Código da Vida



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100

Começaram-se os trabalhos. O Congresso havia sido eleito sem que, na campanha eleitoral, alguém debatesse uma idéia sobre nosso futuro Direito Constitucional. A eleição coincidiu com a dos governadores. Deputados e se­nadores foram eleitos dentro da normalidade política, segundo a influência de seus partidos. E os debates deram-se em torno dos candidatos ao governo dos estados. Nenhuma palavra sobre a importância da Constituinte e a esco­lha dos delegados que iriam elaborá-la.

A Constituinte começou, demonstrando que nada entendia do que ia fazer. Primeiro, surgiu uma proposta permitindo à Assembléia, desde logo, governar por meio de resoluções, em substituição ao Poder Executivo e tam­bém ao Judiciário. Demitiriam e nomeariam ministros de Estado, membros do Judiciário. Balbúrdia completa. Queriam seus autores imitar a Assembléia Constituinte da França, em 1789, que acabou guilhotinando Luís XVI e Maria Antonieta e que governava o país com atos “constitucionais”. Coisa de malucos!

A proposta foi, é claro, rejeitada. Mas teve 160 votos favoráveis, o que indicou a presença considerável de analfabetos raivosos naquele Parlamento. A mim, o que mais espantou foi o fato de o Dr. Ulysses Guimarães ter colo­cado em votação essa teratologia, pois a novidade nada tinha a ver com o processo normativo constitucional e resultaria, se aprovada, num simples golpe parlamentar de Estado. Entendi que, submetida à mesa, o Dr. Ulysses deveria mandar para o arquivo. Mas eu não tinha que dar palpite. Exercia funções no Poder Executivo e não podia perturbar os trabalhos da soberana e autônoma assembléia.

E os trabalhos começaram e foram muitos. Deputados e senadores transformaram-se em produtores de volumosas propostas de redação da Constituição, algumas excelentes, outras estapafúrdias; mas o Congresso, transformado em Constituinte, era uma explosão de fontes de idéias de todos os tipos, em todos os campos da vida social do país. Espetáculo bonito. Dá gosto ver a democracia nascendo de milhares de corações entusiasmados, Propondo como desenhar o Estado de Direito em que ela vai viver, mesmo na presença de malucos que, afinal, representam uma pequena parte da nação, mas que existem.

Claro que havia, como sempre houve e haverá, e há cada vez mais, grupos de parlamentares farejando uma oportunidade qualquer para tirar alguma vantagem. Um emprego para parente, um cargo para cabo eleitoral, um lugar qualquer no qual possa mexer com verbas públicas, fazer negócios, diretoria de estatais. Por isso, os partidos políticos, quando aderem ao gover­no, começam a exigir posições-chave em ministérios e estatais. Mas o que é isso? Para apoiar soluções na Constituinte? Quanto um parlamentar vai pedir para votar a favor do direito à vida? Bota para correr. Essa gente não entra aqui.

Nem todos eram assim. Havia os idealistas.

Na Consultoria da República, dávamos redação técnica e redigíamos as justificativas de projetos de muitos e muitos parlamentares que nos solicita­vam, ainda que estivéssemos em desacordo com o mérito do que propunham. Nossa alegria era colaborar. A ordem de Sarney era atender a todos os que batiam à nossa porta para esse tipo de ajuda, embora o Congresso tivesse assessoria igualmente competente.

Chegamos a redigir três modelos de Constituição, com variáveis em pontos controversos. Um desses modelos, por alcançar maior aprovação en­tre nós e os juristas consultados, foi nomeado Luiza Brunet.

Demos ao Bernardo Cabral toda a colaboração possível. Direitos indi­viduais, sistema de governo, tributário, Poder Judiciário, comandos sobre ecologia e meio ambiente. Redigíamos e enviávamos. Ele agradecia, elogiava, dizia que estava tudo formidável, que seu relatório com tais elementos seria um sucesso.

Um dia, tivemos um encontro.

— Está havendo muita pressão para que o relatório adote o sistema parlamentarista de governo — confidenciou-me ele, falando baixinho, como se fosse proibido tocar no assunto. ,’

— Não pode — disse eu — de maneira alguma! — Por quê?

— Porque, meu caro, a Assembléia Constituinte é derivada, e os consti­tuintes são representantes do povo. Titular da soberania é o povo. E, em 1963, em plebiscito, o povo escolheu o sistema presidencialista. Uma Constituinte derivada não pode mudar a vontade do povo.

— Derivada? Derivada de quê?

Senti um calafrio. O nosso relator não sabia o que era uma Constituinte derivada.

— Derivada, Cabral, da Constituição atual. Tanto que sua convocação foi efetuada por emenda constitucional, que deu ao Congresso competência para reformar a Constituição mediante quorum baixo, isto é, maioria absoluta dos votos dos constituintes. O processo é de reforma, ainda que total, mas reforma, isto é, respeitando-se as instituições pétreas da atual e a sepa­ração dos poderes. Dê uma lidinha em Pontes de Miranda.

— O Senador Afonso Arinos acha que não. Sustenta que nossa Consti­tuinte tem liberdade para decidir qualquer coisa.

— Você leu os livros dele sobre Direito Constitucional? — perguntei.

— Não tive tempo.

Depois descobri que ele não havia lido livro algum de Direito Constitu­cional. Mas ele foi gentil:

— Não se preocupe. No relatório, vou incluir o presidencialismo. Na justificativa, darei destaque ao plebiscito de 1963. Aquele do Jango, não foi?



101

Nossa Assembléia Constituinte tinha mais uma complicação. Havia sido criada a Comissão de Sistematização, que, como indica o nome, tinha competência para sistematizar os textos aprovados — obviamente pelo ple­nário — com o voto da maioria absoluta, evitar contradições, comandos conflitantes, redações dúbias. Mas o Senador Fernando Henrique Cardoso tomou conta da Comissão e deu-lhe uma competência extraordinária, com base numa quinta coluna do regimento interno da Constituinte, especial­mente redigido para essa marota finalidade. Os textos eram aprovados antes na Comissão dele, por maioria absoluta de seus membros, número fácil de atingir: 47 votos. Depois, no plenário, o texto aprovado na Comissão somente poderia ser “alterado” pelo voto da maioria absoluta dos constituintes, isto é, 280 votos. Do contrário, seria tido como definitivo, para integrar o texto final da nova Carta. Malandragem das mais evidentes.

Com esse processo, se 279 constituintes fossem contrários a qualquer dispositivo aprovado pela tal Comissão, de nada adiantaria. O regimento interno mandava prevalecer o texto que teve os 47 votos na panelinha de Fernando Henrique Cardoso... e desconsiderar os 279 votos contrários dos constituintes de segunda classe.

Os mineiros costumam dizer que a esperteza, quando é muita, acaba co­mendo o dono. Fernando Henrique, inteligente, culto, é um grande esperto. Tapeia todo o mundo com a maior facilidade. Estava conduzindo o Brasil a ter uma Constituição cozida no caldo de espertezas, que não eram mineiras.

Dei uma entrevista e escrevi um artigo para jornal, denunciando haver no Congresso constituinte de primeira classe e constituinte de segunda clas­se. Os de primeira classe aprovavam o que bem entendiam na Comissão de Sistematização, e os de segunda classe teriam que reunir a maioria absoluta de seus votos para eliminar a tentativa de fazê-los engolir goela abaixo a ma­téria aprovada por menos de cinqüenta parlamentares.

Fernando Henrique ficou furioso. Foi à tribuna do Senado e exigiu que eu saísse do Governo. Estava interferindo nos trabalhos soberanos da into­cável Assembléia Nacional Constituinte. Não queria perder aquela rica “bo­quinha” de fazer uma Constituição do jeito que lhe interessava.49

A imprensa correu para a Consultoria Geral, e um punhado de repór­teres invadiu minha sala. A chatice de sempre, câmaras, microfones, per­guntas ao mesmo tempo, até que se fez silêncio, e uma repórter indagou em voz alta:

— O Senador Fernando Henrique, da tribuna do Senado, acabou de pedir sua cabeça!

— Por quê? — indaguei. — O Senador perdeu a dele?

Depois das risadas, tudo acabou em paz.



102

Veio o grande dia: o Deputado Bernardo Cabral avisou-me que passaria cedinho pela minha casa para mostrar, em primeira mão, a minuta de seu re­latório final, isto é, a “nova Constituição”. Dispensou seu carro e me convidou a levá-lo no meu para a casa do General Leônidas, a quem prometera entregar um exemplar do seu trabalho.

— Espera aí — ponderei eu. — Não tive tempo de ler! Como vou ao Ministro do Exército avalizar a entrega desta minuta?

— Vamos, vamos, você lê no caminho.

Senti que ele queria minha cumplicidade. Voltei a insistir:

— Por que o Leônidas? Creio que você deve entregar «primeiro ao presidente.

— Eu prometi. Vamos.

Entramos no carro do Consultor Geral, e lá fui eu lendo, no trajeto, o exemplar que ele me entregou. De cara, nos direitos individuais, topei com aquela célebre bobagem de que os direitos dos homens e mulheres são iguais em tudo, salvo na gestação.

— Por que você não incluiu a menstruação?

— Não brinca! Esse artigo foi muito pensado, porque a gestação abran­ge o direito do nascituro.

— E o homem não tem direitos e deveres quanto ao seu filho nesse estágio?

Dei mais uma folheada e verifiquei que o sistema de governo era parla­mentarista. Redação horrível, embora se saiba que ele não redigiu nada. O problema é que ele não tem alfabetização suficiente para distinguir uma re­dação má de uma redação boa.

— Parlamentarismo, Cabral?! Parlamentarismo?! Você me disse, me prometeu respeitar o plebiscito de 1963! Que história é essa?

— Nas disposições transitórias, há um comando para realizar outro plebiscito.

— Tudo bem. Mas deve ser o contrário. A Assembléia deve respeitar o presidencialismo e, aí sim, permitir uma nova consulta ao povo, para saber se ele quer mudar.

Desisti de discutir. Fui folheando a minuta. Nada do que havíamos su­gerido estava lá. Nada de defesa do meio ambiente. E tudo malfeito e incluído sem sistematização. Não sei como a comissão do Fernando Henrique deixou aquela coisa passar. Enquanto o carro rumava em direção à residência do Ministro do Exército, caí na real. Tinha sido vítima de um grande estelionato numa questão vital para o país. O experiente advogado de São Paulo, discí­pulo de Vicente Ráo, traquejado nos tribunais, batalhador de tantas causas, estava ali, vencido por um deputado do Amazonas, que o levara no bico, graças aos pães quentes no café-da-manhã.

Como um político com essas dubiedades pode ter vencido nas eleições para a OAB, nada menos, nada mais do que Sepúlveda Pertence, que, além de mineiro, é uma das melhores culturas jurídicas do nosso país? Eu já estava procurando justificativa para me perdoar por cair no conto do Cabral, que se faz de vigário e santo quando lhe convém.

É porque viajou por todos os estados e enganou cada um dos presi­dentes seccionais da OAB. Disseram-me depois que, durante a campanha, ele repetia um discurso em cada capital onde ia pedir votos:

— A Justiça e a Advocacia — dizia ele — são dois passarinhos: um, cego do olho direito; e o outro, cego do olho esquerdo. E cada um deles tem uma única perna: um, a direita; e o outro, a esquerda. Assim, têm que voar sempre juntos, para enxergar dos dois lados. Têm que pousar juntos no mesmo ga­lho e se encostar um no outro, para não cair.

Com essa incrível oratória, ganhou a eleição da OAB, e por grande maioria. Não me lembro bem, mas acho que Sepúlveda Pertence teve apenas dois votos.

Se algo pode consolar o candidato derrotado, mais tarde excelente Ministro do Supremo Tribunal Federal, aquela ridícula imagem do discurso de Bernardo Cabral foi inspirada em verso de um compositor jamaicano e cantor de reggae, o rastafári Bob Marley, falecido em 1981: “somos anjos de uma asa só. Precisamos nos abraçar para alçar vôo”.

Chegamos à casa do General Leônidas. O Ministro nos esperava na porta e nos convidou para entrar. Agradeci, disse que viera apenas trazer o Bernardo e dera uma lida no trabalho às pressas, no carro, e não gostara. E que deixava o deputado para conversar com ele, Leônidas, pedindo para de­pois conseguir um carro que o levasse.

— O Saulo é muito brincalhão — disse Cabral para o Ministro. — Está sempre me pondo no fogo. Ele, que me conseguiu o cargo de relator, agora fica dizendo essas coisas.

Enquanto os dois estavam entrando, eu, do carro, vidro baixado, gritei para o Leônidas:

— Ministro, a leitura disso tudo tomará tempo. Mas não deixe de ver que, nas disposições transitórias, tem um comando que promove Luiz Carlos Prestes a Marechal!

E mandei o carro tocar. Quando Cabral me disse que, nas transitórias, estava previsto um novo plebiscito, dei uma olhada e topei com aquela mag­nífica bobagem: promoção de Prestes a marechal, cargo que nem sequer exis­tia mais nas Forças Armadas. Ainda ouvi a voz do Leônidas:

— O quê?

103

Foram tempos agitados aqueles da Constituinte. O país levou o maior susto, quando Afonso Arinos, Senador pelo Rio de Janeiro e inegavelmente um grande jurista, fez um discurso na Assembléia, sustentando que a Consti­tuinte tinha liberdade absoluta para alterar as instituições, sem nenhuma vinculação jurídica com o passado ou com o Direito Constitucional, e que as limitações impostas à Constituinte derivada eram velharias na doutrina.

Em abono de sua tese, invocou George Burdeau, o maior cientista polí­tico e constitucionalista francês, reverenciado pelos estudiosos do mundo in­teiro, que, diante da proibição constitucional de abolir a República na França, criou a tese de que o poder constituinte de um dia não tem nenhum título para limitar o poder constituinte do futuro. Com isso, a Comissão de Sistematização aprovou o parlamentarismo, derrotando a emenda presidencia­lista, apresentada por Vivaldo Barbosa, por 57 votos a 36. O querido Profes­sor e Senador Afonso Arinos foi aplaudido de pé, durante dois minutos, depois do resultado que consagrou suas teses: o parlamentarismo e a inexis­tência de Constituinte derivada.

Anotem: com 57 votos e um discurso de Afonso Arinos, Fernando Henrique e Bernardo Cabral quiseram implantar o sistema parlamentarista no Brasil. Um tem muito talento, o outro não tem, mas ambos são inegavel­mente corajosos em matéria de ciência constitucional. Tanto quanto um mi­litar aventureiro, os dois quiseram mudar o sistema de governo por meio de golpe desarmado.

Escrevi um artigo para o Correio Braziliense, demonstrando que Afon­so Arinos, em seus livros de Direito Constitucional, defendeu tese oposta, isto é, Constituinte derivada não pode alterar o sistema de governo sem con­sulta ao povo. Entre o professor e o senador, era aconselhável prestigiar o professor.

Fui mais cruel com meu amigo. Demonstrei que sua citação de George Burdeau estava desatualizada e fora um engodo contra a Comissão de Sistematização, porque o constitucionalista francês sustentara aquela tese na sé­tima edição de seu livro (Manuel de Droit Constitutionnel), mas depois admi­tiu que estava errado e repudiou sua própria posição, como se via na décima edição de sua obra, a qual eu possuía: aquela que ficou valendo para a Histó­ria. Coloquei-a à disposição de todos os constituintes, inclusive do Professor Afonso Arinos.

A consciência jurídica e política do Brasil levantou-se contra a trapaça da Comissão de Sistematização. Advogados ilustres, juristas de nomeada e meios de comunicação foram unânimes nas críticas e censuras à tentativa de golpe. Esse alerta do país pôde ser retratado em editorial de O Globo, de 31 de outubro de 1987, sob o título “Usurpação de poderes”, que começa assim:

“Qual a origem do poder constituinte do atual Congresso? Todos a re­conhecem, sem hesitação e sem possibilidade de controvérsia: está na Emenda Constitucional número 26, de 1985, promulgada pelo Con­gresso anterior, emenda que dispõe sobre o processo e a forma de dis­cussão, votação e promulgação da futura Constituição.

Ora, não se emenda o que não existe. Se se aprovou uma emenda constitucional, é porque se reconheceu a vigência de uma Constituição, ressalvada a matéria submetida à revisão, de pouco valendo proclamá-la mais adiante de espúria e carente de legitimidade, exceto como farsa de expressão e recurso retórico.

[...]


O povo não fez uma revolução, geradora de um poder de fato, ini­cial, absoluto, ilimitado e incondicionado. O povo compareceu às elei­ções, no quadro de um Estado existente e sob uma ordem jurídica reconhecida. Não deu, pois, mais legitimidade aos congressistas que a admitida, pelo menos implicitamente, no titular da Presidência da Re­pública, pelo tempo já estipulado no seu mandato.

Configura-se, assim, uma tentativa de usurpação: valer-se de um po­der derivado, poder de direito, poder constituído e, conseqüentemente, limitado, para deliberar sobre o que só caberia ao poder constituinte ori­ginário — modificar, por exemplo, o tempo de mandato do Presidente da República, recebido já da Constituição cuja vigência se reconheceu.

Sem dispor do poder constituinte originário, os caminhos do atual congresso Constituinte na discussão do sistema de governo e de maté­rias correlatas abrem-se mais sobre a subversão da ordem jurídica que sobre o fortalecimento das instituições e da credibilidade do poder po­lítico: quando se prescinde do povo, não há mais crédito possível para o poder político, fazendo letra morta da condição da constitucionalidade, o poder constituinte derivado compromete todas as instituições políti­cas e lesa o direito do povo à segurança jurídica.”

O Brasil deve mais essa ao Dr. Roberto Marinho.

Não resta dúvida de que a posição do Senador Afonso Arinos estimu­lou os que entendiam ter a Constituinte poderes ilimitados e absolutos. Meio no sufoco, escrevi um livro em tempo recorde, citando, em resumo, todos os constitucionalistas modernos do mundo inteiro, para demonstrar as limita­ções da Constituinte derivada. O livro, que teve o título Assembléia Consti­tuinte, foi publicado pela Editora Alhambra, com um carimbo vermelho na capa: “O que pode, o que não pode”. E distribuído para todos os parlamenta­res daquela época.

Terminei assim:

“Na elaboração de uma Constituição, que é a carta da nacionalidade e do direito fundamental, todo cidadão tem a prerrogativa de opinar, e o jurista tem o dever. Unamuno já advertiu que, em certos momentos históricos, calar é crime.

Creio no Congresso Nacional, na competência e patriotismo de mui­tos e muitos deputados federais e senadores. Sem dúvida, esses homens farão prevalecer nas decisões do plenário do Congresso Constituinte, recinto onde se exerce a soberania em nome do povo, o bom senso da sociedade brasileira, impedindo o predomínio da incapacidade, dos simulacros de locutórios vazios, do mercado dos conchavos, da praça de negócios, dos inimigos da liberdade, que sabem servir-se dela para comprometê-la ou destruí-la.

Assim creio, espero e rezo para que seja. O Brasil não pode mais so­frer retrocessos institucionais ou patologias constitucionais, nem a si­lenciosa e triste psicose da resignação.”

Bernardo Cabral, tomado de uma ira inculta e feia, fez violento discur­so contra meu livro. E anunciou (vejam que espantoso!) a publicação de um livro dele em resposta. Indagado pela imprensa sobre esse discurso, declarei-me feliz por saber que o deputado amazonense, afinal, tinha lido um livro de Direito Constitucional, o que já era um bom começo. Quanto ao livro em resposta, estou esperando até hoje. Nunca escreveu. Creio que prescreveu.



104

— Que cara-de-pau! — exclamou o General Leônidas, quando atendi ao telefone.

— Quem?

— O Bernardo Cabral! Você acredita que ele...



— Acredito em tudo! — intercalei na conversa.

— ... que ele tentou me convencer...

— A promoção de Prestes a marechal?

— Não! Não! Essa coisa não passa. O posto não existe mais, e seria im­possível conter a oficialidade das três forças, se uma aberração desse tama­nho constasse da Constituição. Seria até ridículo para o Brasil.

— Do que então ele tentou convencer você?

— Do parlamentarismo. Sabe qual foi a conversa? “Os militares vão fi­car felizes, porque, em 1961, as Forças Armadas exigiram esse sistema de go­verno, como condição para dar posse ao Jango Goulart”. Quis me convencer de que até eu era parlamentarista.

— E você o que disse?

— Isso foi coisa de mais de vinte anos. Se os militares fossem parlamen­taristas, teriam implantado tal sistema de governo durante o regime de 1964. No poder, até eles respeitaram o plebiscito de 1963, quando o povo escolheu o presidencialismo.

— É certo, mas foi um presidencialismo meio maroto: eleição indireta pelo Congresso Nacional, candidato do tipo “você pode casar com quem qui­ser, desde que seja com a Maria”.

— Vamos discutir isso outra vez? É melhor cuidarmos da Constituinte, obrigação que nos cabe agora, cabe a todos os brasileiros, pois a democracia veio para ficar. Deus nos livre de recaídas. Precisamente por isso, creio eu, e já falamos tanto sobre o assunto, que a Assembléia Constituinte não pode con­trariar a vontade do povo expressa em plebiscito, ainda que tenha sido em 1963. Afinal, deputados e senadores eleitos pelo povo têm que respeitar a de­cisão de seus representados. Qual moral vão ter eles para falar dos militares, se derem um golpe para implantar o parlamentarismo?

O papo se esticou um pouco mais. Leônidas é um homem lúcido, sem­pre foi, de enorme paixão pelo Brasil, espírito público e enérgico. Não admite tipos que dizem uma coisa e fazem outra, que dizem e depois desdizem, que dão a palavra e não cumprem. Enfim, não tolera tipos como o então Depu­tado Bernardo Cabral.

— Ele me assegurou que, no projeto de Constituinte, o sistema de go­verno seria o presidencialismo. Agora vem com essa conversa de que o parla­mentarismo vai agradar aos militares, invocando o episódio de 1961, que a nova geração nem lembra como foi nem por que aconteceu. Cara-de-pau!

Acabamos a conversa, e o telefone tocou novamente. Era o Presidente me convocando para uma reunião à noite, no Palácio da Alvorada:

— Seremos somente nós dois — disse Sarney — e eles dois, o Cabral e o Fernando Henrique.

Prometi estar na exata hora marcada. E pensei comigo: hoje, a coisa vai ser uma batalha igual à de Tróia. Será pancadaria para todo lado. Por que pensei na guerra dos gregos e troianos? Primeiro, pensei nos gregos, que respeitavam e resolviam tudo por plebiscito. E segundo, por causa do cavalo. O projeto de Bernardo Cabral era precisamente o famoso cavalo, presente de grego, que ele queria empurrar para dentro de nossa democracia recém-conquistada. Mas nós não éramos troianos, nem eles contavam com Aquiles. No máximo, podiam contar com o Dr. Ulysses, mas mesmo ele não admitiria a adoção do parlamentarismo pela via maliciosa do embuste, ou, mais preci­samente, da “embusteirice”.

105

A reunião começou com amabilidades, generalidades e, como diria Guimarães Rosa, com muitas fingidades. Até que Bernardo Cabral, bem ao seu estilo, abriu a rodada, procurando seduzir Sarney:

— Presidente, nossa maior preocupação será preservar seu mandato de seis anos, mantendo o presidencialismo até o final dele. Pensamos em propor uma disposição transitória, para que o novo sistema de governo comece após a gestão de Vossa Excelência.

Sarney, sempre muito rápido no raciocínio, como todo nordestino poe­ta, retrucou:

— Meu caro deputado, o mandato nem é meu. É do saudoso Tancredo Neves. Vou cumpri-lo, porque assim me obriga a Constituição. Não tenho o menor interesse em saber como vocês pretendem lidar com esse assunto porque não é matéria da nova Constituição, já que está regulado e fixado na atual. O ponto de nossa discussão é o sistema parlamentarista que está no seu projeto, não me importando quando entrará em vigor.

— Mas foi aprovado pela maioria absoluta dos parlamentares da Co­missão de Sistematização — atalhou o Senador Fernando Henrique.

— Com 59 votos. E o plenário da Constituinte somente poderá der­rubar se conseguir maioria absoluta de 280 parlamentares — enfiei-me na conversa. — Vão ser precisos 280 votos para rejeitar aquilo que foi aprovado por 59 constituintes. Isso quer dizer que existe parlamentar constituinte valendo mais que outros.

— É muito diferente — afirmou Sarney — obrigar a Constituinte a reunir maioria absoluta para derrubar a proposta que já chega “aprovada” e a outra hipótese de aprová-la realmente com o voto da maioria absoluta do plenário.

— Dá na mesma — insistiu Fernando Henrique.

— Não senhor — contestou Sarney. — Se a proposta for a plenário sem a obrigação de derrubá-la, isto é, para ser aprovada por maioria absoluta, pode ser que não alcance o quorum e será considerada rejeitada. Na hipótese de vocês, repito, a proposta já entra aprovada, e a Assembléia terá que reunir a maioria absoluta para rejeitá-la. Isso não existe. Corre-se o risco de se deci­dir o destino do nosso país numa sexta-feira, quando é baixa a presença de congressistas em Brasília.

Bernardo Cabral estava encolhido, depois de ter visto que seu plano de sedução não funcionara. Agora, a conversa exigia argumentação nova, o que era demasiado para seu exercício cerebral.

Por ordem de Sarney, expliquei o efeito institucionalmente vinculante do plebiscito de 1963, quando o povo, consultado, optou pelo presidencialismo. Expliquei, em detalhes, as limitações de uma Constituinte derivada, muito diferente de uma Constituinte originária, que pode tudo e está vinculada ao movimento político da qual se originou, para criar uma nova ordem jurídica, enquanto a derivada está subordinada à ordem jurídica já existente e da qual derivou, para reformar e aperfeiçoar as instituições, e não substituí-las.

E ouvimos do Senador Fernando Henrique a seguinte e espantosa frase textual:

— Eu não entendo nada de Direito Constitucional, mas entendo de política.

Sarney, repentista maranhense, acrescentou:

— Pois eu entendo dos dois assuntos. Pelo Direito Constitucional, a atual Constituinte não pode alterar o sistema de governo. E, pela política, não irão conseguir. Tenho amigos no Congresso Nacional. Vocês não podem im­pedir-me de acioná-los, para evitar essa brincadeira de mau gosto que vocês querem fazer com o Brasil.

Virou-se especialmente para o Fernando Henrique e disse:

— Fernando Henrique, essa proposta que você está fazendo, de assegu­rar à Constituinte soberania plena, inclusive para praticar atos da competên­cia do Poder Executivo e anulá-los, significa que vamos ter um retrocesso, porque será grande o impasse que vocês vão criar: um sistema de governo que bagunça até o próprio parlamentarismo. O Brasil não agüentará tal deci­são. O que vocês querem é desestabilizar o governo atual, sem pensar no Bra­sil e nas conseqüências desse gesto. Estão legislando para este mês, e contra mim, não para o futuro e em favor do Brasil.

— Presidente — disse Fernando Henrique —, não seria ético o Execu­tivo interferir nos trabalhos soberanos da Assembléia Constituinte.

— Claro que não haverá interferência do Executivo como Poder insti­tuído. Estou falando em interferência minha, pessoal, como brasileiro que tem direito de postular dos constituintes a melhor Constituição para o nosso país. Agradeço a visita de vocês e espero que não fiquem agastados conosco.

Os dois saíram com mil sorrisos.

No dia seguinte, surgiu no Congresso a notícia de que a Constituinte reduziria o mandato de Sarney para quatro anos, como se o Supremo Tribu­nal estivesse fechado. Gente doida. A Constituição fixava em seis anos o man­dato do Presidente da República, e a Constituinte não poderia alterá-lo, por um motivo muito simples: todos os mandatos, inclusive os dos deputados e senadores, derivavam da Constituição então vigente, e, portanto, todas as instituições jurídicas da República eram derivadas, isto é, constituídas. A própria Constituinte era derivada. Não podia mexer, na essência, com os ou­tros Poderes, mas apenas disciplinar suas competências e atribuições, sem golpe de Estado. São questões de direito muito difíceis de serem entendidas ou ponderadas em ambiente de paixões políticas, que transformam os parla­mentos em zorra, caricatura da sempre sonhada casa das leis.



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