Código da Vida



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204

Volto à audiência na Vara de família. Eu não podia desistir de nada.

Casé surgiu na porta e me fez um sinal para eu sair. No corredor, estava o Nerval com expressão tão vitoriosa que, não fosse pelo tamanho dele, jul­garia estar vendo Napoleão, quando voltou vitorioso da campanha da Itália.

— Temos que achar uma sala qualquer para conversar — disse ele bai­xinho, ao mesmo tempo em que mostrava a pasta que trazia. — Aqui, nesta pasta, tenho algo fabuloso para a nossa causa.

— O que é?

— Aqui não dá! — insistiu, olhando para o Sr. Olavo Brás de um lado e a mulher do outro. — Vamos para um lugar reservado.

Àquela altura, todas as demais varas estavam fechadas. Havia um contí­nuo em pé diante da porta da 7a Vara de Família. Perguntamos. Indicou uma salinha na curva do corredor. Estava aberta. Podíamos usá-la. Fomos.

— Chefe! — disse ele. — O Gervásio tinha razão. A mulher teve um cúmplice. Encontrei-o, dei-lhe um senhor susto, e ele confessou tudo. Está gravado.

Tirou o gravador da pasta. Ouvi o vozeirão do Nerval, dizendo para o filho do Sr. Percival, vizinho da mulher, o garotão que gravava músicas, que ele podia ser preso e processado por haver colaborado na produção de uma prova falsa. O rapaz se defendeu, dizendo que não havia falsidade, mas admi­tiu que operava o gravador, enquanto a mulher ditava, e várias vezes, as res­postas que as crianças deviam dizer, depois que ela formulava as perguntas. Tudo gravado. A fita era encerrada com a voz do Nerval, declarando o nome do rapaz (chamava-se Lupércio), endereço, número do RG e sua concordân­cia à declaração do Nerval dizendo que narrara esses fatos de livre e espontâ­nea vontade e a bem da verdade...

Coisa de delegacia de polícia.

Cumprimentei-o pela providência, mas lhe causei um grande desa­pontamento:

— Não vou usar essa prova na audiência — foi minha água fria. — Guarde-a, e veremos se ela será útil mais tarde.

— Mas, chefe, nós passamos todo o tempo procurando provar que a mulher ditou as respostas, que a fita no exame técnico demonstrava as pa­radas e as pausas depois das perguntas. Tudo por dedução, inferência, con­clusão via raciocínio, que pode ser considerada uma história da carochinha. Agora, temos o depoimento de quem testemunhou tudo isso, pessoa que viu, presenciou e ajudou. E você não quer usar?

— Não agora! — respondi, já me deslocando de volta para a sala de au­diência, porque o Casé chegara dizendo: “Vamos, vamos, o juiz está chaman­do!”. Ainda houve tempo de dizer: “Depois explico!”

Nerval guardou o gravador na enorme pasta. Sorriu para mim com a expressão desabada e apenas murmurou:

— Boa sorte!



205

Voltei para a audiência, pedi desculpas pelo ligeiro atraso e sentei-me, esperando a reabertura dos trabalhos.

As crianças entraram. E correram para a Clotilde.

— Tia Clô! Tia Clô! — Abraços e beijos.

O juiz me olhou intrigado e me disse:

— Que intimidade com sua assistente! Isso é pelo menos inusitado.

— Vossa Excelência — disse eu — supõe que apenas os juizes fazem inspeção judicial? Advogado também encontra um jeito de aproximar-se do fato. Todos os meios lícitos em busca da verdade devem ser tentados.

— Mas essa me parece nova. A advogada da parte contrária chamada de tia, abraçada e beijada pelos filhos da acusadora. Fantástico! Depois o senhor me explica como isso ocorreu, em troca do que vai ouvir sobre a ins­peção judicial.

Clotilde correu com as crianças rumo à mesinha do fundo e abriu os pacotes. Distribuiu sanduíches para todos. O pessoal do cartório trouxe os guaranás gelados e os sorvetes. Virou festa. O Curador de Família solicitou a Clotilde que levasse sanduíches às pessoas que estavam do lado de fora, no corredor. Eram poucas: o Sr. Olavo Brás, sua ex-mulher, uma testemunha dela que, embora dispensada depois de depor, ficou para lhe fazer compa­nhia, e o Dr. Carlos Edson, que permaneceu ao lado do cliente, a fim de evitar qualquer imprevisto. Cuidado nunca é demais.

As crianças ficaram à vontade. Correram pela sala, comeram sanduí­ches, doces, tomaram guaraná e sorvete, sem que ninguém lhes perguntasse nada.

O juiz, de uma sensibilidade extraordinária e muito sagaz, sentou-se em uma das cadeiras da mesa de depoentes e mandou Clotilde fazer as pri­meiras perguntas. Acabou com a solene distribuição de autoridades no palco da sala judicial. Éramos todos convidados de uma festa informal e totalmente improvisada.

— Vocês conhecem aquele moço ali? — perguntou Clotilde apontando para o próprio juiz.

— Conheço — respondeu o garoto. — Ele esteve lá em casa.

— Por que vocês ficaram com medo dele, quando ele fez perguntas?

— Porque a mamãe fica muito brava, muito brava, quando a gente fala nisso.

— Nisso? Nisso o quê? — interferiu o juiz, tomando a bola para si.

— Nessas coisas do papai — respondeu o menino.

A garota estava muda, abraçada à cintura de Clotilde.

O juiz pegou o gravador e tocou a fita. Quando as crianças ouviram as próprias vozes, espontaneamente disseram quase em dueto:

— É disso. Não podemos falar disso.

— Não há problema algum! — disse o juiz. — Podem falar o que qui­serem, mas digam a verdade. Quer mais um sorvete? — perguntou, dirigindo-se à menina, que estava de mãos vazias, pressionando a tecla stop do gravador.

— Quero — respondeu ela com expressão feliz.

— Tia Clô! — disse o juiz sorrindo. — Dê mais um sorvete para ela.

O garoto interveio e perguntou:

— Posso também tomar mais um?

— Claro! — disse o juiz. — Tomem sorvete à vontade. Mas, quando chegarem em casa, não se esqueçam de escovar os dentes. O açúcar, o doce, pode dar cárie.

A conversa estava descontraída. As crianças aparentavam absoluta nor­malidade. Havia desaparecido o medo, esse terrível sentimento que anula o ser humano em todas as idades, desde os povos que se submetem a qualquer política de seus governantes diante de vários tipos de terror, até crianças ameaçadas pelos pais.

O juiz voltou a pressionar a tecla play. As crianças voltaram a ouvir o que diziam na gravação. E o juiz lhes perguntou:

— Isso que vocês falaram de seu pai é verdade?

— Não.


— Seu pai mandou vocês tirarem a roupa para deitarem com a namo­rada dele?

— Não. Papai não tem namorada.

— Por que então vocês disseram, se não era verdade?

— A mamãe mandou dizer.

O juiz, com extrema habilidade, manobrou o gravador, avançando a fita e retrocedendo quando preciso, de forma a fazê-las ouvir todas as respos­tas. E perguntava:

— A mamãe mandou dizer isso também?

— Mandou.

— E não é verdade?

— Não.

Até aí, as respostas eram do menino. O juiz olhou oara a menina e inda­gou especificamente para ela:



— Seu irmão está dizendo a verdade?

A menina, mais novinha, mais tímida, nos surpreendeu a todos com a sinceridade inigualável da criança:

— Agora está.

O juiz dirigiu-se para nós, os advogados, e comunicou:

— Vou prolatar a sentença em seguida. Os senhores podem sair, que, dentro de meia hora, no máximo quarenta minutos, os convocarei e aos seus clientes para ouvir minha decisão, logo depois do parecer do Dr. Curador de Família, que concorda em opinar imediatamente.

Saímos todos. Clotilde levou parte dos pacotes de sanduíches e deixou parte para o juiz e para o curador. A hora estava adiantada, e a medida ali­mentar constituía-se numa cautelar satisfativa bem eficiente.

O advogado da ex-mulher do Sr. Olavo Brás estava lívido. Aceitou uma xícara de café, trêmulo, derramou um pouco no pires e deixou a colherzinha cair no chão.

206

Esperamos. Demorou mais que uma hora. Bem mais. Depois veio um escrevente e nos convocou. Entramos todos para ouvir a sentença.

Relatório curto. Não perde tempo redigindo relatórios longos. Capri­cha nas razões de decidir. Sempre foi assim e até hoje conserva o estilo. No re­latório, referiu-se à inspeção judicial realizada mediante visita à casa das crianças, em companhia do Curador de Família. O grande mistério estava revelado.

Na decisão, fez emocionantes considerações sobre a família, as obriga­ções do pai e da mãe, do ambiente em que as crianças devem crescer e apren­der as fundamentais lições da vida. Amor, equilíbrio, instrução, religiosidade e, acima de tudo, exemplo, o que clama fundo na alma da infância.

Discorreu com grande erudição sobre a doença mental da mãe. Demons­trou que poderia influir de forma errada na educação dos filhos, mas que esses não podiam ser privados da presença e do afeto da genitora. Tinha consciên­cia do erro da mulher em pretender vingar-se do ex-marido, utilizando-se das crianças por mera futilidade. Mas não considerava menos importante a razão patológica nessa sem-razão da vida real. E os menores precisavam do amor de mãe. A situação, portanto, exigia, dentro do possível, solução que assegurasse essas condições básicas. Proteção contra um mal e preservação de um bem. Fez uma linda dissertação sobre os conflitos humanos e a obrigação de pro­curar o Judiciário, a melhor forma de resolvê-los. Citou Sêneca, o genial jurista da Roma antiga: “Si vis amari, ama” (Se queres ser amado, ama).

E disse que o juiz precisa saber amar, para julgar os que necessitam de amor. Foi tudo muito bonito. Desconfiei que ele houvesse preparado esses fundamentos com antecedência. Estavam profundos demais. E lindos. O Curador de Família me disse depois que o juiz redigira tudo naquele instante. Não consultou notas. Era um iluminado. A emoção do caso tocou-lhe a ins­piração. Arrancou-lhe do fundo da alma o que tinha de mais autêntico de ser humano, educado para lidar com o Direito e julgar seus semelhantes.

Referiu-se à visita que fizera às crianças e assinalou o medo que elas sentiam da mãe. Nada disseram sobre os detalhes do caso, mas estavam apa­voradas. Naquele momento, percebera que a gravação era um embuste. Pre­ferira esperar as demais provas. Chamou a atenção para que os pais tudo fi­zessem, a fim de que as crianças se sentissem amadas e, assim, amassem seus pais, em vez de temê-los. Citou São Jerônimo em latim: amare filiorum, temere servorum est (amar é próprio dos filhos, temer é dos escravos).

No final, decretou a alteração da guarda das crianças, passando-a para o pai “a partir de hoje”. Mas assegurou à mãe o direito de visitas, condicionado à continuação do tratamento psiquiátrico. Visitas acompanhadas, até que o próprio pai, que amava seus filhos, avaliasse, por óbvio, a possibilidade da convivência livre com a mãe, para que todos pudessem usufruir o amor em sua plena realização da paz no espírito da família.

Observou que, mesmo no caso de separação dos pais, a concepção de família não deve ser banida do conceito sentimental dos filhos. Os adultos precisam saber lidar com isso. A realidade de uma situação inevitável não justifica a destruição de um ideal para a vida em formação de jovens e adoles­centes. Sem isso, não podemos nos considerar civilizados.

Determinou intimação das partes e de seus advogados. A sentença seria cumprida imediatamente.



207

A cena foi comovente. Apesar de minha longa experiência de advogado em lidar com os dramas humanos, não exultei com o resultado. Tive, na ver­dade, uma discreta vontade de chorar. Contive, é claro. Mas admito que dei uma engasgada.

O juiz chamou as partes para ouvirem a sentença que acabara de prolatar. Leu pausadamente.

A mãe das crianças desabou em prantos, e o Sr. Olavo Brás também, com aqueles soluços que eu já conhecia do primeiro dia em que estivera em meu escritório. Quando acabou de ler a decisão, que seria cumprida desde logo, o juiz dirigiu-se ao meu cliente e disse:

— O senhor tem como abrigar seus filhos em sua casa?

— Sim, doutor. Mantenho um quarto especial para eles, desde o tempo em que podia levá-los para o fim de semana. E até empregadas para cuidar deles nas tarefas para as quais não tenho muito jeito, banho, roupas, brin­quedos e material escolar.

— É preciso — continuou o magistrado — que o senhor, sobretudo nestes primeiros tempos, cerque seus filhos com muito amor, permita que eles convivam com crianças da mesma idade, visitem os avós, parentes, pri­mos. Em vez de motorista, vá o senhor mesmo levá-las à escola. Se o senhor for religioso, procure educá-las em sua igreja, recorra a conselhos e orienta­ção de padres ou pastores cristãos. Esse aspecto é tão importante quanto a convivência familiar e a educação escolar. A aproximação de Deus cura as fe­ridas da alma, e suas crianças terão como amenizar os dolorosos traumas sofridos.

Impressionante a peroração do juiz, extrapolando inteiramente a pres­tação jurisdicional, para sugerir medidas de terapia espiritual aos menores. Eu, que nunca havia pensado nisso, nem sabia que religião meu cliente pro­fessava, fiz-me uma pergunta interior: e se o homem for ateu?

— Sou católico — informou o Sr. Olavo Brás ao juiz. — E freqüento re­gularmente a igreja.

— Leve seus filhos e, quando ela concordar, convide sua ex-mulher para ir junto.

— Posso falar com ela? — perguntou o Sr. Olavo Brás ao juiz.

— Sim.


Meu cliente aproximou-se da ex-mulher, que ainda chorava, passou a mão sobre sua cabeça e a convidou para saírem juntos ali do fórum.

— Vou levar as crianças para minha casa, e você nos acompanha. Assim, elas verão que continuamos amigos.

— Quero que você me perdoe — respondeu ela, visivelmente emocio­nada. — Eu não sabia o que estava fazendo. Foi mesmo loucura. Prometo que continuarei me tratando. Não me impeça de ver meus filhos, pelo amor de Deus.

É fácil imaginar a emoção que se apoderou de todos nós. Eu, eterno desconfiado, cheguei a pensar que ela estivesse fazendo teatro. Poderia estar dissimulando. Podia ser que sim, podia ser que não. Precisava reservar-me um pouco de dúvida, até para não me emocionar em demasia. Afinal — pen­sei forte para me convencei —, o tipo de doença mental daquela mulher não exclui a capacidade de usar a simulação, quando o doente se sente acuado. Mas meu cliente respondeu, antes que eu aperfeiçoasse minha conclusão:

— Fique tranqüila! — disse ele, demonstrando ternura. — Os dias de visita que foram fixados pelo juiz serão, é claro, respeitados. Podemos acres­centar outros, e, nos fins de semana, passeios, férias, você será a convidada da sua família.

Acentuou bem a expressão “sua família”.

Aquele homem, que esteve a ponto de suicidar-se por obra daquela mulher, naquele momento, parecia santificado. Praticou, e com absoluta sin­ceridade, um dos mais lindos gestos do ser humano: o perdão.

O juiz encerrou a audiência, despedindo-se com um aperto de mão a todos os presentes, e retirou-se da sala.

Saímos. Eram dez horas da noite.

208

Descemos todos no mesmo elevador, inclusive as crianças. O Sr. Olavo Brás, no saguão do fórum, deu-me um abraço demorado e saiu com “sua fa­mília”. Do lado de fora, sem nada entenderem, os guarda-costas foram dispensados.

O advogado da mulher acercou-se de mim e expôs seu dilema profissional:

— Tudo muito bonito, caro colega, mas a decisão foi claramente extra petita. A ação foi proposta para suspensão do direito de visitas, e o juiz decidiu pela alteração da guarda, decidiu in pejus. Cabe, por isso, uma bela apelação.

— Você vai ter coragem? Depois do que assistimos aqui, você obterá de sua cliente a permissão para recorrer?

— É meu dever falar com ela sobre esse aspecto.

— Não há dúvida. Não sei, porém, se a apelação seria um ato prudente. Você iria discutir apenas um aspecto técnico: a decisão foi além do pedido, sem ter havido reconvenção do réu. Interessante. Mas, em casos em que o di­reito das crianças prevalece, duvido que sua tese possa prosperar. E você pode causar um grande mal à sua cliente, que deve ser orientada exatamente para não recorrer.

— Por quê?

— Porque ela cometeu um crime grave. Induziu menores a gravarem acusações contra o próprio pai. Falsificou prova. Denunciou caluniosamente o ex-marido. Ora, o juiz, que proclamou a falsidade da prova e da acusação, tem o dever legal de mandar esse material para o Ministério Público, porque o caso é de ação pública. Leia o artigo 40 do Código de Processo Penal,112 an­tes de ficar invocando as regras do Código de Processo Civil.

— Não sou muito familiarizado com o Direito Penal.

— Mas, nesses momentos cruciais de litígio de família, nós, advogados, temos o dever de ficar atentos a tudo. Pensando ser seu dever apelar, poderá acabar pondo sua cliente na cadeia, o que, além de ser pior para ela, vai estra­gar toda a harmonia que a decisão do nosso juiz conseguiu estabelecer entre os pais e seus filhos:

— Mas você acha que ele vai fazer isso? Mandar a prova para o Ministé­rio Público?

— Veja o que diz a lei processual penal: “os juizes e tribunais remete­rão”. É dispositivo mandamental. Eles são obrigados a remeter. O texto não diz “poderão remeter”, o que seria facultativo. Se você apelar, não há outro jeito. Vai tudo para o Ministério Público.

Ele ficou pensativo por uns instantes e me perguntou:

— Se é obrigatório, ele remeterá para o Ministério Público, mesmo se eu não apelar.

— Veja bem, meu querido colega. Nosso juiz é um gênio, não apenas pelos conhecimentos do Direito, mas, sobretudo, pela forma como exerce a judicatura, dando valor ao aspecto humano, procurando compor as aflições das pessoas, e não aumentá-las ou criar novas. Decorrido o prazo da apela­ção, o processo, que está sob segredo de Justiça, vai para o arquivo. Ninguém mais saberá dele. Não acredito que o juiz informaria ao Ministério Público, depois de haver conseguido livrar as crianças da guarda da mãe, mas garantindo o seu direito de visita e impondo-lhe, como condição, a continuidade do tratamento médico. Fez um sermão para o pai, aconselhando-o até a sub­meter os filhos ao bálsamo da religião. E presenciou não a reconciliação do casal, mas uma reaproximação dos pais pelo amor às crianças. Quem conse­guiu tudo isso vai acionar Ministério Público para pôr tudo a perder? E mais: o juiz não fez a menor referência à remessa legal, que obrigatoriamente deve­ria constar da sentença. Terminou com o “intime-se” e nem sequer mandou publicar a sentença por estarem as partes presentes. O Curador de Família, membro do Ministério Público, não protestou contra a inobservância do artigo 40 do CPP. Creio que recebemos mensagem cifrada para encerrarmos o caso.

— É, você tem razão. Nem sempre os comandos legais são suficiente­mente sábios para circunstâncias não previstas pelo legislador.

— Aí entra o bom juiz, meu caro. Princípio da razoabilidade. O Direito nem sempre é a lei. É a justiça, que busca a felicidade do ser humano, e não a obediência cega a um preceito formal. Muitas vezes, acima da força da lei está o poder da razão. O juiz desta causa sabe disso e assim agiu nesta questão complexa. Esse moço merecia ser ministro do Supremo Tribunal Federal, pois aquele tribunal precisa de gente dessa qualidade para se humanizar e dignificar o Judiciário brasileiro. Afinal, você vai ou não vai recorrer?

— Não. E se a cliente pedir, o que não espero, aconselharei a deixar como está.

Meus assistentes me esperavam na porta do fórum. Saí com eles, e fo­mos a pé para o escritório, pegar nossas coisas e, em seguida, convidei-os para jantar no Paddock. Durante o aperitivo, comuniquei:

— Nunca mais vamos pegar causa que envolva crianças. Está decidido. Não aceitamos mais nada de direito de família. Essa foi a última.

E Nerval me perguntou:

— Por que você não quis usar a prova do cúmplice?

— Pelo mesmo motivo que me levou a convencer o advogado da mu­lher a não apelar. Evitei o processo penal. Sua prova, que, aliás, foi preciosa e produzida em cima dos fatos ocorridos na audiência, fica na história do nosso escritório. Não no processo. Mas seu trabalho, quero que todos sai­bam, foi fantástico. Neste fim de semana, você está convidado para uma noi­tada de sinuca na Chácara Flora.

Nerval estourou de felicidade, não tanto pelos elogios, mas pela pers­pectiva de jogar sinuca em minha casa, o que ele adorava.

209

Passaram-se os anos. Transferi meu escritório para a Avenida Brasil, onde trabalhei por mais de quinze anos. Tive casos difíceis, tanto de pessoas físicas, como de jurídicas. Foram meus clientes, entre muitos outros, a TV Globo, o Bradesco, a Febraban, José e Antônio Ermírio de Moraes, até a Gina Lollobrigida, antiga artista do cinema italiano.

Embora muitas causas se tenham constituído em histórias emocionan­tes, verdadeiros suspenses, sinto-me impedido de contá-las, porque violaria o sigilo profissional, já que os fatos, mesmo omitidos os nomes, identificariam facilmente os personagens. Não seriam meras coincidências, como advertem os filmes. Nessas hipóteses, que foram muitas em minha carreira, o advogado tem o dever do segredo perene.

Meu escritório estava com 1500 causas em andamento no Judiciário. Apesar de fazerem de mim um conceito injusto, acusando-me de advogado careiro, fui sempre prestigiado pela imensa legião de constituintes. Minha ge­rente, na fase final, chamava-se Nanci Pimenta. Justificava o nome, quando mandava as contas e cobrava honorários. Mas, dentre aquela enorme quan­tidade, cerca de 100 causas eram gratuitas, de gente pobre. Nossa magnani­midade não era tanta. Mas, depois que aceitamos as oito ou dez primeiras causas de clientes que não podiam pagar, não sei como a notícia se espalhou, e apareceram de todos os lados as mais impossíveis pessoas pedindo socorro. Minha então sócia, a Doutora Márcia Sanches, filha do Ministro Sydney Sanches, dizia que eram menos de 10% do movimento do escritório. Coisa pouca. Dava para tocar. Mas ela acabou deixando o escritório. Foi trabalhar com o pai, que se aposentou do Supremo Tribunal. Arrumei outro sócio, Henrique Sandoval, filho do meu amigo Ovídio.

Um dia, resolvi parar. Parar de vez. Foi muito difícil. Alguns clientes compreenderam, outros não. Devia deixar o escritório para as novas gera­ções. Quando estava em pleno processo de encerramento das atividades pro­fissionais, minha secretária de então, Ana Alice, veio me comunicar que um antigo cliente do escritório pedira hora para me visitar. Não era problema, ressalvou. Apenas visita.

— Chama-se Olavo Brás — disse ela, que não o conhecia. — Insistiu querer matar saudades.

Mandei marcar dia e hora. Olavo Brás: como estaria hoje, com seus fi­lhos e aquela mulher problemática? Saudades?

Ficaria sabendo no dia marcado para recebê-lo. Antes disso, invadiu minha sala o Gervásio, integrante legítimo das temporadas dos grandes fura­cões. Cabelos brancos, mas ainda com a voz firme e despregada na falação. Estava furioso com a reeleição de Lula, com o apoio de Sarney ao Presidente reeleito, com a impunidade de parlamentares. Falou tanto que vou gastar muitas páginas para contar apenas parte, antes de escrever sobre a visita de meu antigo cliente e encerrar a história dele e deste meu livro, que tem um desfecho inacreditável.



210

— Não acreditei — disse Gervásio — quando a televisão mostrou um braço entregando três mil reais a um sujeito dos Correios para suborná-lo. Julguei ser montagem.

— O sujeito era um tal Maurício Marinho, indicado pelo PTB na parti­lha de cargos do Governo Lula — acrescentei. — Mas por que montagem?

— Primeiro, porque era muito barato para um suborno de diretor de estatal com influência em licitações. Segundo, pela facilidade com que ele aceitou, pegando o dinheiro e o enfiando no bolso do paletó. É a própria imagem do Governo. Por isso, acho que foi montagem.

Gervásio estava inconformado, sobretudo porque aquela cena, trans­mitida pela TV, deu origem a um dos maiores escândalos da história do Brasil em matéria de corrupção, bandalheira, suborno de deputados, negociatas denunciadas pelo então deputado Roberto Jefferson.

— Quem diria? Justo o Governo Lula, que pregava a ética, não roubo e não deixo roubar, acabou trocando os valores morais por “valérios” imorais! — Desabafou Gervásio, referindo-se ao publicitário mineiro que levantou milhões de reais para distribuir entre parlamentares em acintosa compra de adesões ao governo.

— Não pretendo chamar ninguém de burro ou de analfabeto. Aliás, nes­sas histórias, ninguém comeu capim. Lula é inteligente. Iletrado, sem cultura, mas inteligente e muito esperto. Creio na hipótese de que ele não soubesse. Ele nunca sabe de nada. No fim de 2004, ele declarou “não tem por que o 2005 não ser o ano mais importante da década neste país”. E esse foi o ano em que ocorreu a maior crise política da história. Terminou com um crescimento medíocre do PIB em 2,3%, quando o mundo todo cresceu quase 10%. Ficou no mesmo cres­cimento médio dos oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso, os mesmos e medíocres 2,3%. Em 2006, empacou nos 2,9%. Na América Latina ganhou apenas do Haiti. Creio, porém, que o Lula não tem culpa de nada. Ele sempre está por fora de tudo. A previsão para 2006 foi feita pelo Ministro da Justiça, Tarso Genro, que anunciou acreditar num crescimento de 4,5%. É ver­dade que o Governo mudou a metodologia de aferimento do PIB. Vão aumen­tar os números num processo inteligente de maquiagem. Não se aumenta, po­rém, o crescimento real. Pelo novo método, Tarso Genro quase acertou.

— Ainda bem que Mussolini já morreu.113

— Tarso Genro tem juízo e é inteligente. Creio que Lula vai ganhar muito com a colaboração dele no segundo mandato.

— Você está sob a influência do Sarney, que acredita também nessa his­tória da Carochinha.

— Por que o Sarney?

— Porque ele se orgulha de ter implantado a democracia no Brasil e fica se babando todo por ter visto um operário e retirante nordestino chegar à Presidência da República.

— Deixa disso, Gervásio — objetei dando risada. — A democracia de Sarney resultou em Collor, em Fernando Henrique Cardoso, em Itamar Franco. Nada edificante. Como dizia Churchill, a democracia é um péssimo sistema de governo, mas não há outro melhor. Temos que suportar o que o povo decidir, desde que o faça livremente.

— No Brasil há liberdade de escolha política?

— Claro! Isso não pode ser posto em dúvida.

— Sem escola, sem educação válida, sem meios para adquirir instrução, o povo nada decide. A publicidade, os cabos eleitorais, as televisões, o dinhei­rinho miúdo decidem por ele.

— Nem sempre foi assim. Veja as eleições de Juscelino Kubitschek, Jânio, Collor, Fernando Henrique Cardoso.

— Deixe de lado suas observações sobre a história do Brasil e literatura. Estou falando do Governo Lula e da imoralidade que nele se instalou com a distribuição de cargos nas empresas estatais, de contratos de obras, de publi­cidade, de superfaturamentos, de Valério distribuindo dinheiro para depu­tados e partidos políticos, de depósito no exterior de milhões de dólares na conta do publicitário de Lula, Duda Mendonça. Comércio descarado de compra de consciências para assegurar votações no Congresso. De compra de dossiês em campanha eleitoral com dinheiro e dólares em malas de petistas. Estou falando de Valérios e Vedoins.

— E Lula sabia disso tudo?

— Sabia de tudo ou quase tudo. Em Paris, ele concedeu entrevista di­zendo que o caixa dois é costumeiro nos partidos políticos. Deu a entender que não reprovava. O ex-Ministro da Justiça, Dr. Márcio Thomas Bastos, disse que caixa dois é coisa de bandido. Logo, o Presidente aprova coisa de bandido. Depois, advertido, declarou ser intolerável.

Observou que, na reeleição de Lula, o Brasil ficou nitidamente dividido. Um Brasil que trabalha e um Brasil que vive do Bolsa Família. Depois disse que Manoel Bandeira fora profético.

— Haverá, sim, crescimento no Bolsa Família, que sai do nosso bolso, mas ajuda a matar a fome dos eleitores do Presidente. E aumentar o número deles, que sempre aumenta porque a pobreza tem crescimento acelerado, maior do que o PIB.

— Não vejo mal algum em ajudar gente pobre, gente que não tem o que comer nem perspectiva de encontrar emprego.

— Tem aí o devido mérito — afirmou. — Mas fica apenas nisso. Com o Bolsa Família está resolvido. Não há atividade produtiva, que geraria em­pregos. Não há infra-estrutura, que geraria atividade produtiva, salvo a in­dústria de tapioca. Com a família no bolso, nem precisa dessas coisas. Muitos não vão querer trabalhar para não serem privados da mensalidade embol­sada e correr o risco de, no futuro, perder o emprego que por acaso surgir. Melhor continuar assim, vivendo de brisa, como o poeta disse para Anarina,114 porque lá todos são amigos do rei. O poeta foi para Pasárgada e dei­tou na cama que escolheu. Deixou aqui sua vergonha. Aos que trabalham aumento da insuportável carga tributária. É justo. O rei precisa sustentar os que vivem de brisa, nem sempre são pobres. Os que pela fama estão deitados na cama, os que jogaram fora a vergonha para viver de brisa.

Tomou um fôlego e em seguida começou a elogiar, aliás merecidamente, a jornalista Eliane Cantanhêde e proclamou com certa solenidade ter sido ela a autora da melhor definição sobre Lula:

“é um vaidoso clássico, intuitivo e auto-suficiente. Não precisa de nada nem de ninguém. Acha que sabe tudo e que basta botar a mão que os problemas desmancham no ar. E tem um infinito senso de auto-preservação.”

Transformou-se em enciclopédia de citações. Era um fenômeno. Sabia de cor textos de artigos de jornais. Acrescentou outro, desta vez, de Roberto Mangabeira Unger:

“Desde o primeiro dia de seu mandato o presidente desrespeitou as ins­tituições republicanas. Imiscuiu-se, e deixou que seus mais próximos se imiscuíssem, em disputas e negócios privados. E comandou, com um olho fechado e outro aberto, um aparato político que trocou dinheiro por poder e poder por dinheiro e que depois tentou comprar, com a li­beração de recursos orçamentários, apoio para interromper a investiga­ção de seus abusos.

No regime republicano a lealdade às leis se sobrepõe à lealdade aos homens.

Afirmo que o governo Lula fraudou a vontade dos brasileiros ao ra­dicalizar o projeto que foi eleito para substituir, ameaçando a democra­cia com o veneno do cinismo. Ao transformar o Brasil no país conti­nental em desenvolvimento que menos cresce, esse projeto impôs mediocridade aos que querem pujança.”

E arrematou citando Demétrio Magnoli:

“As CPIs acumularam evidências da existência de uma quadrilha que, agindo no núcleo do poder, dedicava-se à corrupção de parlamentares com as finalidades de estabilizar uma maioria no Congresso e soldar uma coalizão política em torno do governo Lula. A quadrilha associava operadores na direção do PT, com livre circulação na Casa Civil, pu­blicitários sob contrato com o governo, diretores de bancos públicos e privados e, provavelmente, ministros com influência sobre contas de publicidade e fundos de pensão. No centro da rede operacional, encon­trava-se Delúbio Soares, um ‘homem de Lula’. A coordenação geral, se­gundo entendimento do Congresso, subordinava-se a José Dirceu, que declarou que jamais agiu sem ‘o conhecimento e o consentimento’ do presidente.

A participação passiva de Lula no sistema de corrupção está demons­trada pelos fatos de que ele dependia da ação coordenada de altas figu­ras do governo e de que o presidente foi informado por Roberto Jeffer­son da corrupção de parlamentares e não tomou providências efetivas. Mas, além disso, é fácil provar a participação ativa de Lula na proteção da quadrilha e na obstrução das investigações.”

Faço esse longo desvio, antes da visita do Sr. Olavo Brás, porque os fatos ocorridos nos governos Collor, Fernando Henrique Cardoso e Lula formu­lam uma pergunta terrível: por que o Brasil, com as conquistas que já fez e em estágio adiantado de civilização, tem a vida política tão marcada pela me­diocridade e pela corrupção?

Gervásio lembrou-me que, para essa pergunta, havia uma resposta, a que mais gostava, de Clara Allain, Jimmy Brandon Ávila e Virgínia Montesino:

“O Brasil se desenvolveu rapidamente, mas ainda lhe falta a capacidade institucional necessária para administrar problemas de escala e com­plexidade que só podem ser resolvidos com eficiência por uma popu­lação instruída. A falha em desenvolver o capital humano constitui um dos legados da escravidão que está sendo superado aos poucos. Um triste aspecto desta falha em desenvolver o capital humano é visto na resposta da classe política à crise de corrupção no governo Lula, ge­rando muitas denúncias, mas poucas propostas de como superar essas dificuldades. Esta ausência de propostas é especialmente notável nos partidos de oposição, que parecem pensar que se beneficiaram da desgraça do PT sem produzir idéias ou soluções para os problemas institucionais.”

E arrematou citando texto da admirável Maria Sylvia Carvalho Franco.115

“...Lula escolheu a via tortuosa da esperteza, minando as instituições, atingindo o calcanhar de adversários e aliados: o dinheiro, num mundo de mercado e escassez, foi seu astucioso aparato destrutivo; desmora­lizou a soberania e a representação do povo, catalisou a desonra de pessoas, admitiu a corrupção de consciências, relegou velhos aliados ao haraquiri para salvar-se, expandiu a desigualdade, pôs à venda, por pra­tos de lentilhas, a altivez e a dignidade dos pobres.”

Tentei argumentar que o Governo Lula não tinha sido tão desastroso quanto diz a severidade de seus críticos. Afinal, reduziu a pobreza em quase 20%, valorizou o real, bateu recorde nas exportações e nas reservas cambiais, e, embora em forma de assistencialismo eleitoral, matou a fome de milhões de pessoas pobres com o Bolsa Família. E 58 milhões de brasileiros votaram nele para mais um mandato. Todos estariam errados, ou apenas votaram pelos pratos de lentilhas?

Gervásio nem parou para pensar:

— Sob as boas condições atuais do desenvolvimento internacional, po­deria ter feito mais. Inaceitável para mim é a imoralidade, a quebra da ética, a permissividade de falcatruas em seu partido político, nas salas do Palácio do Planalto, no governo da República. Desde quando fazer boas obras é anis­tia para crimes ou para impunidade dos corruptos que o cercaram em quanti­dade estarrecedora? Nós sabemos apenas dos que foram descobertos. Quan­tos ainda há por aí escondidos nos meandros da administração federal, fazendo negócios que talvez sejam descobertos apenas no segundo mandato ou nunca chegarão a ser denunciados, porque há uma certa adesão à crença de que o crime compensa. O Congresso Nacional, que aderiu por inteiro ao Governo Lula, perdeu completamente a respeitabilidade. A tal ponto que provocou a pergunta do The Economist: “parlamento ou chiqueiro?”.116


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