Código da Vida



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35

Segurança negada? Tudo conversa e teorias. O ilustre Ministro Gallotti, então Presidente do Supremo Tribunal Federal, resolveu fazer uma gracinha completamente sem graça que podia acabar em desgraça. Declarou que iria convocar três ministros do Superior Tribunal de Justiça para completar o quorum do Supremo Tribunal, e que teríamos novo julgamento. Aquele ter­minara empatado e não valia.

Mas o que é isso? Falta de quorum como? Se houvesse falta de quorum, o julgamento não teria sido realizado. Ora, acabara de ser proclamado e visto pelo Brasil inteiro, pelas televisões, o resultado de um julgamento realizado com votos proferidos por oito ministros. O art. 40 do regimento interno do STF permite a convocação de ministros do Superior Tribunal de Justiça ape­nas para completar quorum, isto é, quando quorum não há. Deve, pois, ser prévia, isto é, anterior à sessão de julgamento, que não pode ser realizada pela falta de número.

Por essas razões, sustentei que a convocação seria ilegítima, pois, tendo havido o número regimental, o julgamento havia terminado e era definitivo. A segurança não fora concedida. Os advogados dos promoventes do impeach­ment, se não me engano Evandro Lins e Silva e Fábio Konder Comparato, tentaram também suscitar questão de ordem. Gallotti não quis saber. Man­teve sua decisão de convocar os membros do STJ, encerrou a sessão e saiu cor­rendo para o seu gabinete. Não quis falar com ninguém.



36

“Santo Deus! O Gallotti está maluco!” pensei eu com enorme pesar, pois gostava dele. O fato de haver votado a favor de Collor era irrelevante para nossas relações pessoais; mas declarar que o julgamento estava anulado pelo empate e convocar ministros de outro tribunal por falta de quorum era um disparate sem tamanho.

Lacombe virou-se para mim e ironizou:

— Você pensou que estava vitorioso. Pois, agora, veja como tudo é rela­tivo. Estamos advogando no processo de maior relevância para a República nos nossos tempos, e você pensa que isso pode ser resolvido com um simples 4 a 4, dentro de suas filigranas processuais?

Fiquei quieto. Ele sabia que estava errado. Era bom processualista. Mas ganhou um fôlego para seu cliente. Agora, sua tese tinha o respaldo de quatro ministros do Supremo Tribunal. Estufou o peito e saiu na minha frente. Foi dar entrevistas a televisões e rádios, que se acotovelavam na porta do tribunal.

37

Permaneci sentado, não acreditando naquilo que havia acontecido. Senti-me como o torcedor brasileiro, ao perder a Copa do Mundo de Futebol em pleno Maracanã, em 1950. Com uma diferença, porém: naquela tragédia esportiva, o adversário ganhou por 2 a 1; e, agora, no Supremo, nós ganharía­mos, tal como naquele longínquo e fatídico 16 de julho, com o empate, segundo a melhor doutrina e o próprio regimento interno do Supremo Tri­bunal. E empate houve, Santo Deus!

Falta de quorum? Não, eu não podia sair do tribunal. Fiquei sentado, digerindo o choque. Naquele instante, não tinha a menor condição de falar com a imprensa. Precisava me acalmar. Se falasse, correria o risco de xingar o Gallotti até a décima geração de seus ancestrais, embora seu pai tenha sido um dos bons ministros do Supremo, a quem conheci no Governo Jânio, o pri­meiro a funcionar em Brasília, em 1961.

O pai dele, que também se chamava Luiz Gallotti, morava no único ho­tel que funcionava na nova capital, Hotel do Lago, onde se hospedavam José Aparecido, secretário particular do Jânio, e Castello Branco, o “Castelinho” jornalista, porta-voz do então novo governo. À noite, costumávamos ir ao hotel, pois ali funcionava a única boate decente da cidade, e podíamos tomar uns uísques, ouvir música, bater papo. Às vezes, o respeitável ministro estava no hall do hotel, e nós ficávamos conversando com ele. Ninguém se atrevia a dizer que ia para a boate. O filho dele, que era advogado, também partici­pava dessas descontraídas conversas e, depois que o pai se recolhia, ia conosco para a boate. Por aí se pode calcular a intimidade ou, ao menos, os longos anos de conhecimento. E precisamente ele aprontava essa imperdoável falseta no julgamento do mandado de segurança de Fernando Collor, embora, em outros casos, tenha sido um jurista exemplar em toda sua carreira.

Em nome daqueles velhos tempos, acalmei-me e saí. Os jornalistas vieram aos montões. É preciso tomar cuidado para os microfones não que­brarem nossos dentes. Com absoluta tranqüilidade, fui respondendo às per­guntas, sabendo que o Brasil inteiro ia ver e ouvir o que eu estava falando:

— O país pode ficar tranqüilo. Nós temos um grande tribunal. A diver­gência entre os ministros foi apenas doutrinária. Aqueles que votaram a favor de Collor estão somente defendendo um ponto de vista sobre a pena aces­sória. Entendem que o Senado não poderia aplicá-la sem haver aplicado a principal. Isto é, a decretação do impeachment teria sido frustrada com a renúncia.

Fui enrolando os jornalistas o mais que pude.

— Além de tudo isso, o acusado fora suspenso das funções, em razão do processo autorizado pela Câmara dos Deputados, o que significa o afastamento do cargo aplicado cautelarmente — expliquei. — Com a condenação, o afasta­mento torna-se definitivo, mas a pena de inabilitação tem que ser aplicada, porque a Constituição diz:”... perda do cargo, com inabilitação...”, o que é dife­rente de “sem inabilitação”. Diante da renúncia, o Senado cumpriu a Consti­tuição, aplicando aquilo que ela manda aplicar por meio da preposição “com”.

Mas grande parte da culpa pelas interpretações contraditórias está na má redação do texto, que vem de longe: art. 52, parágrafo único. Em vez de redigir como está na lei maior até hoje — “limitando-se a condenação à perda do cargo, com inabilitação para o exercício de função pública...” — o consti­tuinte deveria ter escrito: “limitando-se a condenação à inabilitação para o exercício de função pública...”. Pronto, se o condenado estiver no cargo, sai. Se renunciar antes, de nada adiantará. Mas a imprensa insistia. Ninguém estava interessado em aula de Direito. E os profissionais mais experientes sabiam que eu estava “enrolando”.

— E a falta de quorum com o julgamento realizado? Como justificar a convocação de membros do STJ, um tribunal inferior?

— Nada disso. O STJ não é tribunal inferior. Há uma distinção entre as competências de cada um. O Supremo trata de Direito Constitucional, e o STJ, do Direito Comum. Os Ministros do Superior Tribunal de Justiça são excelentes juristas e podem, sem cogitar de hierarquia alguma, participar de julgamento no Supremo, no mesmo nível de conhecimento do Direito Constitucional.

— Mas, e o seu argumento sobre a não-concessão da segurança diante do resultado do empate? — disparou um jornalista em alta voz.

— Isso é uma questão meramente procedimental. Depende da inter­pretação do regimento interno do Supremo.

Se eu fosse um telespectador e me visse e ouvisse dizendo isso, não teria dúvidas em afirmar: esse advogado não sabe nada. Mas preferi conter-me na­quele blá-blá-blá. Mais importante que o Collor, mais importante que o Gallotti, mais importante do que eu poderia parecer para o grande público do Bra­sil, era a preservação de nossas instituições. Não convinha colocar em dúvida, perante o povo, o nosso mais alto tribunal. Pelo menos, a partir daquele dia, o Brasil ficou conhecendo a existência do STJ, que até então era uma corte apa­gada no cenário nacional, pelo pouco tempo de existência. E fui para casa, silen­ciosamente indignado. Ninguém percebeu. O mais difícil ainda estava por vir.



38

Gervásio raramente vinha ao escritório. Mas apareceu sem avisar. Mi­nha secretária, sabendo da intimidade, fê-lo entrar logo que chegou, pois eu estava só:

— Estou ansioso por saber — disse ele sem maiores delongas — se houve tempo para você incluir a questão da distância entre o gravador e as fontes das vozes, porque fiquei com a impressão, na última conversa nossa, de que o laudo já estava pronto sem esse “detalhe”, como disse você.

— Sim, houve tempo. O laudo de que lhe falei era o particular, que o Sinval havia elaborado antes da perícia judicial e que me orientou na formu­lação dos quesitos. Incluí a distância. O próprio Sinval gostou da idéia e vai examinar a fita também sob esse prisma.

— Ainda bem.

Como era fim de expediente, convidei-o para um uísque e chamei o Nerval para participar. Papo de cá, papo de lá, Gervásio, que conhecia quase tudo de minha vida de advogado, perguntou ao Nerval se ele conhecia os de­talhes do habeas corpus do Jânio Quadros, impetrado por Pedroso Horta pe­rante o Tribunal Federal de Recursos, contra ato do então Ministro da Justiça, Gama e Silva, que confinou o ex-presidente em Corumbá.

Nerval não sabia.

— Pois é uma história danada — disse ele — e me foi contada não pelo Saulo, mas por um jovem advogado que trabalhava aqui, o José Fernando Rocha.

— Isso é coisa de antanho. Não tem o menor interesse para o Nerval — disse eu, tentando evitar o assunto.

Nerval protestou. Queria saber. Gervásio resumiu:

— O Jânio pediu para o Saulo redigir o habeas corpus. Foi feito com ex­tremo capricho, longos fundamentos jurídicos, sólida argumentação, porque era contra o ato da ditadura militar. Pedroso Horta não deixou Saulo assinar a peça jurídica e figurar como impetrante. Quis aparecer sozinho. Ele, Horta, redigiu uma introdução política, bem feita, aliás, e o resto, a parte de Direito, era do Saulo, que não assinou a petição.

— Isso não teve a menor importância — disse eu. — O próprio Jânio aconselhou-me a não me envolver pessoalmente no assunto, para não me in­dispor com os militares.

— Conversa fiada. Você advogava para os chamados subversivos, no tempo da ditadura, em processos cabeludos. Por que o habeas corpus em fa­vor do Jânio iria comprometê-lo? Era coisa do Horta, que Deus o tenha. Quis ficar sozinho na história. Sabe o que o Saulo fez?

— Não tenho a menor idéia — disse Nerval.

— No final da petição, citou um texto da obra do criminalista Saulo Ramos, abriu aspas e sapecou a doutrina do seu livro.

— Ora, chefe — disse Nerval, virando-se para mim. — Eu não conheço essa sua obra.

— Ninguém conhece — informou Gervásio. — O Saulo nunca escre­veu livro sobre Direito Penal. Com essa citação, o habeas corpus ficou assina­do por ele. E fez mais. O Tribunal Federal de Recursos negou a ordem. Jânio teve que recorrer ao Supremo. Aí o Horta pediu novamente para o Saulo re­digir o recurso. Redigiu outro habeas corpus, pois nem o Horta, nem o Gama e Silva, do outro lado, sabiam que, em vez do recurso processual depois da publicação do acórdão, podia-se impetrar desde logo um habeas corpus ori­ginário contra o tribunal que encampou a coação. E concluiu com a mesma citação de sua obra, apenas alterando um ponto: trocou o “criminalista” por “jurista”, porque era forçar demais a condição de criminalista para quem nunca escreveu livro de Direito Penal.

É verdade. Gervásio tinha razão. Eu aprontara aquela quase-molecagem com o Pedroso Horta, arrumando um jeito de assinar, ou, antes, de me in­cluir no trabalho que ficará na História, em razão do ato da ditadura e da decisão do Supremo Tribunal Federal, que concedeu a ordem, e Jânio saiu do confinamento, recuperando sua liberdade de ir e vir, como diz o Direito Constitucional. Outro aspecto engraçado foi que o Gama, no primeiro habeas corpus, pediu ao Professor Ráo para redigir as informações, e o professor pas­sou a tarefa para mim. Fui à sala dele e informei:

— Professor, não posso fazer o trabalho. Fui eu quem redigiu esta petição.

— E não assinou?

— Coisa do Horta e do Jânio. Mas veja no final da impetração: há uma citação de trabalho meu, de Direito Penal, que não existe. Foi meu jeito de assinar.

— Engenhoso. Que bobagem essa do Gama de confinar o Jânio — co­mentou ele. E chamou sua secretária, Dona Sílvia:

— Telefone para o Gama e diga que não posso ajudá-lo nesse assunto: primeiro, porque não estou de acordo com o confinamento, e porque não lido com Direito Penal, segunda razão prejudicada pela primeira.

Relembrada essa participação do Professor Vicente Ráo e falando no direito de ir e vir, fomos para o restaurante Paddock, aceitando o convite do Gervásio para jantar. No aperitivo, contei-lhes os detalhes ocultos do proces­so de impeachment de Collor, narrativa que se prolongou durante o jantar.



39

Advogado deve separar as coisas. A questão da falta de quorum poderia ser enfrentada com um agravo regimental para o próprio plenário do Supre­mo, que teria de discutir e deliberar sobre o ato de seu presidente, Ministro Gallotti. Mas, além disso, o advogado tem que pensar em ganhar a causa e rapidamente trabalhar com outra hipótese, quando possível.

No dia seguinte ao julgamento do impeachment, que terminou empa­tado, fui visitar o Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Ministro William Patterson, jurista de excelente formação cultural, humano, de grande espírito público. Claro que haveria o constrangimento de explicar a visita. Nem de longe poderia deixar transparecer minha preocupação com a escolha que ele faria dos três membros que deveriam suprir aquela inexplicável “falta de quorum” no Supremo Tribunal.

Minha intenção era debater a magna questão jurídica criada com a con­vocação, o precedente de completar-se quorum para um julgamento já realiza­do sob quorum regular. Enfim, eu precisava encontrar assunto sério para justi­ficar a visita, sem ofendê-lo.

Patterson era um homem afável. Aquela foi a primeira vez que me aten­deu. Houve outra mais tarde.

40

Eu estava encerrando o expediente em meu escritório em São Paulo, lá pelas oito horas da noite, quando o telefone tocou. Era o governador da Pa­raíba, Ronaldo Cunha Lima, que tinha sido preso pela Polícia Federal em Campina Grande, onde fora passar o fim de semana.

— Você, governador, preso? Que maluquice é essa?

— Pois estou preso aqui na Delegacia da Polícia Federal, embora a com­petência para o delito seja da Justiça Estadual, que, claro, não pode prender o Governador. Aí arrumaram um jeito para a prisão ser efetuada pela Polícia Federal, e o Delegado aqui está irredutível. Apenas me permitiu telefonar. É o que estou fazendo.

Ronaldo, além de excelente poeta e repentista dos bons, é advogado, e ele mesmo já foi elaborando o diagnóstico jurídico da ilegalidade por ele so­frida. Alguém, a esta altura, pode pensar que eu era muito importante como profissional. Um governador do Nordeste me telefonar para pedir socorro? Eu deveria ser um tremendo advogado, com muita fama! Nada disso.

O ilustre governador da Paraíba, meu amigo Ronaldo Cunha Lima, no tempo da ditadura, teve sua prisão decretada pelos militares e fugiu para São Paulo, onde conhecia um paraibano, seu conterrâneo, Eurícledes Formiga, poeta repentista, que também era meu amigo e amigo do Paulo de Tarso Santos. E mais: amigo íntimo do Ministro Luiz Gallotti, que conseguiu sua nomeação para diretor administrativo da Justiça Federal em São Paulo. For­miga apareceu no escritório e me pediu:

— Preciso de um grande favor seu — falou baixinho, debruçando-se so­bre a mesa, para dar maior ênfase teatral à enfumaçada cena de sigilo absoluto. — Os milicos do meu estado querem prender um amigo meu, e ele fugiu para São Paulo. Está hospedado na minha casa. Trocamos o nome dele, mas, sabe como é, precisa trabalhar. Venho lhe pedir um emprego para ele. É bom advo­gado, redige muito bem, será útil para o serviço interno. Ele não pode, é claro, assinar petições, nem figurar em procurações. Chama-se Ronaldo Cunha Lima. Você vai adorá-lo, porque ele também é poeta e dos bons.

Ao Formiga eu não podia negar nada. Conhecera-o havia muitos anos, quando ele andava por aí, demonstrando suas incríveis qualidades de memó­ria. Simplesmente olhava um texto escrito, que lhe era mostrado por alguns segundos, e, em seguida, repetia-o integralmente. E ainda criava variantes, dizendo a primeira palavra e a última, a segunda e a penúltima, até encontrar no meio. Memória fantástica.

Ronaldo veio trabalhar no escritório. Ao serviço secreto dos militares seria difícil localizá-lo. Morando na casa do diretor administrativo da Justiça Federal, trabalhando no escritório do Professor Vicente Ráo e com o nome trocado, estaria bem protegido dos agentes que bisbilhotavam nossas vidas naqueles tempos. Ficou lá muito tempo, trabalhou muito, ganhou honrada­mente seus honorários e um dia voltou para sua terra. Com a queda da dita­dura, tornou-se líder na política paraibana, além de ter escrito um dos me­lhores livros sobre a vida e a obra de Augusto dos Anjos.

Mas, agora, pelo telefone, comunicava-me que estava preso. E era Go­vernador, com todas as imunidades constitucionais, foro privilegiado, blin­dado, naquele tempo, contra processo sem licença da Assembléia Legislativa. O delegado federal de Campina Grande não quis saber nada disso. Prendeu o governador.

O crime? Ronaldo estava assistindo à televisão de manhã e viu um ad­versário político atacar seu filho, chamando o garoto de desonesto. Não teve dúvida. Foi ao restaurante onde o oponente costumava almoçar. O difamador estava lá. Desferiu-lhe um tiro de revólver. Claro que errou. Ele era bom poeta, mas analfabeto em armas. Não sei por que pretendeu resolver sua emoção dessa maneira: “Perdi a cabeça. Podia atacar a mim. Meu filho, nunca!”.

Bem, de qualquer forma, estava preso. E eram oito horas da noite. Tri­bunal competente, o Superior Tribunal de Justiça. Telefonei ao presidente William Patterson, que já estava em casa, e perguntei se podia pedir um habeas corpus por fax. Ele disse que sim e, por extrema gentileza, foi, àquela hora, para a sede de seu tribunal, convocou um procurador e um ministro, a quem distribuiu o processo, instaurado com o fax. O representante do Ministério Público opinou pela concessão da ordem, e o ministro relator concedeu o habeas corpus liminarmente. O alvará de soltura foi transmitido por fax para a Delegacia da Polícia Federal de Campina Grande, que, por milagre de Oxum, tinha um aparelho de fax.

Ronaldo voltou a telefonar-me, informando que já estava livre e que eu podia ir para casa. Era em torno de meia-noite. Os paraibanos, sempre muito irreverentes, colocaram uma enorme faixa defronte a casa do adversário de Ronaldo: “A única obra que o Governador deixou inacabada!”.20

Anos depois, o filho de Ronaldo, Cássio Cunha Lima, alvo da ofensa que provocara o tiro errado do pai, foi eleito governador da Paraíba. E reelei­to com grande votação.



41

Após essa escala tumultuosa da narrativa na Paraíba, tenho que voltar a Brasília, para contar, no Paddock, como enfrentei, pela primeira vez, o presi­dente do Superior Tribunal de Justiça, Ministro William Patterson.

— Claro que o senhor acompanhou o julgamento do mandado de se­gurança do Collor ontem, no Supremo — disse eu, depois que ele me man­dou sentar.

— Acompanhamos todos. E com muita atenção. Já fui avisado de que o ofício do Supremo, convocando os ministros nossos, deverá chegar aqui hoje à tarde.

Comecei a pensar o que devia falar e a medir as palavras:

— Primeiro, peço desculpas por vir visitar o senhor. Afinal, sou advo­gado de uma das partes e não tenho o menor propósito de me imiscuir na escolha que caberá ao senhor fazer.

— Não se constranja. Ninguém há de pensar que seu propósito seja esse. Assistimos ontem à sua entrevista pela televisão, demonstrando a im­portância do Superior Tribunal de Justiça e rebatendo a afirmação de tra­tar-se de tribunal hierarquicamente inferior ao Supremo. Ficamos muito gratos.

— Exatamente isso, meu Presidente — disse eu. — Minha presença aqui, hoje, tem esta exata finalidade: a de pedir que os três ministros a serem escolhidos sejam os melhores juristas da corte, os mais experientes, para que o Brasil todo, que acompanhará o julgamento e o voto deles, possa julgá-los também e verificar a alta capacidade do Superior Tribunal de Justiça. Esse caso Collor está comovendo o Brasil, os jovens ainda estão nas ruas com os rostos pintados de verde e amarelo, que usaram para pedir o impeachment, e agora repetem para comover o Judiciário.

William sorriu. Claramente entendeu minha mal disfarçada sustenta­ção oral. A pretexto de defender o STJ, estava eu, na verdade, chamando a atenção para a vontade do povo. Depois, passamos a conversar sobre a reda­ção defeituosa do artigo da Constituição, o grande culpado pela divisão nas interpretações do Supremo.

Serviu o cafezinho. Eu achava que a conversa terminara e me preparava para despedir-me depois de tomar o café. Ele pegou o telefone, falou qual­quer coisa com a secretária, e, em seguida, entraram na sala os ministros Torreão Braz e José Dantas. Levantei-me para cumprimentá-los, e o Presi­dente me comunicou que já estava tudo decidido: indicaria esses dois minis­tros e a si próprio.

Agradeci a primazia de ter sido informado, e o Ministro William explicou:

— Logo que o Ministro Gallotti encerrou a sessão ontem, resolvemos nos reunir imediatamente, para deliberar sobre a escolha, porque, é claro, a importância da questão exige que o Superior Tribunal de Justiça se faça repre­sentar com absoluta autoridade e de preferência sem divisões de opinião.

Comecei a sentir um frio na barriga. Julguei que me ia ser revelada a posição deles. Mas foi afobação minha.

— Há outros, e muitos — continuou o Ministro Patterson —, igualmente competentes, à altura dessa grave missão. Mas a escolha obedeceu a critérios adotados por unanimidade na reunião de ontem. Vamos aguardar o material que o Supremo nos enviará e estudaremos o caso com a máxima dedicação. Posso adiantar ao senhor que deliberamos estudar em conjunto, e a conclusão a que chegarmos será refletida no voto dos três. Vamos estudar em profundidade, e serão bem-vindos os possíveis memoriais de ambas as partes, se os advogados quiserem nos oferecer.

Agradeci tanta deferência, acabei de tomar o café e me despedi. Na saí­da, o Ministro José Dantas, um misto de jurista e santo, homem de uma pu­reza comovente, disse-me ter gostado de minha sustentação oral e agradeceu pela defesa que fiz, na televisão, do STJ, quando a imprensa o chamou de tri­bunal inferior. Fui embora mais ou menos tranqüilo, mas, com a experiência de tantos anos de lides judiciárias, não podia deixar de considerar a hipótese de tanta simpatia significar um enterro de luxo.

Lembrei-me de Steven Spielberg, o famoso cineasta norte-americano, autor de tantos filmes maravilhosos, que costuma dizer:

“Devemos sempre nos preparar para o fracasso. Isso torna ainda mais gratificante o sucesso.”

No fundo, no fundo, eu estava confiante no sucesso.



42

Quando cheguei ao escritório do meu sócio em Brasília, Luiz Carlos Bettiol, meu companheiro de tantas causas, sofrimentos e alegrias, havia um recado: o Ministro Sepúlveda Pertence queria falar comigo. Lá fui eu para o Supremo Tribunal Federal.

Pertence e eu éramos amigos. Atuamos juntos no Governo Sarney. Ele era o Procurador-Geral da República, e eu era o Consultor Geral da Repú­blica, cargo sempre confundido com o dele nas embrulhadas tanto dos noti­ciários de imprensa como nos protocolos das solenidades que se repetem quase diariamente em todos os governos. Ainda bem que se transformou em Advogado Geral da União.

Entrei. Pertence pediu um cafezinho e começou:

— Circulou por aqui que você vai agravar da decisão do Ministro Gallotti — disse ele, com aquele olhar maroto de mineiro e o sorriso de en­volvente simpatia.

— Como circulou? Ainda não decidi e não falei com ninguém. Estou pensando. É meu dever, como advogado, exercitar todos os recursos em favor do meu cliente.

— Claro, claro, claro. Mas você não acha que isso pode atrasar o jul­gamento? É mais tempo, mais emoção, o Brasil está demasiadamente como­vido com este caso. O país parou. Melhor liquidar logo o assunto. O próximo julgamento poderá ser marcado imediatamente. Se você agravar, suspende tudo.

— E daí? Deixe suspender. Quero ver o plenário se pronunciando sobre a decisão do Gallotti. Vocês têm que deliberar sobre os efeitos do empate em mandado de segurança e sobre essa história de falta de quorum em julgamento realizado.

— Calma, Saulo, guarda a faca. Veja bem. O caso está mobilizando o país. Se você agrava contra a decisão do Presidente do Supremo, a discussão no ple­nário vai pôr em jogo o próprio prestígio do tribunal. A casa, inclusive, pode entender que houve apenas proclamação de resultado, ato do qual o Presidente não pode retratar-se e, portanto, não é passível de recurso de agravo.

— Não vou agravar contra proclamação alguma. O recurso será contra a convocação dos três ministros para novo julgamento. Isto é, está anulado o julgamento que ganhei. Vocês não decidiram isso no plenário, logo não faz parte da “proclamação de resultado”.

Pertence já tinha uma tese para a rejeição do agravo. Mas ponderou:

— Não convém correr o risco de arranharmos o que ainda funciona neste país.

— Respeito sua relevante preocupação. Mas esse intocável tribunal ar­ranhou o direito do país em que ele ainda funciona. E o fez pela decisão monocrática de seu Presidente. É preciso que os demais ministros corrijam isso. Ou se suicidem, apoiando esse ato maluco do Gallotti.

— Pense bem. O agravo regimental contra o Presidente, além de criar um mal-estar para todos nós, poderá demorar. Cada um dos ministros vai pedir vista para fundamentar o voto. Você conhece o ritual. Para que pro­longar essa agonia? Hoje, eu fiquei sabendo que você esteve com o William Patterson.

Levei um susto.

A inteligência do Ministro Pertence é igual à sua habilidade. Entendi o recado. Ninguém, a não ser os ministros do STJ, e o meu sócio, Luiz Carlos Bettiol, sabia de meu encontro com o Ministro William Patterson, poucas horas antes.

— Você vai ganhar no plenário — insistiu Pertence.

— Como você sabe?

— É minha intuição. Está no meu voto negando a segurança.

O voto dele, no primeiro julgamento, fora excelente, tanto quanto o do Ministro Carlos Velloso, relator. Mas eu precisava diagnosticar, agora, o que estava por trás daquela conversa típica de mineiro, não de jurista. Desconfiei que aquela intuição era mais do que intuída. Resultava de informação concreta.

É preciso fazer vários cursos intensivos e especializados para se entender a mineiridade. O mineiro diz, mas não diz exatamente o que quer dizer, de tal forma que somos levados a afirmar que ele disse. Se isso acontecer, terá como negar e provar que o outro entendeu mal, sem ofender. A ciência está em in­ferir o que o mineiro não diz, quando está dizendo, ou entender a outra coisa que ele está querendo que você saiba, ao falar de coisa diferente. Mineiro é muito difícil, muito difícil. Sobretudo quando recorre às suas intuições sobrenaturais.

Foi por isso que Fernando Sabino escreveu:

“Ser mineiro é não dizer o

que faz, nem o que vai fazer

é fingir que não sabe aquilo

que sabe, é falar pouco e

escutar muito, é passar por

bobo e ser inteligente, é

vender queijos e possuir

bancos.


Um bom mineiro não laça

boi com imbira, não dá

rasteira no vento, não pisa

no escuro, não anda no

molhado, não estica

conversa com estranhos, só

acredita na fumaça quando

vê fogo, só arrisca quando

tem certeza, não troca um

pássaro na mão por

dois voando.”


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