Código da Vida



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Não posso dizer que tudo se deu abruptamente, porque o meu bruxo predileto, o Gervásio, havia previsto com muita firmeza. Fui convidado para jantar na casa de Paulo Brossard, que era Ministro da Justiça e havia sido Consultor Geral da República antes de mim. Ele requisitara Eunice, funcioná­ria da Eletronorte, para ser sua secretária na Consultoria Geral. Como ficaram, ele e sua mulher, Dra. Lúcia, muito amigos dela, convidaram-na também.

— Vamos jantar juntos hoje — disse eu, quando Eunice entrou na mi­nha sala naquele dia.

— É verdade — respondeu. — E será um prazer! Pelo menos pode­remos conversar de outras coisas sem ser de serviço.

— Isso será ótimo! A senhora quer que passe em sua casa para levá-la?

— Não vai dar muito trabalho? Se o senhor me levar, vai ficar com a obrigação de me entregar em casa de volta.

— Combinado. Às oito horas, estarei lá. O motorista sabe onde é?

— Sabe.


Chegamos juntos à casa do Ministro da Justiça. Chefe e secretária. Esse detalhe, para Brasília, é motivo de todas as fofocas possíveis. “Estão rolando coisas entre eles!” A imprensa sempre está atenta. Creio que fizeram uma foto, quando saímos do carro.

Poucos convidados. Paulo Brossard, na verdade, queria conversar com alguns amigos — eu, entre eles — sobre um convite de Sarney para nomeá-lo Ministro do Supremo Tribunal. Haveria uma troca. Oscar Correa ia apo­sentar-se e assumiria o Ministério da Justiça. O sonho de Brossard em ser Governador do Rio Grande do Sul havia se desmanchado. Boa solução ir para o Supremo.

Sarney nada me havia dito, a não ser, algum tempo antes, a insinuação, a primeira, para que aceitasse a vaga do Oscar no Supremo. Minha resposta foi prática:

— E eu vou ficar impedido de tomar uísque no Florentino? Não, obri­gado! Quando sair do Governo, volto para São Paulo correndo. Minha vida é a advocacia. E estamos conversados!

Mas a idéia de nomear Paulo Brossard pareceu-me ótima. Era um bom jurista. Eu o conhecera muito antes de participarmos do Governo Sarney, nos seus tempos de parlamentar: grande orador, bom legislador, sério. Sobre­tudo o conhecera como advogado. Tivéramos divergências na Constituinte, pois sua fixação pelo parlamentarismo impregnava até sua respiração um pouco ruidosa. Não era fumante. Mas tragava as idéias de Raúl Pila com todas as forças de seus pulmões.

Como em todo jantar, conversa-se com um, conversa-se com outro. Aca­bei conversando com Dona Eunice, afinal minha acompanhante. E levei um choque: ela não bebia! Pensei comigo que devia ser uma chata. Naquela época, em Brasília, todo mundo gostava de uísque ou vinho. Naquela época, descul­pem, é maneira de dizer. Em todas as épocas. Eu mesmo, quando me aproxi­mei de Dona Eunice, já havia tomado umas duas doses de um ótimo escocês.

Brossard estava tomando vinho. O filho dele passou por perto, e ele ofe­receu uma taça. O rapaz respondeu:

— Obrigado, pai, mas o senhor sabe que não tomo álcool.

— Isto não é álcool, meu filho. É vinho.

Voltei-me para Dona Eunice e perguntei:

— Nem vinho?

— Não, nada de álcool. Sou como o filho do Ministro Brossard.

Mas a conversa rolou descontraída. Ela me contou coisas de sua família, casos de suas irmãs e irmãos, todos de Iporá, Goiás. E deu risadas gostosas nos trechos mais engraçados. Contou os tombos que levou na infância, quando fraturou o maxilar. E riu. Notei que suas risadas eram iguais às da minha mãe. Sonoras, espontâneas. Divertia-se imensamente com suas próprias histórias simples. Gente do interior, qualidade que eu conhecia bem. E de que gostava.

Ela me julgava um tremendo paulista de quatrocentos anos. Tive que contar minha infância na roça, minha vida de motorista de caminhão, minha juventude pobre, meu tempo de jornalista até chegar à advocacia, minha úl­tima paixão. Ali mesmo ela ficou sabendo que eu recusara o convite para ser indicado ao Supremo Tribunal e passou a ter certeza de que eu estava no Go­verno para ajudar, e não para tirar proveito de nada. Parece que, afinal, nos conhecemos. No trabalho, nada disso acontece. Não há tempo para papo desse tipo.

Resumindo: voltei a convidá-la para jantar, dessa vez em restaurante. Demos mais e ótimas risadas. Ela sem beber nada, e eu mandando brasa no uísque. Brasa com bastante gelo. Depois, jantamos em minha casa, e eu a pedi em casamento. Ela aceitou. E vivemos, até hoje, um amor imenso, que tornou minha vida a sagração do bem e da verdadeira felicidade. “Adoro as coisas simples. Elas são o refúgio do espírito complexo.”85

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Acabou o Governo Sarney, fomos para São Paulo. Eunice cuidou de pôr ordem nas minhas coisas. Foi a Serra Negra, e minha mãe, pela primeira vez, sentiu e proclamou que eu agora tinha a mulher certa. E se apaixonou por ela também. Meu irmão, que não suportou as cunhadas anteriores, deslumbrou-se com a simplicidade daquela goiana pura e com a verdade de seu amor por mim. Coisas que raramente acontecem naquela altura em que estava minha vida.

Mas aconteceram. Minha vida foi para as alturas. Sujeito de sorte! Eu­nice ainda trouxe sua filha Márcia, que se tornou outra paixão na minha ale­gria de viver. Além disso, Márcia se encantou com Ribeirão Preto, estudou ar­quitetura naquela cidade, ali se formou e disse que não quer sair de lá. Pode haver glória maior para mim, cuja primeira ousadia literária foi escrever a le­tra do Hino a Ribeirão? Sujeito de sorte!

Meus antigos casamentos acabaram melancolicamente. O mais triste é quando se descobre que a imaginada eternidade chega ao fim. Sofocleto ti­nha razão: é eterno enquanto dura, definição que o nosso Vinícius de Morais andou pegando emprestada. De um daqueles casamentos, pelo menos tive um filho, Fernando Saulo, que me deu duas netas, Priscila e Larissa. Trazem felicidade, mas meu sonho era a família no dia-a-dia, nas conversas do café-da-manhã, nas desculpas do porquê se atrasou para o almoço, no planeja­mento das viagens de férias. Isso faz muita falta ao homem só.

O atual Papa Bento XVI disse que o segundo casamento é uma praga. Por isso passei logo ao terceiro. Casar pela terceira vez é, portanto, o triunfo da esperança sobre a experiência.86

Claro que o Gervásio ficou sabendo de tudo. Foi jantar em minha casa, na Chácara Flora, em São Paulo, num fim de semana em que programamos uma rodada de sinuca com todos os demais amigos: Nerval, Casé, Miguel Nassif, Reynaldo Ramalho, meu irmão, Luiz Carlos.

Nerval organizava também noites de música e convidava cantores con­sagrados para participar de nossos jantares. Naquela ocasião, levou João Pa­cífico e as Irmãs Galvão. Ouvimos canções sertanejas, a maioria composta Pelo João. E muito Adoniran Barbosa, que as Irmãs Galvão interpretavam com rara originalidade.

Foi uma noite linda. Mesmo em São Paulo.

Na hora de ir embora, Gervásio pronunciou aquela pergunta irritante:

— Eu não disse?

— Disse o quê? — respondi para irritá-lo também.

— A felicidade existe. É necessário ter sabedoria para encontrá-la. O ca­minho está escrito nas estrelas. É preciso ouvir e entender estrelas, já dizia o velho Bilac.

São Paulo sempre teve o céu nublado. E poluído. Ali, é impossível ver estrelas. Por isso me mudei para Serra Negra, onde brilham juntas, e intensa­mente, as estrelas e a Eunice.

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Há certos acontecimentos, na vida da gente, inexplicáveis. Mas o destino é caprichoso. Uma coisa puxa outra e, de repente, acontece. Nasci em Brodowsky, cidadezinha do interior de São Paulo, terra de Cândido Portinari. Fui jornalista, e o máximo em minha vida foi ter sido advogado. Funções pú­blicas não contam, sobretudo quando eventuais e passageiras.

De que serve, por exemplo, ter sido Ministro de Estado? Talvez um neto meu ou neta possam contar aos seus coleguinhas de escola: “Meu avô foi mi­nistro!”. Duvido se saberão o que isso quer dizer; mas meu neto ou neta me­recerão algum respeito a mais, porque todos os dias ouvem falar de ministros no rádio e na televisão. Deve ser algo importante. Importância terá, porém, o que o ministro conseguiu fazer, enquanto exerceu o cargo.

Quando fui convidado a ir para o Ministério da Justiça, particular­mente, cá entre nós, senti uma certa emoção, porque o meu mestre em Di­reito, Vicente Ráo, havia ocupado aquela pasta. E realizou muita coisa boa. Minha alegria, porém, acabou, quando, instalado o Governo Collor, o Depu­tado Bernardo Cabral foi escolhido para me suceder. A glória do cargo foi para o brejo. Vou proibir meus netos de dizerem que fui ministro. Na galeria dos retratos dos ministros da Justiça, mandei colocar o meu com o rosto virado para o lado contrário ao espaço em que futuramente seria colocada a foto do meu sucessor.

Collor declarou que o deputado havia sido relator da Constituinte que, portanto, era o que mais conhecia o novo Direito Constitucional. Começou a afundar seu governo exatamente nesse ponto. Em matéria de Di­reito, Bernardo Cabral era uma enciclopédia de ignorância: não sabia nada a respeito de tudo. Para justificar-se perante o país, declarou haver feito um curso na Sorbonne, a célebre Universidade de Paris.

Houve um corre-corre para apurar a desinformação dos brasileiros. Como ninguém sabia disso? Apura daqui, apura dali, a própria Sorbonne também de nada sabia. Aí surgiu um jornalista e descobriu. A Universidade de Paris aluga salas durante as férias de verão para companhias de turismo. Os clientes são convidados a visitar o histórico prédio e, antes ou depois da visita, ouvem, na sala alugada, alguém discorrer sobre a história da escola francesa. Era o curso do Cabral, relator da Constituinte de 1988.

Nessa ordem de idéias, também eu teria feito um curso na Universidade de Viena. Fui convidado a participar de um congresso jurídico sobre as rela­ções Europa-América Latina.

Prédio lindo, antiqüíssimo, medieval, séculos de cultura espionando as paredes. Sessão solene de abertura do Fórum Científico na Kleiner Festsaal Universität Wien, de estudos de Direito, sociais e econômicos. Professores russos, poloneses, alemães, austríacos, holandeses, húngaros, suecos, ita­lianos, franceses, espanhóis e latino-americanos. Idiomas oficiais do congresso: espanhol, francês e (eta, nóis!) português. Dentre os sessenta partici­pantes do fórum, somente um falava português: eu.

Sensacional a cultura dos professores europeus participantes do con­gresso: todos falavam correntemente o castelhano. Especialista em direito latino-americano? Não se conquista a cátedra sem falar espanhol. O discurso inaugural foi do Presidente da Costa Rica, Rafael Calderón Fournier, lido por seu Ministro Oscar Alvarez. Belo trabalho sobre Direito Ambiental e sobre a dívida externa dos países latino-americanos.

Em seguida, o jurista italiano Pierangelo Catalano, da Ceisal e professor da Universidade La Sapienza, de Roma, anuncia o segundo e último orador da solenidade. Lá fui eu para a tribuna, pernas tremendo diante de platéia tão qualificada, pedindo a Deus que me protegesse, menino de Brodowski, único brasileiro convidado a participar do fórum. A emoção era agravada pela ar­quitetura majestosa da universidade austríaca mandada construir por Maria Teresa, mãe de Maria Antonieta, a rainha decapitada pela revolução francesa Porque mandou o povo comer brioche, quando reclamou da falta de pão.

No fundo da sala, minha mulher, mãos cruzadas, olhos fechados. Não havia dúvida: rezava. Eunice é profundamente religiosa. Quando estou em apuros, ela lança sobre mim o manto protetor de sua fé.

Mandei bala. Perdido por perdido, truco, como dizia um velho tio caipira e boiadeiro das bandas de Ribeirão Preto. Direito Ambiental e dívida externa. Não haverá defesa do meio ambiente enquanto os países latino-ame­ricanos sofrerem os bolsões de miséria que marginalizam milhões de seres humanos, vivendo fora do próprio Estado de Direito. Em conseqüência, não tomarão, nem podem tomar, conhecimento do Direito Ambiental. A Amazô­nia está sujeita à destruição pelo desmatamento devastador. Dívida externa que transformou nossos países em exportadores de capital, não é a única sangria econômica dos subdesenvolvidos, mas é a pior. Há outra: os preços aviltados que o mercado internacional paga por nossas exportações — café, cacau, soja, cereais, minérios —, preços que não resultam das livres regras da oferta e da procura, mas de evidentes manobras especulativas e baixistas, comadadas pelas bolsas de Londres e de Nova York, além dos subsídios que os governos americano e europeus dão aos seus produtores agrícolas, produ­tores de fancaria.

Essas bolsas de commodities são responsáveis também pelos nossos bol­sões de miséria. E, por fim, os processos protecionistas que os países euro­peus e os Estados Unidos pagam aos seus agricultores e fazendeiros em nome de uma teoria malandra: a auto-suficiência em comida. A comida deles é di­nheiro. Podem, assim, vender seus produtos abaixo do custo, concorrendo com os que realmente são os pobres lavradores e enxadeiros de calos nas mãos. Qualquer homem do campo, na Europa ou na América do Norte, tem um belo carro de passeio, casa com água e esgoto, escola perto dos filhos. Há vergonhosos roubos dos tesouros públicos em cumplicidade com os polí­ticos. Basta um esperto comprar alguns acres de terra, duas ou três vacas, e cadastrar-se para receber recursos dos governos. Até o Príncipe Albert, de Mônaco, recebe propina da França porque tem alguns palmos de terra ditos cultivados no território francês.

Para que se tenha uma idéia da orgia das tarifas protetoras dos fazen­deiros europeus e os subsídios aos norte-americanos, basta imaginar o que eles fazem com o montante que recebem: um bilhão de dólares por dia!87

Numa grande farsa, os países (149) da Organização Mundial do Co­mércio iniciaram, na capital do Qatar em 2001, negociações para eliminar as tarifas nas importações, sobretudo dos produtos agrícolas, bem como aqueles escandalosos subsídios. Deram a essa peça teatral o nome de Rodada de Doha. Ficaram fazendo turismo, reunindo-se cada vez em um país diferente,88 durante cinco anos e chegaram à conclusão de que não há jeito de acabar com o dinheirão governamental aos agricultores europeus e norte-americanos. O chanceler Celso Amorim, um estoque de ingenuidades, acha que ainda há esperança. Quando estiver bem velhinho, semanas antes de morrer, estará balbuciando: a rodada de Doha não morreu. Aí morre ele.

Mas ele não morrerá facilmente. Bush esteve em São Paulo e Lula, em saudação ao presidente norte-americano, abordando a questão do protecio­nismo contra nossos produtos agrícolas, sobretudo o etanol, deixou de lado as parábolas futebolísticas e resolveu alterar seu estilo literário para um de­sastre fantástico. Falou (e como fala!) que os países pobres e ricos na OMC (Organização Mundial do Comércio) estão próximos de encontrar o ponto G.89 Por mais que isso nos doa foi assim que ele se referiu à rodada de Doha.

Voltei ao meu discurso: o latino-americano anda de carro-de-boi, de jumento. Quando falam em combater a fome no mundo subdesenvolvido, ou em qualquer parte do mundo, há muita hipocrisia. A fome se combate não só permitindo o trabalho e remunerando dignamente os produtores por meio de seus produtos, mas com desenvolvimento. E cheguei a uma conclu­são espantosa: a fome no mundo moderno deriva das dívidas externas, da falta de financiamento, dos juros altos, da escassez de recursos para a maioria e concentração de renda para poucos. A fome é hoje um fenômeno monetá­rio. Deus, a que ponto chegamos!

A reação da douta platéia foi espetacular. Aplaudiram de pé. Olhei para minha mulher, que tinha máquina fotográfica a tiracolo, e apenas vi uma compreensível expressão de alívio. Fiz-lhe um discreto gesto, e ela respondeu com um sorriso alegre. Queria que ela batesse uma foto naquele instante. Não entendeu e não bateu. Podia? Claro que podia. Mas, naquele lugar so­lene? Ora, quando voltássemos ao Brasil, iria contar essa história e acabaria passando vergonha. Brasileiro não acredita nessas coisas, sobretudo depois daquele outro ex-ministro, que se dizia professor da Sorbonne. Desculpe. Tem nada não. Fomos ouvir uma valsa de Strauss.

Prosseguiu o congresso, não mais em Viena, mas no Castelo de Schlaining, num vilarejo isolado, sem nada para fazer ou ver. Gente sabida. Com isso, asseguravam freqüência plena às sessões de trabalho. Fosse em Viena...

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Dois professores não se conformavam. Lucio Cabrera Acevedo, da Uni­versidade do México, e Ramón Martín Mateo, reitor da Universidade de Alicante, Espanha, porque queriam jantar fartamente, e a cidadezinha não tinha capacidade para atender à justa reivindicação. “Donde cenamos?” O jeito foi trabalhar duro. Lucio fez uma excelente exposição sobre os direitos humanos de terceira geração no México, e Mateo nos deixou maravilhados com aulas sobre a iusgenética.

E tome trabalho, conferências, debates, Direito e Economia, temas variadíssimos, sérios, bem desenvolvidos. O professor Alain Gandolfi, da Université d’Aix Marseille, falou sobre a cooperação entre a Comunidade Euro­péia e a América Latina, em perfeito castelhano, e, às tantas, deu-me uma piscadinha de olho e passou a falar em português, o que resultou em alegria geral, pois outro congressista usou também a última flor do Lácio, inculta e bela.

Finalmente, a conferência da genial espanhola Guadelupe Ruiz Gimenez, deputada do Parlamento Europeu, que explodiu em elogios ao Brasil pelo processo de impeachment contra Collor, afirmando que o exemplo con­duzia a América Latina ao definitivo estágio da legalidade, sem retorno. Cumprimentou-me por ter sido advogado do Congresso Brasileiro no pro­cesso de Collor contra o Senado, perante o Supremo Tribunal.

Fiquei, claro, orgulhoso com os elogios ao meu país e ao nosso povo. Naquela noite, para alegria de Lucio e Mateo, de volta a Viena, jantamos bem. Nevou fora de época. O motorista entrou em pânico. Não tinha no carro pneus para neve. Mas era excelente a estrada. “Foi construída por Hitler!”, disse o motorista, com um disfarçado orgulho; pelo menos me pareceu.

Minha mulher disse que era implicância minha, por causa da histeria neonazista na vizinha Alemanha, acompanhada com interesse pelos aus­tríacos. O que posso fazer? Detesto o nazismo, mesmo sem que tivesse feito nada contra mim. Fez, porém, contra minhas idéias de liberdade. Depois de algumas boas derrapadas, chegamos a Viena: Avenida Mozart, Restaurante Mozart, Vinho Mozart, bombom Mozart (Mozartkulgeln).

Tudo lá é Mozart. Sobra pouco para Strauss, tanto para o João como para o José, porque o Danúbio não é mais azul. A poluição forçou obras gi­gantescas. Canal para todos os lados, margens de cimento. Resultou em três Danúbios: o velho, o novo e o reservado aos banhos e à pesca. Nenhum é azul. Temos que nos lembrar disso na aplicação do nosso Direito Ambiental. É preciso conservar, também, a cor dos rios, sobretudo se formos alterar o curso do São Francisco.

A Áustria é um país lindo. Até Beethoven foi viver lá, para respirar o mesmo ar respirado por Mozart. Pena que Hitler tenha sido austríaco e cons­truído uma estrada por onde a gente é obrigado a passar vindo de Schlaining para Viena.



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Uma vez, fui convidado para um congresso de Direito Constitucional em Salamanca, Espanha. A viagem começou com problemas. Além do tradi­cional atraso da Varig na decolagem do Brasil, cheguei a Madri, onde dormi­ria, e, no dia seguinte, domingo, iria para a antiga cidade universitária espanhola. No hotel, tomei um banho, vesti pijama e caí na cama. Acordei, procurei cueca limpa na mala, e nada. Eunice esquecera de colocar cuecas. Saí para comprar. Tudo fechado. “Calzoncillos? Hoy? No es posible! Tiendas de panos menores están cerradas.”

O jeito foi usar um calção de banho, pois tinha que partir logo para Sa­lamanca. Se tivesse verificado na véspera, teria tido tempo de lavar a cueca que usei na viagem e “planchala”90 para secar.

Devo ter escandalizado o pessoal do hotel em Salamanca, porque che­guei perguntando onde poderia comprar calzoncillos. Disseram que “solo mañana”.

Do Brasil, foram vários outros juristas: Franco Montoro, Antônio Chaves, da Faculdade de Direito de São Paulo, e Carlos Fernando Mathias, reitor da Faculdade de Direito de Brasília, hoje desembargador do Tribunal Regional Federal de Brasília. Foi bom o congresso, depois de resolvido o meu problema da cueca. Comprei algumas, espanholas, enormes. Pareciam cal­ções de banho do século XVII. Os companheiros do PT — Partido dos Trabalhadores — podiam ir à Espanha comprar aquelas cuecas. Para o trans­porte de dólares seriam perfeitas.

Começaram os trabalhos. Conferências. Debates.

Fui assistir à palestra de Antônio Chaves.

Estava ele, professor de Direito Civil, dissertando sobre peculiaridades do Direito brasileiro, quando foi interrompido por um professor de Direito da Universidade de Roma, malcriado:

— Vocês, brasileiros, não têm muito a contribuir para os nossos estu­dos — falou o italiano. — Vocês copiam servilmente nossas leis. Um exemplo é o Direito Penal do Brasil, cópia servil do Direito Penal italiano.

Nada tinha a ver uma coisa com a outra. Que diabo deu na cabeça da­quele romano? Devia ter bebido um três litros de chianti. O congresso era de Direito Constitucional, o conferencista brasileiro, professor de Direito Civil, e ele vinha reclamar do nosso Direito Penal. Mascalzone!

Antônio Chaves sentiu-se embaraçado. O aparte, além de grosseiro, consistia em desvio dos debates que estavam sendo realizados. Não agüentei e também pedi um aparte. Devolvi para o italiano:

— O ilustre professor da Universidade de Roma tem razão. Nosso Di­reito Penal copiou muitos dispositivos da parte especial do Direito Penal ita­liano. Mas há uma razão técnica e histórica para isso: a Itália é o maior labo­ratório de crimes no mundo, sobretudo em forma de estelionato. Não copiamos, por isso, o Direito Penal suíço. O italiano é muito mais amplo, porque ali se cometem todos os tipos de delitos, e a lei penal se desenvolveu mais, em razão do ambiente.

Carlos Mathias, que gosta de bagunçar as coisas, bateu palmas. Só para encher o saco do italiano. Mas todos os congressistas o acompanharam. Foi o aparte mais aplaudido do congresso. O único, porque, em geral, aparte não se aplaude.

O bom daquele congresso, porém, foi descoberto pelo próprio Carlos Mathias. Um restaurante que servia um delicioso cochinillo (leitãozinho) crocante. Comemos ali todos os dias. Leitãozinho, somente voltei a encon­trar, e melhor, no restaurante do João, em Ribeirão Preto, La Pyramide. João é um cardiologista que abandonou a medicina para cozinhar. Vive no futuro, quando todo cozinheiro será médico e todo o médico terá que estudar culi­nária. Um dia, convidarei o Mathias para ir jantar lá.



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Fazia muito tempo que Gervásio não vinha me visitar no escritório. Disse que não queria incomodar. Cobrei. Acabou vindo. Estava com saudade de seus discursos. Depois do cafezinho, despejou:

— Você se lembra quando Sarney quis lançar a ferrovia Norte-Sul?

— Quiseram matá-lo! Nunca vi tantos ataques, e irados, contra um Presidente da República.

— Pois bem. Naquele tempo, o Brasil, um dos maiores países do mun­do em território, tinha apenas 30 mil quilômetros de ferrovia. Sabe quantos tem hoje?

— Não faço a menor idéia!

— Não chega a 27 mil quilômetros. Para você ter uma idéia nessa cabe­cinha de advogado, que somente conhece agravo de instrumento e recurso especial, o Japão, uma ilhota pequena, tem 43 mil quilômetros; a França, com território equivalente ao Estado de Minas Gerais, 35 mil quilômetros, sem contar o TGV, trem de grande velocidade; a China, quase 60 mil quilômetros; a Índia, 62 mil; e os países da ex-União Soviética têm 150 mil quilômetros. Os Estados Unidos, embora prestigiem o transporte rodoviário para forçar o consumo de carros e pneus e as construções de estradas de rodagem, têm 200 mil quilômetros de ferrovias funcionando e transportando riqueza pela me­tade do custo das rodovias.

— Gervásio, mas o que tenho eu a ver com isso?

— Você é brasileiro, vive aqui, precisa saber. Com sua velha mania de defender o Sarney, convém guardar esses números, para entender por que lhe mandaram o cacete, quando quis construir a ferrovia Norte-Sul. No Brasil, há uma indústria de muitos e variados interesses por trás das rodovias. O uso de veículos automotores gera inúmeras despesas indiretas, como o policiamento, os serviços de emergência, a engenharia de tráfego, a recuperação dos feridos, o provimento de espaço para estacionamento, o congestionamento e a poluição, sem contar as vidas que se perdem nos milhares de acidentes. Os Estados Uni­dos estimam esses custos em quase 400 bilhões de dólares por ano. Li essa in­formação num artigo do Antônio Ermírio de Moraes. É seu amigo, não é?

— É e entende muito bem dessa matéria e de outras, além de ser um empresário patriota e muito pouco ouvido pelos governos brasileiros.

— Governo? Todo governo se julga dono da sabedoria absoluta. Ouve ninguém. Já sei: menos o do Sarney.

— E o do Juscelino Kubitschek!

— É verdade. Você também ficou amigo de Juscelino.

— Quem não ficaria? Era uma explosão de simpatia. Exilado em Paris Juscelino morava no Trocadero, e quase toda tarde passava pelo escritório da Wasin, na Rua Cristóvão Colombo, travessa da Avenida George V, no Champs Elysées. Ia ler os jornais do Brasil, ainda trazidos pela Panair.

— E você, o que fazia lá?

— Estava cuidando do encerramento dos negócios do Grupo Simonsen na Europa. Fui escalado pelo Professor Vicente Ráo. Tarefa não muito agradá­vel, porque trabalhosa em excesso; mas em Paris sempre compensa. Morei em um apartamento perto do escritório, na Rua François Premier. Quando Juscelino aparecia no fim de tarde, era uma festa. Algumas vezes, saíamos juntos e passávamos pelo bar que havia na esquina. Esquinas costumam ter um bar. Eu brincava com ele: “O defeito de Brasília é não ter esquinas!”.

— Esquina é contra o motor! — respondia ele com o sorriso aberto em cinemascópio, hoje, diria em widescreen.

Nessa ocasião, ele lamentou não ter estimulado a ligação de Brasília com o centro industrial do país por meio de ferrovias. Admitiu que a cons­trução da nova capital poderia ter sido mais barata, se fosse precedida de uma grande estrada de ferro, que continuou fazendo falta.

Entramos no bar da esquina com a Avenida George V. Chamava-se Vernet. Perto da agência do Banco do Brasil, então instalada naquela avenida. Tomamos um copo de vinho branco gelado. E falamos sobre o Brasil. Jusce­lino era uma figura encantadora. Como amava o Brasil!

Acompanhei-o até o carro. Ele entrou, fechou a porta e se foi. Coisa es­tranha! Juscelino Kubitschek, o Presidente da República que construiu Brasí­lia, teve como Ministro da Fazenda seu compadre José Maria Alkmin. Im­plantada a ditadura no Brasil, Juscelino estava com seus direitos políticos cassados e exilado em Paris. E seu ex-Ministro da Fazenda, o Dr. Alkmin, era o Vice-Presidente da República do regime militar. Outra jabuticaba. Somente acontece no Brasil. Está entre os enigmas a serem decifrados dentro do código das vidas. E Gervásio explicou:

— Você não pode entender os mistérios da política. Por mais que quei­ra e se esforce. Lembre-se bem de que a ditadura cassava políticos e direitos sob dois fundamentos: corrupção e subversão. Os cassados eram os comu­nistas, de um lado. Do outro, os homens que tivessem feito negociatas nos governos anteriores, no entender dos militares, quando funcionavam como magistratura de japona.

— Mas Juscelino não podia ser acusado nem de comunista, nem de corrupto! — disse eu.

— Vamos supor que sobre ele pesasse a suspeita de corrupção. Quem, em seu governo, teria feito negociatas? Ou permitido alguma operação lesiva aos cofres públicos? O Ministro da Fazenda! Ninguém mais!

— E José Maria Alkmin foi designado Vice-Presidente da República no governo da ditadura, enquanto Juscelino foi cassado sob a acusação de ser corrupto.

— Veja que a gloriosa revolução, tão defendida pelo inegavelmente idealista Jarbas Passarinho, sempre foi uma farsa. Foi farsa em tudo. Enquanto Alkmin exercia o poder na Vice-Presidência da República, Juscelino, nas vezes que veio ao Brasil, era submetido a infindáveis interrogatórios em mais de noventa processos instaurados contra ele. Decifra aí: quando foi escrito o Código de Hamurabi?91

Hoje, quando volto a Paris, o bar Vernet não existe mais, fecharam a agência do Banco do Brasil na Avenida George V. Somente continua existin­do a esquina com outro prédio e loja para turistas...

...e uma grande indagação moral sobre o exílio de Juscelino. Sua filha Márcia e eu conversamos muito sobre isso. Márcia também se foi. Até hoje, aquela solidão de Juscelino me persegue e me emociona. Nada há de mais so­litário do que uma batalha moral. Talvez Cony92 possa um dia me explicar. Ou explicar por que os militares cassaram os direitos de Vinícius de Moraes e o puseram para fora do Itamaraty. Havia cometido o crime de ser poeta.


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