterna e eu acho isto um absurdo’.

Nº 9 — São inúmeras as frases existentes nas chamadas Cadernetas Prestes que demonstram a mesma desorganização mental e que figura­riam, com destaque, entre os exemplos citados por Bunke.”

Fez sucesso na Auditoria o trecho que se seguiu:

Nº 10 — Ora, a utilização da escrita faz parte, no conjunto de técnicas psiquiátricas, dos exames de sanidade mental. Entre nós, desde o começo do século, a escrita foi incluída entre as exigências estabelecidas para os exames mentais, conforme se vê no antigo regulamento do Ser­viço Policial do Distrito Federal, aprovado pelo Decreto 6.440, de 30 de março de 1907.

Nº 11 — A ciência moderna entende que a pesquisa da enfermidade mental, ao lado da revolução técnico-material, deve obedecer a proces­sos superiores através da análise da inteligência e da vontade, conside­rando-se a escrita a forma mais comum de manifestação da inteligência e, em conseqüência, de suas enfermidades. Assim o entende Kulpe e seus discípulos, tais como Ach, Michotte e Lindworsky.

Nº 12 — É válida, portanto, a análise científica de escritos para infe­rir, não o diagnóstico de insanidade, mas o indício de sua provável existência, fato esse que, constatado, obrigará que seja requerida a perícia médico-legal competente pelas pessoas que têm o poder e o dever de requerê-las, isto é, V. Exa. ex officio, o representante do Ministério Pu­blico e o defensor do argüido. O escrito, de próprio punho e volumoso, oferece caminho seguro aos especialistas para a verificação do indício: E culmo spica conficitur.

Nº 13 — Se exata essa fundada suspeita, o autor dos escritos incriminados será penalmente irresponsável, ainda que verdadeira a hipótese da existência material do delito que lhe foi imputado. Se os médicos en­tenderem — sempre no terreno de hipótese —, que s.s. é apenas semi-responsável, ainda assim convém que ele próprio reconheça, afinal, na semilucidez, a verdade de Terêncio: Ego pretium ob stultitiam fero.

Nº 14 — Não se pode, pois, recusar a prova ora requerida sem grave cerceamento da defesa e flagrante ameaça à Justiça. Invocando o esta­tuído pelo artigo 3º do Código de Processo Penal, lembramos a lição de Moacyr Amaral Santos: ‘Entre os casos em que a prática da perícia médico-legal se impõe, apontam-se:

g) para verificação do estado de sanidade de quem quer que seja, uma vez que a moléstia, o defeito físico ou a condição de saúde constituem fatos influentes para a decisão da causa’ (Prova Judiciária no Civil e no Comercial, pág. 167).



Nº 15 — Maior cuidado reclama a decisão da causa penal, quando estão em jogo a liberdade e a honra de cidadãos honestos, decentes, patriotas, chefes de família. Na espécie, o estado de sanidade mental do autor das anotações das cadernetas constitui ‘fato influente para a deci­são’ do feito. Caso contrário, estaríamos desprezando o princípio da responsabilidade moral para adotarmos o simplismo da escola positiva, que se satisfaz apenas com a responsabilidade legal, cuja adoção só se encontra no Código Penal Soviético... Não há como recusar a aferição da prova por especialistas, ainda que para nós, leigos, pareçam essas anotações obra da melhor literatura. Nunca é demais lembrar a adver­tência do mestre Nelson Hungria: “Devem ter-se em vista, igualmente, os prolongados ‘intervalos lúcidos’ ou ‘períodos livres’, próprios de certas doenças mentais” (Comentários do Código Penal, vol. I, tomo II, pág. 327). A aparente ‘ordem’ das anotações, para os psiquiatras, poderá ser o ‘sistema delirante mais ou menos estruturado’, de que se falou acima: ‘Quand un fou parait tout à fait raisonnable, il est grandement temps, croyez-moi, de lui metre la camisole’ (Poe).

Nº 16 — Pressupondo-se verdadeira a autoria das notas das caderne­tas incriminadas, é de se supor, pela idade — e a senilidade é uma forma de psicopatia para efeitos penais — e pelo longo desgaste na sofrida e inglória vida política do Sr. Luiz Carlos Prestes, é de se supor que tais anotações sejam fruto de sua fixação de idéia, capaz de transformar, pela imaginação enferma, o simples encontro social, a simples troca de im­pressões sobre a situação nacional, em secretas conspirações ou maquinações fantásticas, já que a debilidade mental é uma fuga do mundo real e desagradável para um mundo de fantasias construídas ao sabor do temperamento, do passado, do desejo e das frustrações de cada doente.

Nº 17 — Assim, Meritíssimo Juiz, deve ser deferida a perícia reque­rida, uma vez que o Código da Justiça Militar permite expressamente a realização de ‘quaisquer exames’, conforme se pode inferir do artigo 288, letra ‘c’, colocando sob a competência de Vossa Excelência o proce­dimento respectivo (art. 101, letra ‘b’) e permitindo a espécie de prova solicitada (art. 160, letra e’).”

Chutei mais do que Pelé nos seus tempos áureos.

Processada a petição, apareceu na minha casa, à noite, uma perua Kombi. Eu morava na Praça Lucélia, no Sumaré, em São Paulo. Dela, saíram destacados dirigentes do Partido Comunista, todos na clandestinidade. En­traram e quiseram me forçar a desistir da prova. Seria a desmoralização do líder Luiz Carlos Prestes, que, àquela altura, depois de uns tempos no Rio de Janeiro, já estava na União Soviética. Fugira da repressão com uma facili­dade espantosa. Pena que, naquela noite, eu ainda não sabia do acerto com o DOPS. Ah! Se soubesse!

— Senhores, entendo a preocupação política de vocês — ponderei, misturando “senhores” com “vocês”. — Mas se trata da liberdade de muitos chefes de família, seus companheiros de partido. Vocês não sabem o que é prisão nesta ditadura e precisam compreender que o advogado tem obriga­ção de fazer tudo por seus clientes. Creio que descobri uma forma de livrar todos da cadeia. Meu objetivo é esse. Prestes que fique tranqüilo na União Soviética. Enquanto ele não aparecer por aqui, haverá a dúvida, e ninguém poderá ser condenado, antes que ele seja examinado pessoalmente.

— É uma questão de princípio. Desejamos a liberdade de todos os nossos camaradas, mas não a esse preço. Não se pode criar a menor dúvida sobre a integridade mental de um líder que tantos serviços prestou à causa brasileira da liberdade.

— Pois, neste momento, estou interessado na liberdade dos meus clien­tes, já que essa liberdade brasileira, de que vocês falam, já foi pro brejo. Os mili­tares ficarão anos no poder, para infelicidade geral da nação. Vocês vão me des­culpar, mas não desisto da prova. Vou batalhar por ela e espero libertar todo mundo. A causa da liberdade, agora, não é a de Prestes, mas a dos presos.

— Então fique o senhor sabendo que entraremos em contato com os camaradas que lhe passaram as procurações, e elas serão cassadas.

Cassaram coisa alguma. Continuei advogado, com uma agradável sur­presa: os militares adoraram a idéia de levantar dúvida sobre a sanidade de prestes. O juiz auditor, que se chamava Tinoco, adiantou-me que ia deferir a prova, e cheguei a formular os quesitos, cuja cópia perdi, e que eram o melhor da história.

Como o advogado não pode confiar em uma única estratégia, tratei de participar da impetração de habeas corpus perante o Superior Tribunal Militar, redigida e assinada em conjunto por um grupo de notáveis colegas: Heleno Fragoso, Cândido de Oliveira Neto, Raul Lins e Silva e Modesto de Oliveira. Perdemos lá, mas ganhamos no Supremo Tribunal. Todos os presos foram soltos. E o exame psiquiátrico nas “cadernetas” não precisou ser feito. Até hoje me pergunto: como aqueles dirigentes comunistas, na clandestinidade, co­nheceram o teor da minha petição?

Andando na rua, às vezes eu era peitado por alguns brutamontes, homens fortes, bem vestidos e mal encarados, invariavelmente de óculos pretos:

— Você está advogando para comunistas. Vai se dar mal!

Agentes do regime autoritário. Até isso faziam para intimidar os advo­gados. Depois, desapareciam no meio da multidão. Eram os trombadões da ditadura.

Tempos duros aqueles. Ficaram com o apelido de anos de chumbo, ba­tizados por um historiador.

Um amigo, que freqüentava meu escritório apenas para um bate-papo, Rubens Paiva, um dia desapareceu. Fiquei sabendo que os militares o apa­nharam. Simplesmente desapareceu. Nunca mais se ouviu falar dele. Era um homem afável, inteligente, pacífico. Sumiu! Nada mais do que isto: sumiu.



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