Código da Vida



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Nerval se orgulhava daquela solução. Nós costumávamos dizer que ele propiciara a impunidade de um assassino sem ser advogado do réu. Isso é im­perdoável. Ele contestava, afirmando que fora sua mais genial saída por duas razões: a primeira, porque a versão, sem a existência de advogado que investi­gasse a vida pregressa da vítima, seria absolutamente palatável; a segunda, porque atendia à ordem do Professor Vicente Ráo, para não envolver o escri­tório em processo de homicídio, júri, noticiário, essas chateações todas.

Saímos do escritório, e, mesmo no Paddock, não me explicou o que íamos fazer. “Campana!” dizia. “Você vai ver!”

Fomos no carro dele. Passamos pelo Largo de Santo Amaro, demos duas voltas na praça e entramos em uma das ruas. Andamos várias quadras e estacionamos debaixo de uma árvore. Pouca gente na rua.

— Antes de tudo — disse eu —, por que as duas voltas no Largo Santo Amaro?

— Para ser visto por um dos meus contatos.

— Ele viu?

— Viu na segunda volta. Do contrário, teria dado mais uma.

— E agora?

Mandou-me esperar. Depois de uma hora, eu comecei a perder a paciên­cia. Já havíamos fumado uns três cigarros. Tivemos que baixar os vidros do carro, o que era uma grande imprudência nas noites paulistanas. É verdade que hoje esse cuidado não adianta mais, salvo quando o carro é blindado.

— Olha lá, naquela casa de porta marrom! Lá está ele! — falou emocionado.

— Ele quem?

— Um dos homens que trabalham para a ex-mulher do Sr. Olavo Brás. Ele vai tocar a campainha e entrar. Veja, logo atrás vai um outro, esse é meu, que vai entrar atrás.

— Está bom, Nerval. Estamos vendo dois homens entrarem numa casa de porta marrom. Um homem da ex-mulher do Sr. Olavo Brás, e outro é ho­mem seu, o que não pega bem. Mas o que isso quer dizer?

— Aquela casa, chefe, é um antro de prostituição infantil. Muito escon­dido. Mas ali se pratica esse repugnante comércio de sexo com meninas me­nores de dezesseis, quinze anos. As garotas, em geral, vêm do interior do esta­do ou do Nordeste. Uma cafetina arruma os fregueses. Alguns freqüentam a casa, poucos. O negócio da cafetina é mandar as meninas, sempre acompa­nhadas de uma prostituta maior, aos locais de encontro previamente deter­minados pelo freguês.

— Diante disso, meu caro, nossa obrigação é avisar o Secretário de Se­gurança. Uma batida na casa acaba com essa história.

— Calma, chefe! Demoramos para descobrir essa arapuca. Depois va­mos providenciar a limpeza, mandar prender a cafetina e suas asseclas. E de­volver as crianças às suas famílias. Está tudo previsto.

— O que temos nós, meu caro Nerval, a fazer aqui?

— Calma, chefe, calma!

Aguardamos mais alguns minutos. O homem da ex-mulher do Sr. Ola­vo Brás saiu acompanhado de uma outra mulher e duas meninas de no má­ximo quinze anos. Entraram no carro. E se foram.

— E agora? — perguntei eu.

— Agora vamos esperar mais um pouco.

Afinal, saiu da casa o homem que Nerval dizia ser o dele. Dirigiu-se para o carro em que estávamos. Nerval baixou o vidro e fez as apresentações:

— Dr. Saulo Ramos — apontou para mim. E, voltando-se para o ho­mem dele: — Inspetor Anderson.

— Muito prazer, doutor! — disse o inspetor. — Nerval, eles vão tentar agora. Telefonaram antes, mas ninguém atendeu. O camarada resolveu ir assim mesmo. Arriscar. Eu prometi estar lá dento de meia hora. Você pode ir também.

— Matou, chefe?

— Mais ou menos. Esse “lá” para onde eles foram e nós vamos também é a casa do Sr. Olavo Brás?

— Exatamente.

— Ele sabe disso?

— Sabe de nada! O trampo é exatamente esse. A prostituta chega com as meninas, inventa qualquer coisa, fica por lá, tentando engabelar o Sr. Olavo. Chega a polícia e dá o flagrante contra ele, acusando-o de usuário de prostituição infantil. Ele estará liquidado no processo judicial da ex-mulher, que o acusa de atos obscenos com os próprios filhos.

— Você está maluco! — disse eu. — A polícia vai prestar-se a um servi­ço desses?

— Claro que não! — respondeu Nerval, orgulhoso de sua ex-corpo­ração. — Mas o agente policial foi procurado com essa proposta maluca. Fin­giu aceitar, porque o interesse policial é desmascarar a exploração das meni­nas, prender as cafetinas e as prostitutas que as usam nesse tipo de comércio. Grande parte da freguesia é turista estrangeiro, e as prostitutas levam as ado­lescentes aos hotéis. Coisa feia, chefe!

— E como a ex-mulher do Sr. Olavo Brás se encaixa nisso tudo?

— Simples. Ela própria é freqüentadora de hotéis, onde vive suas aven­turas com figuras importantes. Observou, viu que algumas mulheres leva­vam meninas para clientes, sob a total condescendência dos porteiros e ge­rentes de determinados hotéis, nem todos, é claro! E bolou um plano: enviar meninas para a casa do ex-marido e aprontar um flagrante que lhe seria mor­tal. Mas ela sabe que o Sr. Olavo Brás jamais teria caso com menores ou qual­quer tipo de prostituta. Forçaria a presença das garotas na casa dele. Além disso, precisava da polícia. Um de seus guarda-costas, que conhece vários po­liciais, encarregou-se do contato.

— Caiu com o Inspetor Anderson?

— Exatamente. Coisa para lá de dez mil dólares. Como tem dinheiro essa mulher! Anderson fingiu aceitar, comunicou ao seu chefe, delegado meu amigo, e eu fiquei sabendo. Entrei na história. Pedi que deixassem tentar o flagrante, para nós chegarmos na hora e fazer a prostituta dizer quem a man­dou levar as crianças àquele local. O guarda-costas acreditou. A cliente dele autorizou. A polícia teve o cuidado de nada receber. Combinaram para o fi­nal e ad exitum.

— Nerval, você me desculpe! — observei eu com absoluta calma. — Essa história está toda furada. Veja bem: o flagrante poderia prejudicar o Sr. Olavo Brás; mas teria que ser aberto inquérito para valer, e, nesse caso, as ca­fetinas seriam as primeiras a irem para a cadeia.

— Mas aí é que está. A mulher do Sr. Olavo e seu guarda-costas nada disseram às cafetinas. Não sabem de nada. Vão sofrer o flagrante como você diz: para valer. A polícia sabe que o Sr. Olavo nada tem com isso. Portanto, será detida a prostituta, e se fará, na mesma hora, uma devassa na casa da porta marrom, inclusive com agentes esperando as garotas, que estiverem fora, voltarem para lá.

— Se elas, as cafetinas, não sabem de nada, como poderão revelar a mandante no caso do flagrante? Como o nome da ex-mulher do Sr. Olavo Brás vai entrar nessa coisa?

— Pelo guarda-costas. Está prevista a prisão dele e a acareação com as cafetinas.

— Agora faz sentido.

— Por isso que eu aguardei o guarda-costas entrar na casa de porta marrom. Se ele fosse mais inteligente, teria mandado outro contato, um mo­torista de táxi, por exemplo. Mas ele próprio prometeu ir, levar as meninas no seu próprio carro e deixá-las na porta do Sr. Olavo Brás. Oh! Chefe, não fosse isso, não teria trazido você para essa campana.



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Era muito para a minha saúde. Aí tivemos que ir para a casa do Sr. Ola­vo Brás. Morava em um rico prédio de apartamentos. Quando chegamos, a prostituta, com as meninas, estava na portaria conversando com o porteiro. Saí do carro e fui direto ao encontro dela.

— Chefe, aonde você vai? Não faça isso! — gritou Nerval.

— A senhora está esperando o Sr. Olavo Brás? — perguntei.

— Estou — respondeu ela com ar de espanto, pois um desconhecido surgira de repente, sabendo de seu encontro.

— Pode ir embora. Ele não vem, não sabe de nada. E a senhora devolva essas crianças às suas famílias, antes que o mundo desabe sobre sua cabeça — foi o que me ocorreu dizer naquele momento.

— Mas o porteiro acabou de me informar que o Sr. Olavo vai chegar dentro de meia hora, no máximo — insistiu a mulher.

— Onde moram essas meninas?

— São minhas sobrinhas.

— Sobrinhas coisa nenhuma. Venham comigo.

As garotas estavam todas maquiadas, com excesso de batom, vestidos provocantes, que, no resultado, as deixavam ridículas naquela idade.

Perguntei a uma delas:

— De onde você veio?

— Pernambuco.

— De que lugar, de Recife?

— Não. Da Chapada do Araripe.

— Sua família é de lá?

— É não. Lá eu trabalhava no bar100 da dona Custódia.

— Como veio parar em São Paulo?

— Caminhoneiro me trouxe.

A mesma história de sempre. Um sempre que dura até hoje e durará muitos anos.

— E você, de onde é? — perguntei para a outra.

— De Porto Ferreira, no interior.

Acompanharam-me. Levei-as ao carro do Nerval, abri a porta. Man­dei-as entrar. E dei a ordem:

— Leve esta senhora e as meninas para a casa da porta marrom. Ama­nhã conversaremos no escritório. Eu tomo táxi.

Nerval tentou conversar, pedir explicação. Respondi gritando:

— Agora!

Arrancou com o carro. Voltei ao porteiro e pedi para chamar um táxi. Fui para casa. Tinha deixado meu carro no estacionamento Zarvos, na ci­dade. Era muito longe para ir buscá-lo.

— De táxi? O que aconteceu? — perguntou-me Kasuo Kanashiro, meu caseiro. — O carro quebrou?

— Já jantei. Não preciso de nada. Vou dormir. Até amanhã.

Não digo que estava furioso, porque minha amizade com Nerval era profunda. Mas seu plano, cheio de boas intenções pela nossa causa, ou pela causa do nosso cliente, poderia ser um desastre. Por que o flagrante na casa do Sr. Olavo Brás? Por mais que a polícia soubesse e fizesse tudo para não envolvê-lo, o escândalo seria inevitável. Haveria notícia de jornal. Ficaria a dúvida. Que idéia de jerico! — costumava eu dizer nessas horas. Idéia de jerico!

A polícia que fizesse flagrante na casa das cafetinas. O agenciamento para conduzir meninas aos endereços indicados pelos fregueses, fosse em apartamento, naquele tempo chamado de garçonnière, fosse em hotel, teria que ser provado com flagrante verdadeiro, sem arriscar a reputação de ninguém.

Se conheciam o endereço do covil das agenciadoras, o resto seria fácil. Além disso, se necessidade houvesse de demonstrar a tentativa da ex-mulher do Sr. Olavo em envolvê-lo nesse tipo de sujeira, bastaria o depoimento pes­soal do guarda-costas, incurso igualmente no crime de agenciar menores para a prostituição, ainda que em apenas um caso específico.

De qualquer forma, o nome do Sr. Olavo Brás envolvido nesses fatos era um grande perigo. Sua ex-mulher, obviamente, negaria tudo. Deixaria o guarda-costas falando sozinho.

No dia seguinte, reuni a turma toda, inclusive o Nerval, contei a história e decretei:

— Não quero mais nenhuma iniciativa por parte de vocês, dessas do tipo secretas, ou surpresa para o chefe. Todas as idéias, tenho que saber antes. Corri o risco com a Clotilde, mas, graças a Deus, deu certo. Porém, essa do Nerval, por mais bem-intencionada que tenha sido, poderia resultar em um irremediável desastre para o nosso cliente.

Nerval tentou defender-se. Fora avisado pela polícia do plano da ex-mulher do Sr. Olavo Brás. O delegado, seu amigo, tinha interesse em descobrir os responsáveis pela prostituição infantil, precisava da informação para lo­calizar as cafetinas e o “bar”. Deixara a coisa rolar até a noite marcada para o guarda-costas ir apanhar as meninas.

— Podia parar por aí — disse eu, encerrando a conversa com alguma rigidez.

No fundo da minha alma, eu estava atormentado, não tanto pelo plano do Nerval e da polícia, mas pelo contraste que, naquele instante, violentava meus sentimentos. No caso do Sr. Olavo Brás, meu escritório todo, ótimos advogados, profissionais capazes, empenhava-se em complexo processo judicial para salvar duas crianças da influência nefasta da mãe, a fim de que pudessem crescer preservando a pureza de suas infâncias. A advocacia traba­lhando para a melhor e mais sadia educação de crianças.

E, no caso da campana na casa da porta marrom, eu mesmo vira duas meninas, em plena infância, já prostituídas, sem ninguém que contratasse advogados para defendê-las da trágica agressão à inocência de suas vidas. Chapada do Araripe, Porto Ferreira, não importa onde, essas garotas todas são testemunhos vivos da falência do Estado, das religiões, do caráter dos ho­mens, dos sistemas econômico e judiciário. Desses últimos, bem ou mal, faço parte. Isso me machucou mais do que a imprudência do Nerval, sobre quem desabafei críticas de ordem técnica, e com razão, mas com a severidade de minhas frustrações. E dessas, ele não tinha culpa.

Mandei comprar passagem de avião e embarquei para Nova York.

192

Com alguma desconfiança preconceituosa, tomei o vôo da VASP. Exce­lente. Melhorou com a tranqüilidade de nove horas no MD11, lendo o ótimo romance de Jô Soares, O Xangô de Baker Street, superior a qualquer novela das oito. Quando, no finzinho, Sherlock Holmes deu o grito de saudação do Orixá, o avião aterrissou.

Os Estados Unidos estavam respiráveis. Tempo do Governo Clinton.

No hotel, brasileiros por todos os cantos, encantos e desencantos. Maluf, Mário Amato, Lázaro Brandão, Delfim Neto, Pisa, Tuma, centenas deles, componentes, com exceção dos políticos, de quase oitenta por cento do PIB brasileiro. Foram, como eu, prestigiar José Ermírio de Moraes, escolhido o Homem do Ano, acontecimento que, numa semana, proporcionou, para as relações Brasil-Estados Unidos, mais resultados do que um ano de negocia­ções convencionais e diplomáticas.

Uma vez, quando eu advogava para José Ermírio, em alguns processos complicados, ele e seu irmão, Antônio Ermírio, pediram-me hora para discutir honorários. Estranhei, porque já tínhamos contrato, e eles vinham cumprin­do corretamente. Mas aconteceu algo jamais ocorrido com advogado algum:

— Viemos pedir para você aumentar os honorários. Achamos que pa­gamos muito pouco pelo trabalho enorme que as causas passaram a dar de­pois que o contratamos.

Parece incrível que cliente tomasse tal iniciativa! Entre meus colegas co­nhecidos, isso jamais aconteceu.

Em Nova York, porém, estávamos envolvidos com reuniões de todos os tipos, jantares, discurso da Ministra Dorothéa Werneck num inglês sem sota­que mineiro. Todos assegurando aos americanos que, desta vez, o Brasil vai, está seguro, a moeda emplacou.

Para mim, sobrou o pior. Levantei cedo, para ter um encontro com advogados de Nova York, curiosos por saber coisas do Brasil no nosso mun­do jurídico, o que me levou ao desespero. Antes, tomei o café-da-manhã no restaurante do hotel, ao lado da mesa de Maluf, que, num gesto magnânimo, pagou-me o breakfast, justamente quando tomo apenas um cafezinho. Ao lado dele, estava Gilberto Dimenstein, presença da Folha de S. Paulo nos Es­tados Unidos naquela época, com o bom papo de matar saudades.

Fui para o encontro com os coleguinhas causídicos. Tomei a primeira cacetada:

— Por que o fundo de estabilização econômica é emenda constitu­cional?

Tentei uma evasiva:

— Agora é fundo de estabilidade fiscal.

— Mas, antes e agora, sempre emenda constitucional e em disposição transitória. Por quê?

É preciso entender os homens. A Constituição deles tem mais de du­zentos anos e somente vinte e sete emendas. Cada uma delas submetida a um processo rigoroso: depois de aprovada pelo Congresso, tem que ser aprovada pela maioria absoluta dos Estados da União.

— Nosso Direito Constitucional é muito diferente — retorqui, na mi­nha vez, nesse mourão trocado.101 — Há necessidade de que uma disposição transitória suspenda a vigência de algumas disposições permanentes.

— Por quê?

— Porque as permanentes dificultam muito a governabilidade com a distribuição de verbas para os estados, municípios, saúde, educação, obriga­toriamente vinculadas, no orçamento, a diversas destinações.

— Por que não mudam a permanente?

— Bem, é que os governadores e prefeitos não concordam.

— Mas concordam com a transitória?

— Sim, pois a transitória suspende um pouquinho só. Inicialmente, por dois anos, que já acabaram. Agora, por um ano e meio. Com isso, o Go­verno terá recursos para manter a estabilidade monetária.

— A estabilidade monetária depende do Governo?

— Em parte, para evitar a emissão de moeda no atendimento dos gastos públicos. Se os recursos dos impostos forem inteiramente gastos, conforme as disposições permanentes da Constituição, o Governo se aperta.

— Mas o fundo não teve recursos aplicados na compra de goiabada?

A pergunta pegou na minha moleira. Realmente, fora noticiado com grande escândalo que recursos do fundo foram aplicados na maldita compra do doce de goiaba.

— Isso é coisa de jornalista.

— Ou de político?

— Não, de político é marmelada.

— Olha, Dr. Ramos, desculpe-nos, mas precisamos explicar a clientes nossos, com muitos investimentos no Brasil, esse curioso aspecto de vocês terem uma disposição constitucional, considerada prejudicial para o país...

— ...para o Governo!...

— ...e fazerem reforma da Constituição, não para corrigi-la, mas para suspender sua eficácia um pouquinho só. Isso quer dizer que, terminado o prazo da transitória, a permanente voltará a vigorar plenamente, e podemos esperar o ressurgimento da inflação.

— Não é bem assim. Até lá, o Governo poderá ter equilibrado suas contas. O Ministério da Saúde, por exemplo, está em vias de obter uma nova contribui­ção sobre movimentação financeira, que compensará as perdas para o fundo.

— De forma permanente?

— Não, também provisória.

— O Direito Constitucional brasileiro é sempre provisório?

— Mais ou menos.

A reunião foi longe. A lengalenga, idem. Acabei convencendo os colegas de que o sistema brasileiro é melhor que o deles,102 pois, sem a rigidez da ciência constitucional, nós conseguimos contornar os problemas pelas bor­das, descascar o abacaxi com imaginação e ainda comer algumas rodelas com goiabada. Aí me deu fome. Fui almoçar no hotel. Comi bem.

Acabei rindo sozinho, lembrando de minhas explicações sobre as provisoriedades brasileiras. Não revelei, é claro, detalhes da história do Brasil. Na proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, foi baixado o De­creto nº 1, cujo artigo primeiro dizia:

“Fica proclamada provisoriamente e decretada como forma de Governo da Nação Brasileira a República Federativa.”

Até a República foi proclamada provisoriamente. Daí nosso fascínio por tudo o que seja provisório. Medida provisória, CPMF — Contribuição Pro­visória sobre Movimentação Financeira, que começou como imposto provi­sório —, todos esses tipos de provisórios que viram eternos. Não contei esses detalhes aos advogados americanos. Eles estavam em polvorosa com uma crise surgida no país deles e não sabiam prever o desfecho.

Naquela semana, começara nos Estados Unidos um problema sério entre o Presidente e o Congresso. Clinton negara-se a sancionar o orçamento votado pelos parlamentares, porque entendia ter havido muitos cortes de verbas destinadas à previdência e à saúde. Disse que o mais rico país do mun­do ficaria ingovernável. E o Congresso não voltou atrás. Votou, está votado, sem volta. Assim, o governo norte-americano, à falta de orçamento, não pode pagar ninguém, nem funcionário. Se pagar, impeachment. É crise brava.

Eu já estava de volta ao Brasil. Telefonou-me um daqueles advogados, desesperado com o impasse nunca dantes acontecido entre o Presidente dos Estados Unidos e o Congresso Americano:

— Dr. Ramos, parabéns ao Brasil pela criatividade das disposições tran­sitórias na Constituição. Se tivéssemos essa solução, nossa crise estaria resolvida.

— Quer a receita? Posso mandá-la e, de brinde, enviarei informações sobre nossas medidas provisórias.

— Medida também provisória, o que é isso?

— É papo diferente para a legislação ordinária e de emergência, que serve para tudo, inclusive questões orçamentárias.

— Talvez a idéia nos sirva para uma lei orçamentária complementar. Por favor, mande-me um estudo sobre todas essas provisórias e, se der, uma lata de goiabada.

Esse meu colega fala castelhano e, em espanhol, goiabada diz-se “mar­melada de guayaba”. Não sei se foi trocadilho, mas aprendeu rapidinho.

Advogado tem que ser ágil e criativo em qualquer parte do mundo. Afi­nal, somos discípulos de Sêneca.



193

O que eu nunca esperava na minha vida era o tipo de elogio que recebi do Senador Humberto Lucena, em um jantar em sua residência, quando co­memorava o sucesso de uma solução para o problema que lhe foi criado pela decisão do Tribunal Superior Eleitoral que lhe cassou o mandato de Senador pela Paraíba. Tilintou uma faca no copo, pediu silêncio aos presentes e disparou:

— As mulheres do mundo inteiro poderão parir durante os próximos cem anos, mas nenhuma delas vai parir um outro Saulo Ramos!

E pronto. Acabou o discurso. Levantou o copo para um brinde e veio me abraçar. Não há dúvida de que foi uma saudação, no mínimo, pouco usual. Tão inusitada, que nem mesmo à minha própria mãe, caipira do interior paulista, eu poderia repeti-la. Mas já estava acostumado com os paraibanos. Afinal, minha convivência com Eurícledes Formiga e Ronaldo Cunha Lima fora um curso completo sobre a gente alegre e generosa do Nordeste.

Lucena estava radiante, porque me procurara para resolver um fato consumado e perdido: o TSE havia cassado seu mandato de Senador, porque ele usara a gráfica dessa casa para imprimir calendários com sua fotografia. E os distribuíra no Estado da Paraíba. Abuso disto, abuso daquilo, e o simpáti­co paraibano ficou sem mandato.

Acontece que a Constituição declara solenemente, no § 3º do art. 121, esta gracinha de comando:

“§ 3º São irrecorríveis as decisões do Tribunal Superior Eleitoral, salvo as que contrariarem esta Constituição e as denegatórias de habeas corpus ou mandado de segurança.”

Não tinha jeito. A decisão que lhe cassara o mandato fora proferida em processo ordinário e tratava de matéria de prova: o uso da gráfica do Senado para imprimir folhinha. Era idiota, mas irrecorrível. Diante da angústia do Se­nador, tive eu uma idéia: vamos recorrer assim mesmo. Eu não devo assinar o recurso, para não me expor. Mas o Luiz Carlos Bettiol, meu velho amigo, assi­naria, como, de fato, assinou. E mais: conversando sobre o assunto com Rafael Mayer, ex-presidente do Supremo Tribunal, aposentado, ele ficou tão indig­nado, que resolveu assinar também o recurso contra a irrecorrível decisão.

Veio o julgamento no Supremo Tribunal e desancou uma pauleira geral contra a decisão do TSE, mas seguida das lamentações: não se pode tomar conhecimento do recurso, porque a Constituição proíbe. Dois ministros che­garam a conhecer do apelo extremo,103 mandando às favas o comando constitucional, tal a revolta com o erro judiciário cometido pelo Tribunal Superior Eleitoral. De voto em voto, ouvia-se a forte censura, e a expressão recorrente era “erro judiciário”. Falou-se em reforma da Constituição. O Congresso de­veria eliminar aquela vedação, para evitar casos como aquele.

Foi, como dizem os advogados, um enterro de luxo, mas esperado, por­que, na realidade, o Supremo não podia apreciar o recurso extraordinário diante da expressa vedação constitucional.

— E agora? — perguntou-me Lucena.

— Agora, calma, meu querido paraibano! — disse eu. — Vamos tirar certidões de todos esses votos.

— E fazer o que com eles?

— Fundamentar um projeto de lei de anistia. Quando estamos diante de declaração do Supremo Tribunal Federal sobre um erro judiciário, expres­samente proclamada em todos os votos, e a conclusão de que não pode ser judicialmente corrigido, cabe ao Legislativo providenciar a correção por meio de lei.

Apresentou-se o projeto ao Congresso, com a justificação transcreven­do os votos dos ministros do Supremo, juntados por certidão, e a anistia foi formalmente decretada por lei, o que chegou a beneficiar outros senadores em situação assemelhada. Um projeto de lei no mesmo sentido, sem a funda­mentação nos protestos dos ministros do Supremo, seria considerado corpo­rativismo, receberia as costumeiras críticas da imprensa e não convenceria nossos parlamentares. O ingrediente do julgamento da Suprema Corte tornou o projeto viável. Na noite da votação, Antônio Carlos Magalhães me telefonou:

— Você salvou o Lucena.

— Não senhor! — protestei. — Quem salvou foi o Congresso. E, na mi­nha opinião, a salvação estende-se ao Tribunal Superior Eleitoral, apagando da história judiciária brasileira um vexame inominável.

Claro que a OAB ingressou no Supremo com uma ADI,104 pedindo a declaração de inconstitucionalidade da lei.105 Não obteve liminar. Justiça seja feita: não foi propriamente a OAB, mas José Roberto Batochio, presidente da instituição e que já maquinava sua candidatura a deputado federal. Hum­berto Lucena foi reeleito com quinhentos mil votos na Paraíba e continuou Senador até morrer.

Sem cobrar honorários, aceitei defender o Congresso Nacional naquela ação, mesmo porque proposta contra uma lei que eu inventara. A ação da OAB foi julgada vinte anos depois, em dezembro de 2005. Improcedente. Coi­sas do nosso Judiciário. Batochio foi eleito deputado. Depois também foi jul­gado improcedente e não voltou à Câmara. Voltou a advogar. Hoje é o defen­sor de Antônio Palocci. Servi, porém, naquela época, ao angustiado consulente que buscou meu apoio e esgotei todos os caminhos lícitos do Direito, procu­rando fundamentos até para criá-lo, diante da lacuna da lei. Esta é a lição de Couture nos Mandamentos ao advogado:

“Cada advogado, em sua condição de homem, pode ter a fé que sua consciência indique. Mas, em sua condição de advogado, deve ter a fé no direito, porque até agora o homem não encontrou, em sua longa e comovedora aventura sobre a terra, nenhum instrumento que lhe asse­gure melhor a convivência”.

Advogado não pode desanimar nunca. Mesmo diante do fato insolúvel, alguma coisa pode ser feita para minorar a angústia das pessoas que o procuram pedindo ajuda, sobretudo das pessoas injustiçadas. Se não for possível encontrar solução, o esforço de lutar pelo socorro abrandará o so­frimento do socorrido, que, às vezes, não pede e não espera milagre, mas a compreensão e o apoio que podem minorar seu desespero e o desassossego de sua alma.


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