Código da Vida



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Dentre tantas histórias, uma aconteceu comigo. Sempre que podia, pas­sava férias no Nordeste. Maranhão, Pernambuco, Paraíba, Bahia. Na Paraíba, juntava-me aos cantadores repentistas, e um dia resolvemos promover um congresso de violeiros. Eurícledes Formiga, Severino Pinto, Oliveira de Pane­las, Otacílio Batista e outros. Era a comissão organizadora. Primeiro Con­gresso Brasileiro de Repentistas em João Pessoa. Fui eleito presidente da mesa julgadora.

Sucesso. Inscreveram-se cerca de cinqüenta cantadores vindos de vários estados. A cada dia, escolhíamos um grupo de vencedores, que continuava a disputa no dia seguinte. Valia desqualificar o repentista que cometesse um erro grosseiro durante a cantoria.

Chegou a vez de um cantador de Alagoas. Estava improvisando um “oito pés ao quadrão”. Visivelmente embriagado, o que era quase normal en­tre eles. Mas quebrou o pé do verso e errou a rima ao fechar a estrofe. Na mesa julgadora, ninguém disse um “pio”. Resolvi usar minha autoridade de presidente e desclassifiquei o violeiro.

Aplausos na platéia. Os demais e ilustres componentes da mesa, Formi­ga, Severino, Otacílio, mudos. Resolveram suspender os “trabalhos”. E me convidaram para uma reunião no fundo do palco. Salinha modesta, mas isolada.

— Você está maluco! — exclamou Formiga, com sua voz rouca e uma expressão de desespero nos olhos. — Esse cara que você desclassificou é o maior matador profissional das Alagoas. O homem tem mais de quinze mor­tes nas costas. É um perigo! A gente deve deixá-lo ir até o fim. Outros serão os vencedores, e tudo ficará bem. Mas desqualificá-lo agora pode acirrar o ódio dele, e todos nós estaremos ameaçados. E muito mais você, que nem é do Nordeste, é paulista.

Jamais poderia supor um problema desse tamanho e dessa espécie. Ma­tador? E profissional? Com mais de quinze mortes e solto por aí, cantando viola, participando de congresso de repentistas? Eta, Nordeste!

— Meus caros amigos, vou manter a decisão. Ele está desclassificado, e não há matador neste mundo que me faça voltar atrás — disse eu, resolvido — Nem por cima do meu cadáver! Tem mais: vou falar com ele. E é agora!

Tentaram me dissuadir. Mas resolvi enfrentar a situação. Do contrário, seria melhor me retirar do congresso e ir embora. Tudo muito divertido: a criatividade admirável daqueles artistas populares, as lindas poesias improvi­sadas, nossos menestréis do agreste. Mas medo de bandido não dava! Não por ser paulista, mas, sobretudo, por ser advogado.

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Saí, encontrei o indigitado, convidei-o para ir até a sala isolada no fundo do palco. Convidei-o a sentar-se. E, com o devido cuidado, comecei:

— Disseram-me que o senhor é das Alagoas, e ali tem como profissão algo não muito comum. Parece que o senhor é chegado a um contrato.78 E tem fama de muitos contratos já executados. Mais de quinze. É verdade?

— Vosmincê não é polícia, pois não? — perguntou ele, olhando para a porta de saída.

Senti que ele estava com mais medo de mim do que eu dele.

— Não. Sou advogado em São Paulo.

— São Paulo presta não, senhor doutor! Já estive lá, e por qualquer coi­sa a gente é preso. É um lugar apaideguado, mas se o vivente não tem astúcia dá com os burros n’água.

— Está bem. Mas eu quero saber, agora, se o senhor ficou com raiva de mim e vai usar dessa sua profissão para tirar a forra.

— Que profissão? — perguntou com ares de espanto.

— A profissão de sicário! — falei de vez, para encurtar a solução.

— Sei que é isso não! Sicário? Que diabo o seu doutor está dizendo, que disso nunca ouvi falar? Vosmincê, doutor advogado, fala difícil demais nessas modas jurídicas já desenganadas até pelos tribunais.

— Matador! Matador profissional, pago para executar a vontade do contratante.

— Doutor, Vosmincê está doido, me desculpe a expressão. Mas essas coisas, que dizem que eu faço, podem ser verdade, mas nem sempre são. O Vosmincê mesmo disse que me chamaram de profissional. Não que eu con­fesse que faço, mas se faço é pela raiva dos outros.

Senti um grande alívio e quase dei uma risada pela resposta, afinal en­graçada. Ele continuou:

— Não se amofine em razão de acontecidos de somenos. Não sou vigancista nem neste, nem noutros confins. O doutor é paulista, é um chegante na Paraíba e desconhece certas coisas. Disseram mais de quinze?

— Disseram.

— Não que eu seja de arrotar pabulagem, pois muito mais tenho feito das tais. Mas nenhunsíssima por motivo de malinações próprias e nem de maldade sem procedência. Aceitei acertar coisas erradas de mulher botadeira de chifre no marido, ou de moço novo fornicador de donzela virgem, dessas coisas que o vivente macho costuma fazer estragando o bom viver de família cristã.

— Mas você não sente nada? Executa e pronto? A consciência não dói?

— Não executo, não. Faço um furinho. Quem mata é Deus. Na medida em que vai crescendo o número de gente por Deus levada nessa minha obra de vivente carregado de precisão, o peso da cacunda aumenta. Um pouco também é da velhice, que mal faz piormente que a consciência.

Levantei-me, ele também, e saímos. Ao passar pela porta, virou-se e disse:

— O Vosmincê está certo. Eu errei na cantoria. Mereci ser desclassifi­cado. Tomei umas cangibrinas a mais, não que elas me derrubem, porque com as tais e com mais outras estou acostumado, mas hoje fiquei meio abestado. E coisa de somenos. Vosmincê não se amofine.

Chamei meus companheiros e comuniquei o diálogo. Apaziguaram-se os ânimos, e Formiga sugeriu que os sobreviventes, isto é, os componentes da mesa fossem tomar uma cachacinha, uma das tais, no bar Meu Cacete, em João Pessoa.



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Severino Pinto (Pinto de Monteiro), o maior repentista de todos os tempos na história das cantorias do Brasil, era o alvo das atenções. Em deter­minado instante, foi ao banheiro.

Voltou, e percebi que estava com a braguilha aberta, inteiramente desabo-toada. Brinquei com ele, ao acusar seu desleixo com o xará. Respondeu na hora:

— Logo se vê que paulista nada entende de Nordeste. Aqui, seu doutor, casa que tem defunto não fecha a porta.

Severino era um repentista fantástico. Um dia, na cidade dele, Montei­ro,79 o prefeito e os vereadores foram comunicar-lhe que haviam dado seu nome a uma das principais ruas da cidade.

— Uma rua? Agradeço muito, mas não precisava tanto. Bastava uma casa no meu nome.

Um dia, ele pelejava com um violeiro mais jovem, e ambos glosavam as costumeiras vantagens. Seu adversário atreveu-se:

“Isso foi quando era homem,

Quando você era macho;

Mas surgiu alguém mais novo,

Cortou o produto por baixo,

Jogou no meio da rua,

E o gato comeu o cacho.”

Severino bateu a viola e respondeu:

“Ofendido agora me acho

Por violeiro mau e bruto.

É verdade, ainda me lembro

Quando perdi o produto:

Sua mãe ficou tão triste

Que até hoje está de luto.”

O incorrigível Nordeste e seus violeiros fabulosos! Era comum a gente ouvir reclamações contra os flagelos que se abatem sobre eles em frases de maravilhoso bom humor:

— Aqui, doutor, é tão seco, tão seco, que sapo de cinco anos ainda não sabe nadar.

Ou observações irônicas sobre a pobreza:

— Por estas bandas, a pobreza é tanta, que o arco-íris é em branco e preto.



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Também na história judiciária, o Nordeste tem passagens fantásticas. Aproveito estar misturando casos em datas diferentes, para lembrar, sobre­tudo aos estudantes de Direito, uma das sentenças célebres proferidas pelo Judiciário do Sergipe em 1833.

Reprodução de documento autêntico de sentença proferida pelo juiz Manoel Fernandes dos Santos, em Vila de Porto da Folha, Sergipe, em 15 de outubro de 1833.

“SENTENÇA JUDICIAL:

O adjunto de promotor público, representando contra o cabra Manoel Duda, porque no dia 11 do mês de Nossa Senhora Sant’Ana, quando a mulher do Xico Bento ia para a fonte, já perto dela, o supracitado cabra, que estava de tocaia em uma moita de mato, sahiu della de supetão e fez proposta a dita mulher, por quem queria para coisa que não se pode trazer a lume, e como ella se recuzasse, o dito cabra abrafolou-se dela, deitou-a no chão, deixando as encomendas delia de fora e ao Deus dará. Elle não conseguiu matrimônio, porque ella gritou e veio em assucare delia Nocreto Correia e Norberto Barbosa, que prenderam o cujo em flagrante. Dizem as leises que duas testemunhas que assistam a qual­quer naufrágio do sucesso faz prova.

CONSIDERO: QUE o cabra Manoel Duda agrediu a mulher de Xico Bento para conxambrar com ella e fazer chumbregâncias, coisas que só marido delia competia conxambrar, porque casados pelo regime da Santa Igreja Cathólica Romana;

QUE o cabra Manoel Duda é um suplicante deboxado, que nunca soube respeitar as famílias de suas vizinhas, tanto que quiz também fazer conxambranas com a Quitéria e Clarinha, moças donzellas;

QUE Manoel Duda é um sujeito perigoso e que se não tiver uma cousa que atenue a perigança dele, amanhan está metendo medo até nos homens.

CONDENO o cabra Manoel Duda pelo malifício que fez à mulher do Xico Bento, a ser CAPADO, capadura que deverá ser feita a MACETE. A execução desta peça deverá ser feita na cadeia desta Villa. Nomeio car­rasco o carcereiro.

Cumpra-se e apregue-se editais nos lugares públicos.

Manoel Fernandes dos Santos Juiz de Direito Vila de Porto da Folha (Sergipe), 15 de outubro de 1833”.80

Não se espantem, nem julguem que o estilo seja originário do Nordeste brasileiro. Essas criatividades foram herdadas dos portugueses. Uma das mais curiosas sentenças judiciais lusitanas data de 1487, antes do descobrimento do Brasil. É condenatória de um padre namorador na cidade de Trancoso. Confiram:

“Padre Francisco da Costa, prior de Trancoso, de idade de 62 anos, será degredado de suas ordens e arrastado pelas ruas públicas nos rabos dos cavalos, esquartejado o seu corpo e postos os quartos, cabeça e mãos em diferentes distritos, pelo crime que foi arguido e que ele mesmo não contrariou, sendo acusado de ter dormido com 29 afilhadas e tendo de­las 97 filhas e 37 filhos. De cinco irmãs, teve 18 filhas; de nove comadres 38 filhos e 18 filhas; de sete amas teve 29 filhos e cinco filhas; de duas es­cravas teve 21 filhos e sete filhas; dormiu com uma tia, chamada Ana da Cunha, de quem teve três filhas, da própria mãe teve dois filhos. Total: 299, sendo 214 do sexo feminino e 85 do sexo masculino, tendo conce­bido em 53 mulheres.”

A pena não foi cumprida, porque El-Rei D. João II lhe perdoou a morte e o mandou pôr em liberdade aos 17 dias do mês de março de 1487 e guardar no Real Arquivo da Torre do Tombo esta sentença, devassa e mais papéis que formaram o processo.81

Dizem que estudar Direito, sobretudo a história do Judiciário, é uma atividade árida. Mas, quando se depara com uma sentença desse tipo, vale o sacrifício. Há, porém, algo intrigante nesses dois casos: as sentenças são engraçadíssimas, não há dúvida, pelo menos quando lidas agora; mas o fulcro do litígio é sempre o mesmo: as taras sexuais. No Brasil, o cabra Manoel Duda; em Portugal, o padre Francisco da Costa.

Nem tudo, no debate jurídico, é engraçado. Entre nós, quando se discute baixar a responsabilidade penal para dezesseis anos, dizem que não se deve legislar sob emoção. O Presidente Lula declarou que estão querendo prender até o feto. Liana Friedenbach, de dezesseis anos, foi estuprada e assassinada por uma gangue chefiada por um adolescente de dezesseis anos, conhecido como Champinha.

Akitero Nagao foi morto a tiros por um garoto de dezessete anos na Freguesia do Ó, em São Paulo.

Todos os dias aumenta o número de jovens envolvidos em crimes bár­baros. Se menores de dezoito anos, passarão apenas três internados na mentirinha socioeducativa. Suas vítimas ficarão mortas para sempre.

Quando Lula, comentando o caso do menino João Hélio Fernandes, defendeu para os menores de dezoito anos a prerrogativa de matar, lembrei-me de que o surto de criminosos adolescentes aumentou precisamente no seu governo. Ele não pode esquecer que esses garotos de dezesseis e dezessete anos tinham apenas dez e onze quando ele chegou a presidente. O que fez para evitar que eles crescessem modelados pelo diabo?82 Muitos discursos, tortu­rou a língua portuguesa, mas para a educação, nada! A educação no Brasil é considerada da pior qualidade, professores ganhando miséria, escolas sem infra-estrutura, métodos de ensino em plena desordem. Que pena! Cidadania pode ser uma palavra sonora no discurso demagógico, mas somente passa a existir quando seu conteúdo for a educação plena, um pouco mais do que o título de eleitor.

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Voltemos a Brasília. Lá vem mais um caso de grande relevância jurídica. Gostaria que os advogados novos soubessem dos detalhes. Claro que neste livro não posso contar todos os meus “acontecidos” profissionais. Ainda es­tou contido pelo dever ético do sigilo profissional e, na verdade, seria muito chato narrar milhares de lances em “juridiquês”. Mas aqueles ocorridos na vida pública, conto, porque alguns, como o próximo, são surpreendentes.

Seigo Tsuzuki era o Ministro da Saúde no Governo Sarney. Quando as­sumi o Ministério da Justiça, Seigo diariamente, bem cedinho, passava pela minha casa, na hora do café-da-manhã. Todo santo dia:

— Você pensou sobre o problema, apenas pensou? — cobrava ele educadamente.

— Seigo, desculpe. Não tem jeito. Em Direito, há um instituto chamado prescrição. Já se passaram cinqüenta anos. Os melhores advogados cuidaram do assunto, inclusive aquela fera do Kazuo Watanabe, jurista da maior com­petência. O Judiciário declarou prescrito o direito. Ponto final.

Seigo queria dar um jeito de devolver à colônia japonesa o Hospital Santa Cruz, em São Paulo, o qual, durante a Segunda Guerra Mundial, fora roubado pela ditadura de Getúlio Vargas. Pretexto: era propriedade de imi­grantes oriundos de um dos países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). A se­gurança nacional (sempre ela!) impunha que o hospital ficasse, primeiro, sob intervenção do Governo Federal durante a guerra. E, depois, foi devolvido aos sócios brasileiros que, de minoritários, passaram a ser os exclusivos proprietários.

Os japoneses sempre sonharam em pleitear de volta o hospital. Eles ti­nham verdadeira veneração pelo nosocômio, porque os equipamentos, de última geração na época, foram doados pelo Império nipônico. A própria imperatriz havia visitado o Brasil e comparecera ao hospital, para formalizar a doação, prestigiando a colônia japonesa. A própria imperatriz. Honra. Grande honra!

Tudo muito bonito, mas o tempo passou. Acabou a ditadura, voltou a democracia. A colônia japonesa pleiteou os direitos que lhe haviam sido truculentamente suprimidos. Mas já estavam prescritos.

Com Seigo Tsuzuki, médico do Incor, no Ministério da Saúde, os japo­neses de São Paulo e seus descendentes pressionavam o patrício para dar um jeito. Ele estava no Governo. Devia encontrar uma fórmula. E ele transferia a pressão para mim todos os dias, no café-da-manhã. Todo santo dia!

O assunto parecia um velho disco de vinil riscado. Provocava um pulo da agulha para trás e ficava repetindo sem parar o mesmo trecho da música.

— Você já pensou no assunto?

— Seigo, não há mais jeito! Passaram-se cinqüenta anos. Não somente os ex-proprietários não podem mais reclamar de nada, como também os novos donos, os brasileiros beneficiados pela ditadura Vargas, tiveram seus direitos consolidados com o passar do tempo. Para os japoneses, houve pres­crição extintiva; e, para os brasileiros, a prescrição aquisitiva.

— Mas eu quero que você apenas pense sobre o caso. Houve uma injus­tiça histórica. Não há um meio qualquer de reparar a injustiça?

Pergunta profundamente dolorosa. Quantas injustiças clamam por se­rem reparadas contra atos de violência jurídica praticada pela arbitrariedade, em períodos que eu chamo de patologia constitucional, mas que, na verdade, são ditaduras. As injustiças de Vargas, a entrega de Olga Benário para Hitler, a queima de safras de café confiscado aos lavradores. As injustiças do regime militar instaurado em 1964. Assassinatos por motivos políticos. Perseguição a empresas, como a Panair, roubada, assaltada, massacrada, por motivos igualmente políticos e para servir a um concorrente apadrinhado por meia dúzia de poderosos do momento. Os interrogatórios sem fim de Juscelino Kubitschek, o confisco de seus bens, as prisões de seus amigos, as torturas de jornalistas, intelectuais, o martírio de Graciliano Ramos, isso tudo misturado no caldeirão de nosso passado amargo e sem glória.

A todo esse quadro de trágicas injustiças, somava-se o Ministro Seigo, que vinha pedir pelo Hospital Santa Cruz, de São Paulo. Quando ele esgotava os pretextos para ir à minha casa, arrumava um amigo para me cumprimen­tar. Em geral, era o Deputado Diogo Nomura, simpático, amabilíssimo, e vi­nha com o mesmo e impossível pedido.

O Governo nada podia fazer. Somente a ditadura viola situações jurí­dicas consolidadas. Se o Judiciário e o Legislativo não podem, o Executivo muito menos.

Em todos os papéis que Seigo me trouxe para estudar, havia um detalhe: referência aos números dos decretos do tempo de Vargas e suas respectivas datas, mas não transcreviam seus textos. Apenas era informado que o primeiro decreto determinara a intervenção e que o segundo, tempos depois, suspendia o ato intervencionista e devolvia a propriedade do hospital aos sócios brasileiros. Alguém deve ter dado o nosso famoso “jeitinho”.

Quem lia as petições, os pareceres e as sentenças ficava sabendo o teor dos atos praticados, suas datas e seus efeitos. Mas não o texto. Afinal o que a ditadura escrevera?

Lembrei-me das lições do meu mestre, Vicente Ráo. Doutrina, pare­ceres, estudos, tudo é importante. Mas, primeiro, leia a lei. Advogado e jurista têm que ler a lei e somente depois estudar a opinião dos outros.

Mandei buscar os decretos originais. Não estavam, claro, no Ministério da Justiça em Brasília. Estavam no arquivo do Rio de Janeiro.

— Tirem cópias. Quero xerox dos originais imediatamente.

Vieram. Li. Bingo!

No segundo decreto, o texto suspendia a intervenção no Hospital Vera Cruz e devolvia sua propriedade aos sócios brasileiros. O datilógrafo da dita­dura cometera um erro imperdoável. O hospital chamava-se Santa Cruz.

Por ser um erro de redação de ato do Poder Executivo, o Governo pode­ria baixar novo decreto, corrigindo o equívoco. E o prazo de prescrição seria contado novamente. Diante disso, chamei os japoneses e os proprietários brasileiros. Informei que o Presidente da República concordava em baixar o decreto, para corrigir o nome do hospital e que esse ato devolveria aos japo­neses o direito, antes extinto, de reclamar perante o Judiciário a antiga expropriação da ditadura. Estaria afastada a prescrição.

Ouviram todos muito atentos. Os brasileiros pediram uma semana para tentar um acordo. Consultaram seus advogados e conferiram. Real­mente, o Presidente da República poderia baixar decreto, corrigindo o erro de redação, pois, afinal, aos brasileiros havia sido devolvido um hospital cha­mado “Vera Cruz”, que não existia.

Voltaram, na semana seguinte, com um acordo celebrado, assinado, sa­cramentado. Os japoneses reassumiam o hospital, comprometendo-se a tra­zer equipamentos modernos; os brasileiros ficavam com a minoria histórica. Todos ganhavam, sobretudo os doentes.

Caprichei na redação do decreto do Executivo. O artigo primeiro re­feria-se ao erro do decreto anterior e corrigia o nome do hospital. E acres­centei um artigo segundo, homologando o acordo entre os sócios, em função da “devolução” da propriedade aos seus antigos donos.

Hoje, o hospital ostenta na entrada uma grande placa de agradecimento ao Presidente José Sarney e ao seu Ministro da Justiça.

Seigo Tsuzuki exultou.

Passei a tomar meu café-da-manhã em paz.



162

Clotilde havia escalado dois de nossos estagiários, Luiz Carlos Monreal Escorei de Carvalho e Liliana Coury, eficientes e atentos a tudo, para discreta­mente fazerem plantão diante do cartório da Vara de Família, por onde tra­mitava o processo do Sr. Olavo Brás. Nada de ficar lá parados ou passar pelo cartório várias vezes, ostensivamente. Vigiar de longe, passar por lá apenas algumas vezes para perguntar sobre despachos, intimações, publicações. Es­tagiários podem abusar desse tipo de insistência. Os servidores do Judiciário sabem que eles se dedicam ao extremo no acompanhamento de processos, ou perdem o direito de estagiar nos bons escritórios.

Luiz Carlos Escorei e Liliana eram craques. Jeitosos, educados, acaba­ram conquistando os serventuários todos que lidavam com o processo do Sr. Olavo Brás, tal como faziam com os outros processos em outros cartórios.

Nessa função, acabaram descobrindo que um homem estranho, magro, alto, bem vestido, foi várias vezes ao cartório da vara e perguntou pelo pro­cesso. A atenção deles foi despertada porque não se tratava nem de estagiá­rio, nem de advogado da parte contrária. Estavam no balcão indagando a um escrevente sobre qualquer coisa do processo, quando o homem se encos­tou do lado deles e perguntou sobre o processo do Sr. Olavo Brás. Quase desmaiaram.

O homem surgiu do nada e passou a conversar com os escreventes so­bre o caso, a perguntar detalhes, a despeito das negativas dos funcionários, já que o processo corria em segredo de Justiça.

Mas tanto Escorei como Liliana acreditaram nos serventuários, amigos deles, quando afirmaram que nada disseram e nada mostraram ao homem que insistia em conhecer detalhes do processo.

Um dia, resolveram seguir a misteriosa figura, logo que o homem deixou o cartório da vara, depois de uma outra tentativa aparentemente frustrada de ler os autos do processo. Seguiram-no e verificaram que o misterioso personagem entrava em quase todos os cartórios do fórum, era bem recebido e festejado. Distribuía presentinhos, caixas de chocolate, frascos de perfume

Mas o que pretendia ele com o “nosso” processo?

Não conseguiram saber. Mas levantaram a ficha do personagem. Nome, endereço, locais que freqüentava, pessoas de cuja intimidade desfrutava, so­bretudo dos funcionários da Justiça.

E me entregaram.

Era caso para o Nerval investigar. Mas estava eu tão atribulado com ou­tros assuntos que, no primeiro momento, me esqueci de chamar meu colega e deixei as anotações dentro de uma pasta sobre minha mesa. Ali ficaram, e delas me esqueci.

Culpa do Roberto de Abreu Sodré, que chegou ao escritório naquele momento para um papo descontraído sobre um livro que planejava escrever. O ex-Governador era meu amigo havia muito tempo, e nossa amizade ainda mais se estreitou no Governo Sarney, quando fomos colegas de ministério. Ele costumava me cobrar: quando era Governador, foi a Brodowski inaugu­rar o Museu Cândido Portinari. Assim, como brodosquiano, eu lhe devia agradecimentos por essa atenção à minha terra.

E, por falar nisso, ele me fez viver um dos fatos mais curiosos dos meus atribulados dias de Brasília.

163

Roberto de Abreu Sodré, Ministro das Relações Exteriores, estava ao te­lefone. Atendi.

— Fizeram uma sacanagem com o Brasil! — gritou ele do outro lado da linha. — Sujaram nossa imagem na Europa! Essa coisa vai correr mundo.

— Que coisa?

— A reportagem de um jornalista francês. Filmou uma índia ianomâmi morrendo numa rede até o último suspiro. O filme passou inicialmente na Eurovisão. Agora todas as televisões da Europa estão reprisando. Somos uns monstros! Deixamos nossos índios morrerem de fome! E a índia era ido­sa. “Morreu como um passarinho!”, dizem os que assistiram à reportagem.

— Índio morrer de fome? — retruquei. — Isso não existe em lugar algum das nossas selvas. Há sempre uma fruta, um peixe, uma caça, uma folha qualquer que eles encontram para comer. Se a mulher era idosa, mais uma razão: índio não abandona os mais velhos. Se estava numa rede, somente po­dia estar na taba. Não havia ninguém por perto?

— Como vou saber? — gritava Sodré. — Não vi o filme! Fui informado pelo nosso embaixador em Paris.

— Consiga mais detalhes. Nome do jornalista. Qual a empresa respon­sável pela divulgação dessa farsa.

— Você acha que é farsa?

— Claro, meu amigo. Índio algum morre de fome, se viver no mato. No Brasil, somente os “protegidos” pelos órgãos governamentais, Funai, Funasa, correm o risco de desnutrição. Na Amazônia, ninguém passa fome. Os ianomâmis são de lá. Podemos convocar alguns produtores de televisão e elaborar uma demonstração disso. Usaremos como direito de resposta nas televisões européias.

— Está bem. Mas estou lhe telefonando por outra razão: o jornalista francês ainda está no Brasil. Você, agora no Ministério da Justiça, pode fazer alguma coisa para evitar outros estragos?

— Posso mandar prendê-lo.

— E suas convicções sobre a liberdade de imprensa, as mais absolutas que eu conheço?

— Nada tem a ver uma coisa com a outra. Se o jornalista filmou uma índia idosa morrendo, sem ninguém ao seu lado, se manteve ligada a filmadora até que a mulher expirasse, isso é crime: omissão de socorro, artigo 135 do Código Penal.

— O que diz o artigo? — Perguntou ele, já interessado na prisão do jornalista.

Peguei o Código Penal e li:

“Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pes­soal, a criança abandonada ou extraviada, ou a pessoa inválida ou fe­rida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:

Pena — detenção de um a seis meses, ou multa.”

— Só isso de pena para um filho-da-puta que não presta socorro nessas condições?! — gritou ele. Sodré, de quando em vez, não se continha: xingava feio e em voz alta.

— Há, no parágrafo único, uma agravante para o caso em que da omis­são de socorro resulta a morte. A pena é triplicada.

— De que vale isso? Seis meses vezes três, temos dezoito meses. É muito pouco para um crime tão grave.

Roberto Sodré, por causa de um jornalista francês, já estava revoltado contra o Código Penal Brasileiro. Era um ótimo sujeito. Havia sido Gover­nador de São Paulo durante a ditadura e abrigara, no Palácio do Governo alguns “subversivos” perseguidos pelos militares. Geraldo Vandré foi um deles.



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