Código da Vida



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— Saulo, preciso de você no Rio, e com urgência — falou pelo telefone Evaristo de Moraes Filho, meu colega e amigo, um dos melhores advogados criminalistas da nossa geração, aquele que trabalhou comigo no caso de Florestan Fernandes e Fernando Henrique Cardoso.

— O que aconteceu? Por acaso dissolveram o Fluminense? — respondi brincando, porque ele era um tricolor apaixonado.

— Nossos telefones estão obviamente grampeados. Preciso falar pessoalmente, mas aqui. Gostaria que você viesse para o Rio amanhã sem falta.

Fui. Nada poderia negar ao Evaristinho. Um dia, havíamos trabalhado juntos em um caso complicado, quando pegaram uma porção de brasileiros que investiram dinheiro no exterior, num banco suíço. Com medo da inflação e da ditadura, várias pessoas caíram na tentação de corretores paulistas e cario­cas. Investiram parte de suas economias em dólar, em uma instituição finan­ceira meio mambembe, mas que, por ser na Suíça, oferecia ilusória segurança. Até o fabuloso Dr. Zerbini, o maior cardiologista da época, caiu na esparrela. Todos processados por evasão de divisas. Processo feio, complicado.

Fomos, a convite da instituição, para Genebra. Chamava-se Internatio­nal Overseas Service — IOS. Lá, contrataram nossos serviços. Um dos dire­tores do banco era o filho do ex-presidente dos Estados Unidos Franklin Delano Roosevelt. Recebemos o pro labore em dólares. Eu deixei minha parte depositada no próprio banco. Evaristinho não quis saber: pôs seus dólares no bolso e veio para o Brasil com eles. Muita coragem. Mas fez bem. Depois, o banco quebrou, e lá se foi meu pro labore. Conseguimos absolver os depositantes, mas não recebemos o resto do contrato.

Fizemos várias viagens à Suíça. A conversa de Evaristo era deliciosa, menos quando desandava a falar no Fluminense. Não podia deixar de atendê-lo agora. Ao chegar ao Rio, ele me explicou:

— Foi preso um jovem casado, com filhos, de família do Rio, minha co­nhecida, e fui chamado para defendê-lo.

— Até aí não vejo por que você precisa de mim.

— Espera. Um desses esquerdistas malucos participou de um assalto a banco, nessas operações que eles chamam de desapropriação do capitalismo para financiar a revolução deles.

— Mas, nesse caso, é assalto, crime comum e grave. Nada tem a ver com ideologia.

— Espera. Na fuga, o assaltante escondeu-se na casa daquele jovem. A polícia cercou a casa e prendeu os dois. O assaltante tinha a chave da porta dos fundos, o que implicou de vez o meu cliente. E ele é inocente.

— E a chave?

— A mulher dele. Ela é amante do assaltante.

— Rima pobre.

— Ele descobriu agora. Falei com ele na prisão. Já havia chegado a essa conclusão. Fui conferir com a empregada, e ela me entregou tudo. A mulher se encontrava com o “namorado” na casa do próprio casal, pois a porta do fundo era entrada separada do resto da casa, e havia no jardim um quarto destinado a jardineiro, que nunca foi contratado. Ali, durante o dia, segundo a empregada, viviam o romance, até com alguns gritinhos que não conse­guiam segurar.

— No que posso eu ajudar nisso tudo? Abafar os gritinhos?

— Estive pensando numa solução ao seu estilo. Fazer tudo diferente. Meu cliente, se contar essa história no processo aberto pelos militares, não terá su­cesso. Vão dizer que é desculpa de última hora, ou vão prender a mulher tam­bém. Já estou até vendo a cara dos auditores militares: o réu prefere ser corno a assumir a responsabilidade de ter dado cobertura ao subversivo e assaltante.

Eu conhecia bem a capacidade de Evaristo e adivinhei o que ele estava tramando:

— Já sei. Você quer um desquite litigioso, em processo na Vara de Famí­lia, longe dos militares. É isso?

— Bingo! Você matou. Eu seguro a ação na Auditoria de Guerra, vou pedindo ouvida de testemunhas de canonização, hoje cada dia mais raras, porque todos têm medo de depor, sobretudo em favor de réus acusados de crimes contra a segurança nacional. Ganharei tempo, mas preciso que o des­quite litigioso ande a jato.

O cliente dele passou-me procuração. Advogar no Rio é agradável. Tudo ajuda. Natureza, beleza das praias, alegria das pessoas, a simpatia folgada dos servidores públicos, sempre solícitos com a frase pronta: “É pra já!”. E não é verdade. Demora pra chuchu. Mas sorriem.

A causa não foi muito difícil. A empregada ajudou decisivamente. Além dela, os parentes, a quem confidenciava o que estava acontecendo na casa da patroa havia muito tempo. Prova testemunhal esmagadora.

A mulher, quando viu que estava sendo processada na Vara de Família, sob acusação de adultério, ficou apavorada. Propôs todos os tipos de acordo, para fazer o desquite amigável, solução que os advogados almejam, não apenas para pôr uma pedra em cima do assunto, como também para evitar a lavagem de roupa suja nos autos. Minha consciência doeu demais, e a resposta foi seca: “Acordo, de jeito algum! Quero a condenação dessa mulher”. O advo­gado dela não acreditou. Aquilo negava tudo o que ele sabia a meu respeito na advocacia.

Mas eu não podia dizer nada. Era importante manter o sigilo. Eu preci­sava de uma sentença, e não de um acordo.

Quando requeri o depoimento do assaltante, ele foi conduzido alge­mado para a Vara de Família. Veio escoltado. O juiz mandou a escolta ficar do lado de fora. Havia, porém, uma figura que acompanhava a escolta. Mal po­dia disfarçar. Era agente secreto. Estava na cara. Com profunda delicadeza, acercou-se de mim e perguntou:

— Qual a razão desse processo? O indivíduo ali — apontou para o assaltante — é réu ou testemunha? Do que se trata, afinal?

— O processo está sob segredo de Justiça, meu caro. Isso equivale a se­creto para vocês nas Forças Armadas — respondi e entrei na sala do juiz, dei­xando o agente com súbita expressão de espanto.

Ganhamos o processo. A mulher foi condenada pela prática de adulté­rio, perdeu a guarda dos filhos, o direito à pensão, todas essas sanções que a lei velha aplicava nesses casos, constando da sentença a minuciosa circuns­tância de que se encontrava com o amante na própria casa, e a ele dera uma cópia da chave da porta dos fundos. E que o amante disso se servira para, após um assalto a banco, refugiar-se na residência dela, comprometendo seu marido, que fora preso juntamente com o meliante, agravando o ultraje mo­ral sofrido. Uma injúria incomensurável.

Era o que nos interessava. O advogado da mulher apelou. No Tribunal de Justiça, o problema estava em fazer a ação andar rapidinho. Consegui. Confirmada a sentença. Votação unânime. Não houve recurso ou não foi admitido, não me lembro mais. Com a certidão do acórdão transitado em julgado, Evaristo acabou com o processo contra seu cliente. Um acórdão do Tribunal de Justiça não podia ser invalidado pela Justiça Militar, nem pela Criminal. O rapaz era inocente.

Não sei em que programa humorístico ouvi esta frase fantasticamente óbvia: o inventor é aquele que inventa.

Minha outra invenção em processo da ditadura foi mais sensacional ainda. Pelo menos na minha opinião, despida de qualquer modéstia, que não passa de pudor do orgulho. Claro que tive incontido orgulho de vencer os mili­tares no caso que vou narrar e pelo modo como consegui. Aliás, vencer agentes da ditadura era uma alegria sempre, mesmo porque raramente acontecia.



96

Foi aberto inquérito contra o Prefeito de Santos, José Gomes, e seu che­fe de gabinete, Juarez Bahia, jornalista, meu amigo. Bahia foi preso juntamente com o vereador Oswaldo Justo, que sofreu barbaridade naqueles tem­pos trágicos.

Nesse caso, encontrei solução absolutamente marota. Vejam a que ponto cheguei!

José Gomes era Vice de Luiz la Scala, Prefeito de Santos eleito. Morreu antes de tomar posse. José Gomes assumiu depois de uma briga judicial sobre o direito autônomo do vice, naquela mesma eleição em que Mário Covas fi­cou em segundo lugar na votação. Implantado o regime militar, José Gomes foi destituído do cargo e processado juntamente com Juarez Bahia, seu chefe de gabinete. O inquérito contra ambos era uma sacanagem sem tamanho: fotos tiradas em campo de futebol, ao lado de líderes sindicais tidos como co­munistas. E filmes que o departamento cultural da Prefeitura recebia dos consulados e projetava para o povão pobre em sessões ao ar livre nos bairros. Documentários americanos, franceses e — epa!, olha o crime! — da Tchecoslováquia e da União Soviética. Os documentos dos autos descreviam as sus­peitas que pesavam, todas malucas, contra os sindicalistas e aquelas sessões públicas de cinema. E, por haver se deixado fotografar com “essa gente”, o ex-prefeito foi indiciado em inquérito policial militar. Em algumas fotos, aparecia o Juarez Bahia.

Eu nem era advogado deles. Fui ao fórum olhar o processo a pedido do colega jornalista, que estava desesperado com a situação de ambos. E Juarez era meu amigo, havíamos trabalhado juntos em A Tribuna.

— Sem procuração? Nem pensar! — disse o escrevente, quando che­guei ao cartório e pedi para dar uma “olhada” no processo.

Fiz algumas ponderações, inclusive argumentando que precisava ver, até para decidir se pegaria a causa.

— Este processo é de interesse dos militares. Ninguém mexe nele. Só o juiz e o promotor, porque ainda está na fase de inquérito criminal derivado de um IPM (Inquérito Policial Militar).

Os militares faziam o inquérito e mandavam cópias para a Justiça abrir outro inquérito contra as mesmas pessoas. Em geral, o IPM fuçava na vida de centenas de pessoas e depois se dividia em vários inquéritos separados para as pessoas escolhidas pelos militares para serem condenadas pela Justiça comum. Convém observar: as pessoas eram escolhidas não apenas para se­rem processadas, mas para serem condenadas. E ai se não fossem!

Em Santos, havia um capitão dos Portos chamado Júlio de Sá Bierrenbach, cujo posto era capitão-de-mar-e-guerra, que deixou o mar e virou somente de guerra. Prendia todo mundo no maldito navio presídio Raul Soares, que fazia inveja a qualquer masmorra de torturas já inventada e ainda por ser.

Um dia, o Juiz da 2ª Vara Criminal de Santos, Antônio Ferreira Granda, concedeu habeas corpus para dezesseis presos, que deixaram o navio por vol­ta das 21 horas. Foram colocados na sala daquele capitão dos Portos, Júlio de Sá Bierrenbach, de quem ouviram a pergunta sobre se alguém tinha queixas contra o tratamento recebido.

Não houve nenhuma resposta, pois a vontade de ir para casa era muito grande, e ai de quem dissesse ter sido maltratado. O capitão chamou a im­prensa, mandou que os fotografassem e saíssem. Em seguida, tornou para os presos: “Quero comunicar que vocês estão soltos e que, agora que estão em liberdade, estou dando nova voz de prisão, pois, se saíram do processo da Aeronáutica, ainda não enfrentaram o da Marinha. Estou abrindo novo inquérito”. E deu ordem para que os soldados os conduzissem de volta ao navio.47

Mas, no caso do ex-prefeito e do meu amigo Juarez Bahia, não havia a terrível perspectiva de irem para o Raul Soares, que fora desativado em fins de 1964. Era vergonhoso demais até para a ditadura.

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O mundo e os céus haviam intercedido em favor do Prefeito José Go­mes. Todos achavam uma tremenda injustiça o que estavam fazendo contra ele. A Associação Comercial pediu por escrito aos militares que a ordem no município não fosse perturbada. O bispo de Santos mandou ofício, em nome da Igreja Católica, ao comandante geral da Praça de Santos, General Carlos Buck. Vejam que tempos: para formular pedido em favor de alguém, a pró­pria Igreja começava elogiando a ditadura, numa desesperada demonstração de que era preciso bajular primeiro, para atrever-se a solicitar depois. O ofí­cio do bispo começava assim:

“Tem-se dito, e é verdade inconteste, que a segunda fase da revolução vitoriosa, que baniu de modo surpreendente para nós o perigo do bolchevismo no Brasil, a 2ª fase, repito, é mais delicada ainda, porque visa repor armas em seu lugar, alijando elementos nocivos infiltrados, infe­lizmente em todos os setores da vida nacional.

Nesse expurgo, que é necessário, há, contudo, o perigo de punir pes­soas inocentes...”48

E aí pedia pelo Prefeito de Santos, garantindo ser ele inocente. De nada adiantou. Cópia do ofício foi anexada aos autos para “constar”, mas, na ver­dade, constituía documento para, surgida a hipótese, incriminar aqueles que pediram pelo réu. De nada valiam as piedosas perorações. Como de nada va­lia a defesa dos advogados. Foi por isso que resolvi “inventar” mais uma vez.

Insisti com o escrevente. Uma olhadinha só nos autos do inquérito. Ninguém vai ficar sabendo. Ele firme: de nada vai lhe servir, não há tempo de ler tudo.

Conversamos, conversamos, conversamos. Concordou em mostrar so­mente as últimas páginas para eu ver em que fase se encontrava a “investiga­ção”. De início, verifiquei que, na capa, o inquérito fora aberto contra Arthur Demétrio Barroso e outros, mas, por cima desse nome, escreveram à mão, com tinta preta, em letras grossas, o nome de José Gomes e outros. Chamei a atenção do escrevente para aquela adulteração material. “Isto é uma ba­gunça!” disse ele. Gostei.

Abri na última página, e minha experiência de advogado imediatamente me fez ver a salvação: o último despacho era do delegado de polícia do DOPS, devolvendo o inquérito a Juízo, para obter mais prazo, com o carimbo certi­ficando a remessa. E mais nada. Mostrei para o escrevente: o inquérito saiu do DOPS e oficialmente ainda não chegou aqui, porque o cartório não carimbou a entrada. Era o cartório do Segundo Ofício Criminal da Comarca de Santos.

— Mas assinamos o recibo — disse ele, entendendo bem minha obser­vação e a que ponto eu queria chegar. — É verdade que o recibo é coletivo — completou. — Abrange uns vinte ou trinta processos, que vão e voltam a cada trinta dias. São tantos, e isso ocorre todos os dias.

— Mas dentro da bagunça — observei.

Conversamos, conversamos, conversamos. Por dever de sigilo profissio­nal, não conto qual o objeto das novas conversas.

Afinal ele se convenceu, mandou-me ir para a rua e me postar na calça­da sob uma janela, que ele apontou com o queixo:

— Aquela janela. Pode demorar. Tenha paciência.

Agradeci. Sai do fórum e, na rua, fui para debaixo da janela combinada Fiquei lá. Às vezes, olhava para cima, e nada. Passavam poucas pessoas por aquele lado. Mas algumas me reconheceram, cumprimentaram e se foram. Ainda bem que ninguém quis esticar o papo.

De repente: plaft! Lá de cima caiu, na calçada, um processo, que eu peguei imediatamente. Alguns transeuntes viram. Com a maior calma, obser­vei que alguém deixara cair aqueles autos, e eu ia devolvê-los. Com o processo sob o braço, encaminhei-me calmamente para porta principal do fórum, di­rigi-me a um dos porteiros e falei qualquer coisa, talvez sobre algum jogo do Santos. Fiquei por ali alguns minutos, e nada mais normal do que um advo­gado, carregando um processo, dirigir-se ao estacionamento, entrar no carro e ir embora.

Guardei os autos em minha casa, em São Paulo, durante todos os anos de chumbo. Pretendia oferecê-los como presente ao Juarez Bahia, para que ele mostrasse à família e aos amigos os absurdos da acusação. Muitas situações de minha vida se fizeram de boas intenções, mas deixei de realizá-las enquanto havia tempo.

Mário Covas, quando era Governador de São Paulo, telefonou-me pro­testando: “Você ainda não veio me ver Governador. Espero sua visita antes do fim do mandato, ou será preciso que caiam morros para você vir me ver?”. Memória e carinho. Não fui. A advocacia atribulada não deixou. Depois, ele adoeceu gravemente. Não fui visitá-lo, impedido por uma forte covardia. Tudo acabou quando assisti pela televisão à chuva de rosas que sobre ele caiu no seu enterro, em Santos.

Com Juarez Bahia, aconteceu a mesma coisa. Queria dar-lhe os autos do inquérito que furtei do Judiciário. Deixei para depois. Juarez escreveu um trabalho sobre Patrícia Galvão e, em seguida, morreu precocemente. Aquele “depois” ficou tarde demais.

O velho processo ficou no meu arquivo também chamado de morto. É um dos arquivos da ditadura, ainda vivo, que eu posso abrir sem pedir li­cença para ninguém, pois, transcorridos mais de quarenta anos, já se deu o usucapião sobre a coisa móvel, que nós, juristas, chamamos de prescrição aquisitiva.

A morte do Prefeito eleito e a posse do Vice-Prefeito José Gomes, como titular de direito próprio e autônomo, foi o caso que criou a jurisprudência objeto de minha discussão com Mário Covas pela posse de Sarney, quando Tancredo foi para o hospital. Que sorte teve o Zuza em não vencer aquela eleição! Do contrário, na capa do inquérito teriam escrito, em vez de José Gomes, o nome de Mário Covas.

Mas haveria a mesma janela, por onde os autos seriam atirados, e eu es­taria, do mesmo jeito, na calçada, esperando a queda do inquérito.

Império ou inquérito, tudo passa e com o tempo vira neblina. Quando fui Ministro da Justiça, Mario Covas foi várias vezes me visitar. Longos pa­pos sobre nossa juventude em Santos e sobre tudo quanto o destino nos aprontou. Mas jamais fui visitá-lo enquanto era governador. O tempo en­volveu-me em mais neblina e quando despertei estava enxugando lágrimas.



98

Olavo Brás entrou na minha sala. Queria informação sobre o processo dele. E foi logo dizendo que soube de uma visita estranha recebida por seus filhos.

— Que visita? — perguntei.

— Parece que foi o juiz em pessoa.

Aquele frio na barriga não é recurso literário. Acontece realmente. E aconteceu comigo mais uma vez.

— Não é possível. Quem inventou essa história?

— Doutor, tenho que lhe confessar uma coisa. O senhor disse que o cliente não pode mentir ao advogado. Sou muito grato pelo senhor haver pego minha causa. Mas estou desesperado para saber notícias das crianças, saber qualquer coisa. Consegui fazer um acerto com a empregada. Pago o dobro do salário que ela ganha da minha ex-mulher. Ela topou. Sempre me telefona, quando há novidade. Quando não há, informa sobre a saúde das crianças, o que estão fazendo, se estão indo à escola, o que fizeram no fim de semana.

— E daí? — perguntei já um pouco agressivo, mas entendendo que o suborno da empregada era um gesto legítimo de pai desesperado e saudoso, Preocupado com o dia-a-dia de seus filhos. — Novidade? Que novidade pode informar a empregada?

— Ela me contou que o juiz esteve lá, conversando com as crianças — gaguejou.

— Pois não esteve. Ela confundiu. Foi alguém que usou o nome do juiz, algum assistente social encarregado de investigar a situação do ambiente fa­miliar em que vivem. Coisas que a Justiça faz rotineiramente — procurei em­brulhá-lo com papel de seda.

— Mas ela garante que era o juiz e que ele se identificou ao pedir para entrar. E mais: que minha ex-mulher ficou apavorada.

— Sr. Olavo, vou-lhe pedir um favor. Eu cuido do caso. O senhor cuida da empregada. Mas somente para saber como vão as crianças. Os demais aspectos do litígio são meus. Não desejo que o senhor se meta nisso. E fale com sua empregada...

— A empregada é da minha ex-mulher!

— ...pois fale com ela para não comentar mais isso. Ela entendeu tudo errado. Bico fechado.

— O senhor soube de alguma coisa?

— Sr. Olavo, quando aceito defender um cliente em caso complicado, como o seu, procuro saber de tudo.

— Mas eu não tenho o direito de ser informado sobre suas desco­bertas?

— Tem em parte. Muitas, devo manter em sigilo para o seu próprio bem.

— Doutor, o meu caso não tem bem algum. Somente males desabaram para cima de mim até agora.

Percebi que a conversa se encaminhava para o muro das lamentações. Resolvi dar uma virada brusca:

— Explique-me, então, meu caro cliente, por que, sabendo que sua ex-mulher o traía, o senhor a perdoou?

Foi um choque. Ele empalideceu.

— Não é bem assim, doutor. Ela realmente teve uns casos, e eu descobri. Pensei numa solução drástica, na separação judicial litigiosa, para, inclusive, deixá-la sem a guarda das crianças. Os advogados que consultei disseram-me que o adultério serviria para livrar-me do pagamento da pensão para a mu­lher, mas em geral não justificaria a perda do direito de guarda, já que em casa ela tinha vida regular. É isso?

— Mais ou menos. O seu perdão?

— Tenho que admitir que não foi perdão algum, tanto que acabamos nos desquitando amigavelmente. Na época, ela estava sob tratamento psiquiá­trico. Ela é louca, doutor!

— Isso o senhor também não me contou. Tive que descobrir por mi­nha conta a doença de sua ex-mulher. Já que o senhor quer novidade, requeri que fosse ouvida a médica que a tratou, e o juiz parece que vai deferir. Estou apenas aguardando o despacho dele, depois da manifestação do advo­gado dela.

— Desculpe, doutor. O senhor está atento ao meu caso, e eu aqui ator­mentando sua paciência.

Despediu-se, depois que lhe disse ter paciência de sobra, mesmo por­que, entre as figuras brasileiras canonizadas, em primeiro lugar vem a santa paciência. É verdade. Uma das maiores provas a que foi submetida minha pa­ciência aconteceu quando eu era Consultor Geral da República, durante o início dos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte.

Esse caso é de estarrecer e faz parte da história do Brasil, que pouca gente conhece.

99

Sete e meia da manhã, a empregada me acordou pelo interfone:

— Doutor, aquele deputado está aí novamente.

Era o Deputado Bernardo Cabral, que passara a me assediar em casa, na primeira hora da manhã, para não correr o risco de ir à Consultoria Geral da República, no Palácio do Planalto. E de ser visto. A residência do consultor não se comparava às dos ministros de Estado, mas estava entre elas na pe­nínsula em que foram construídas em Brasília e que, por sua destinação, chamou-se Península dos Ministros. Tinha algum conforto.

O Deputado Bernardo Cabral chegava cedo e, sempre muito gentil, tra­zia pão fresco, rosquinhas saídas do forno e outras iguarias, que valorizavam o café-da-manhã, muito magro no meu dia-a-dia.

— Você já falou com o Presidente?

— Já, meu deputado. E falei várias vezes.

— E ele?


— Está trabalhando a idéia. Vocês, políticos, devem entender que não é fácil alinhavar um consenso nesse caso. Confio na habilidade do Sarney. Tenha Paciência.

Embora aparentando calma (e Cabral é exímio em aparentar qualquer coisa), ele insistia em seus argumentos de que, entre os postulantes ao posto, era o único advogado militante, o único que havia sido presidente da OAB nacional e o único que seria incondicionalmente fiel ao Presidente da República em qualquer hipótese. E tome pão fresco!

O cargo disputado pelo deputado era simplesmente o de Relator da Assembléia Nacional Constituinte.

— Todos os seus sonhos de jurista — dizia ele, repetindo uma cantilena de todos os dias no café-da-manhã — serão realizados no texto da futura Constituição. Tudo o que você escrever incorporarei ao texto, como se fosse meu, e você será, na verdade, o redator da nova Carta, se eu for o relator.

— Vamos devagar, deputado — dizia eu, agradecido pela oferta e pelo pão fresco que ele trazia diariamente. — Obrigado pela confiança, mas esse é um problema político difícil. Somente o Presidente pode resolver seu pedido. E ainda depende da Assembléia Constituinte e de suas lideranças.

Essa cena repetiu-se à exaustão. Testou bem minha paciência. Meus cafés-da-manhã tiveram dias gloriosos de roscas e pão quentinho na primeira hora. Mas o deputado amazonense não dava sossego. Muitos líderes políticos resistiam ao nome dele.

Certa vez, passei uma tarde na casa de Toninho Drummond, que trabalha em Brasília para a TV Globo, e não fiz outra coisa: telefonei a todos os parlamentares contrários à indicação de Bernardo Cabral e seduzi muitos com o convite para serem entrevistados pela televisão. A Globo, como sempre, seduzia ao máximo. Toninho me ajudou muito.

Quem mais trabalhou, porém, foi Sarney e conseguiu, com sua habilidade política, neutralizar a costura do Dr. Ulysses Guimarães em favor de outro candidato. O Senador Fernando Henrique Cardoso, já conversado pelo próprio Cabral, não ofereceu resistência. Assim, obteve-se a indicação do De­putado Bernardo Cabral para Relator Geral da Assembléia Constituinte.

— Você fica responsável pelo trabalho dele — disse-me Sarney, depois de resolvida a questão.

Concordei com a indicação por dois motivos: pelo seu pedido e pelo fato de ele ter sido presidente da OAB, pensando em duas premissas básicas: sua assessoria e uma simbólica homenagem aos advogados brasileiros.

— Obrigado pela parte que me toca nas duas hipóteses. Creio que vai dar certo.


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