Código da Vida



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Chegou o dia da audiência do meu cliente Olavo Brás. Embora não admitisse para os meus colegas e assistentes, tomei uma pequena dose de tranqüilizante, recomendada pelo médico para esses momentos. Previa horas de grandes emoções. Enfartado, fumante, carregado de problemas dos outros, que se tornavam meus, era prudente prevenir. Coronárias são traiçoeiras.

Tivemos alguns incidentes preliminares. A mulher chegou acompa­nhada pelos seus dois enormes seguranças, mantidas as características de sempre: óculos escuros dentro do prédio, paletó desabotoado, olhando para os lados. A mulher trazia as crianças, obedecendo à ordem do juiz. Seu advo­gado explicou que os guarda-costas destinavam-se a protegê-la de um possí­vel ataque do ex-marido, que estava ao meu lado e tranqüilo.

Comecei intrigando: falei com o juiz ser preciso conferir se os seguran­ças, que se encontravam no corredor, estavam armados. O juiz chamou um oficial de justiça, deu-lhe instruções. Os seguranças afirmaram ter porte de arma, o que facilitou muito as coisas. Eles foram postos para fora do fórum com as armas e seus respectivos portes.

Sobre uma mesinha, nos fundos da sala, vi vários embrulhos e uma bandeja com muitos copos. Não entendi. Meus assistentes estavam todos lá. Podiam presenciar a audiência, pois figuravam na procuração. Perguntei ao Nerval:

— Meu caro policial, que pacotes são aqueles e por que os copos? Va­mos ter festa?

— Coisa da Clotilde. Ela acha que a audiência vai demorar e trouxe um monte de sanduíches, além de doces, sorvetes e guaraná para as crianças. Combinou com uma funcionária do cartório, e guardaram na geladeira os guaranás e o sorvete.

Minha turma pensava em tudo. A audiência fora marcada para as 15 horas e, realmente, podia avançar noite adentro; avaliação correta, porque aconteceu exatamente isso.

Começamos com o depoimento pessoal da autora da ação, requerido, como sempre, sob pena de confessa; isto é, se não comparecesse, ou se recu­sasse a depor, tudo o que fora alegado contra ela passaria a ser considerado verdade. Mas ela compareceu e sentou-se. Caprichou no vestido e incorreu no mesmo erro de quase toda mulher grã-fina: cheia de jóias. O que pensam essas mulheres? Que audiência judicial é festa? Ou que o juiz vai se impres­sionar com ostentação de riqueza? Ou será porque elas se sentem mais segu­ras quando montam esses aparatos? Sabe lá Deus o que passa pela cabeça de pessoas assim. Bem, essa, que estava ali para depor, tinha uma justificativa plausível: era esquizofrênica paranóica.

O juiz fez as advertências de praxe, a obrigação de dizer a verdade, o que não adianta nada, porque a parte, seja autor ou réu, pode mentir à vontade em razão do direito constitucional que o protege de uma eventual auto-incriminação. Testemunha não pode mentir. Se o fizer, vai para a cadeia. Falso testemunho. Mas as partes, autor ou réu, mentem com grande desen­voltura, estimulados pela impunidade.

Às perguntas formuladas pelo próprio juiz, veio a primeira mentira: as crianças chegaram em casa contando o que acontecera no fim de semana, e, por isso, resolveu gravar tudo, pois achou gravíssimo. O Curador de Família não quis fazer perguntas. Foi a vez do advogado dela. Vieram as indagações com os costumeiros e macios toques de pó-de-arroz. As crianças gostam da senhora? Vão à escola? A senhora cuida de tudo para elas: saúde, educação, lazer etc.? Uma santa!

Chegou minha vez.

Comecei a interrogá-la dentro do procedimento brasileiro, antigo e quase ridículo. O advogado pergunta não ao depoente, mas ao juiz, e esse re­pete a pergunta ao interrogado, como se fosse um intérprete de língua estrangeira. Ou indefere a pergunta, quando a entende inconveniente. Alguns magistrados mais práticos evitam repetir a pergunta e viram-se para o de­poente, mandando responder. Nessa causa, o juiz era desses mais evoluídos e, depois da pergunta, apontava com o dedo para a depoente fazendo sinal para responder, o que significava também o deferimento.

— Quando a senhora realizou a gravação com seus filhos — comecei eu —, havia alguém por perto, alguém que testemunhou eles falarem o que falaram, ou que houvesse ajudado a senhora com o gravador?

— Não. Estávamos somente meus filhos e eu.

— Então a senhora sabe operar bem esses aparelhos de gravação. Dis­tingue bem os botões, como pausa, stop e play.

— É muito simples.

— A senhora está desquitada há mais de três anos. Durante esse tempo, as crianças visitaram o pai, passaram com ele os fins de semana, sem que a senhora tivesse notado nada de anormal no relacionamento deles?

— Tudo foi sempre muito normal. Somente naquele dia...

— Que dia?

— Doutor, o senhor está formulando pergunta diretamente à de­poente. Permita que ela conclua, para depois fazer suas indagações — adver­tiu-me o juiz.

— ...no dia da gravação, quando elas voltaram da visita muito nervo­sas, muito agitadas. Achei que algo de grave havia acontecido. Devagar e com bastante jeito, consegui que elas falassem. E me contaram tudo.

— E a senhora já tinha um gravador ali na hora, com fita virgem, bate­ria nova, esperando para gravar aquilo que a senhora não sabia que as crian­ças iam dizer?

Percebi que ela titubeou. E continuei com as perguntas diretas. O juiz fingiu ser assim que tudo funcionava.

— Não. Depois que elas falaram aquelas coisas chocantes, eu fui buscar o gravador para provar que o pai era um degenerado.

— Foi buscar o gravador onde?

— Com o meu vizinho, que tinha um aparelho. O filho dele grava mú­sicas. Pedi emprestado.

— O gravador e uma fita nova?

Ela olhou para o advogado, que ficou mudo, olhou para o juiz, que a mandou responder.

— O gravador e uma fita nova.

— Mas era domingo, não era, o dia em que seu ex-marido devolveu as crianças no fim daquela semana?

— Era.


— E seu vizinho estava em casa?

— Estava.

— Como ele se chama?

— Percival.

— A senhora sabe que nós podemos convocar seu vizinho a depor como testemunha referida?

— Não, senhor.

— Pois podemos. A senhora cuide, portanto, de nos dizer toda a ver­dade, pois, se ficar qualquer dúvida sobre esse ponto, nós vamos ouvir seu vi­zinho. Percival, não é?

— É.


O juiz interrompeu a minha festa e com uma habilidade pouco usual nas lides forenses. Reduziu a termo todo o diálogo até aquele ponto. Reduzir a termo quer dizer ditar para o escrivão datilografar tudo o que foi falado, perguntado e respondido. Resulta um documento que as partes assinam no final. A redução a termo de cada resposta a cada pergunta, como é mais comum, acaba com a dinâmica do interrogatório. Dá tempo de o mentiroso pensar na próxima resposta ou, quando não é mentiroso, acalmar-se depois de uma pergunta embaraçosa. Mas o processo brasileiro é assim. Não tem jeito. Salvo no caso de um magistrado evoluído e preocupado com a busca da verdade.

— Prossiga, doutor!

— Então, no domingo à noite, a senhora foi à casa do senhor Percival pedir emprestado o gravador do filho dele?

— Eu me confundi. Confesso que eu estava muito traumatizada e ner­vosa, como estou agora. Foi no dia seguinte. Na segunda-feira. No domingo, nem sabia o que fazer. Contei o caso para uma amiga, e ela me aconselhou a fazer uma gravação com as crianças. Agora me lembro. No dia seguinte, pedi o gravador emprestado.

O juiz interrompeu e reduziu a termo esse trecho. E, por conta dele, perguntou:

— A senhora foi buscar o gravador de manhã, à tarde ou à noite?

— Logo de manhã.

— E a gravação foi realizada de manhã?

— Foi.

A mentira tornou-se clara. Ninguém poderia confundir o momento de uma gravação de fatos tão graves acontecidos com os próprios filhos, sobre­tudo confundir noite com manhã, o dia da chegada das crianças e o dia se­guinte. O juiz devolveu-me a palavra:



— Diga-me, senhora, um detalhe sobre a forma como foi gravada essa fita. A senhora foi perguntando, e as crianças respondiam sem interrupção? As respostas eram espontâneas depois de cada uma das perguntas?

— Já havíamos conversado sobre o assunto. Elas já tinham me falado tudo. Quando resolvi fazer a gravação, elas foram respondendo às perguntas, contando o que já haviam me informado.

— Claro, claro. Mas o que desejo saber é se a gravação foi seguida. Em nenhum instante a senhora parou de gravar para ir tomar água, ou para as crianças se lembrarem melhor de algum detalhe diante de cada pergunta?

— Não. Fui perguntando, e elas foram respondendo.

Estranhei o advogado dela não a ter avisado sobre as conclusões do lau­do pericial.

— Minha senhora, solicito que preste bem atenção. A fita que a senhora gravou e que está nos autos foi submetida a uma perícia técnica. Todos os pe­ritos afirmam que, depois de cada pergunta formulada pela senhora, foi apertada a tecla stop, interrompendo a gravação. Isso nos fez concluir que a senhora ditava as respostas às crianças. Essa é a conclusão do laudo.

— É? Eu não sabia — disse ela, com um olhar de socorro para seu ad­vogado. — Os peritos se enganaram — arrematou com uma expressão de pânico, que infelizmente não é registrada nos autos.

Resolvi dar uma desviada rápida no meu interrogatório.

— A senhora vai muito ao Guarujá? — perguntei, saindo do assunto.

— No verão — respondeu ela, sem saber o que pretendia eu com aque­le desvio.

— No Guarujá, a senhora freqüenta o Clube da Chave?

A mulher ficou pálida. Todos percebemos que levou um choque, tal a lividez de seu rosto. Controlou-se e respondeu:

— Não sei do que o senhor está falando. Nunca ouvi falar desse clube.

— Qual o nome de sua amiga que a aconselhou a gravar essa história com as crianças?

Aí o advogado dela interveio:

— Doutor juiz, desejo impugnar essa pergunta. Envolve pessoa estra­nha aos fatos aqui debatidos. O que nos interessa é a gravação, e não o nome de alguém que teve a idéia de sugeri-la.

Resolvi impugnar a impugnação:

— O colega me perdoe, mas a depoente não sabe se efetuou a gravação no dia em que as crianças chegaram, corrigiu-se, admitiu ter sido no dia se­guinte, mas informou que tomou a providência a conselho de uma amiga. A defesa tem o direito de saber o dia em que o conselho foi dado, pois ficare­mos sabendo quando a autora informou sua amiga dos fatos aqui debatidos.

O juiz deferiu a pergunta, e a mulher respondeu:

— Manoelita Gomes.

— A senhora, por gentileza, informe-nos o endereço dessa sua amiga.

Informou.

— A senhora contratou guarda-costas, é verdade?

— É.


— Por quê?

— Tenho medo de sofrer agressão por parte de meu ex-marido.

— Um de seus guarda-costas esteve, há pouco tempo, nesse endereço — mostrei-lhe um papel com o nome da rua e o número da casa, aquela da porta marrom em Santo Amaro. — A senhora sabe por quê?

— Não.


— Nesse local, a polícia encontrou depois um antro de exploração da prostituição infantil. O que desejava seu guarda-costas naquele endereço?

Ela, nesse momento, não mostrou nenhuma perturbação e foi inteli­gente na resposta:

— Ora, doutor. Meu guarda-costas pode fazer o que quer, quando não está trabalhando para mim. Peço desculpas, mas essa sua curiosidade nada tem a ver com o meu caso.

Tinha razão na aparência. Mas ela ficou sabendo que eu sabia...

Não fiz mais perguntas. Ela saiu. O advogado acompanhou-a até a porta.

Notei que o Dr. Nerval saiu da sala. Perguntei a Clotilde:

— O que aconteceu?

— Ele saiu disparado atrás desse Percival — respondeu ela — E disse que, antes, passaria pelo escritório, para pegar um gravador.

Minha equipe era excelente.

195

Chegou a vez do depoimento do Sr. Olavo Brás.

Ao contrário de todo o tempo que o conhecera, ele estava com a expres­são de suprema felicidade. Havia visto, abraçado e beijado os filhos no corre­dor do fórum. Há muita ironia nas tramas do destino. Aquele homem estava prestes a sentar-se diante de um juiz e de um curador de família, de advo­gados, numa audiência judicial que poderia arruinar sua vida e sua reputação como pai. E estava feliz. Seus olhos brilhavam. Cumprimentou a todos, como se quisesse dizer “obrigado”. Ia sentar-se na cadeira errada, e o conduzi para o lugar dos depoentes, bem defronte e perto da mesa do juiz.

— Sr. Olavo Brás — começou o magistrado. — Creio que o senhor esteja bem a par das acusações que lhe foram feitas. Acusações graves. Prá­ticas libidinosas com os próprios filhos. Atos obscenos e revoltantes. O se­nhor admite que sejam verdadeiras?

— Não, senhor juiz! Pelo amor de Deus! São mentirosas! São falsas!

— Mas foram seus próprios filhos que falaram sobre a prática daqueles atos, e suas vozes estão gravadas na prova da acusação, a fita que eu mesmo permiti que o senhor ouvisse.

— Aí está a tragédia, senhor juiz — disse ele, com a maior firmeza. — Minhas crianças nem sequer sabiam da existência dessas coisas. A menina tem sete anos, o menino tem nove. Nessas idades, em plena infância, não po­dem saber da existência de sexo oral. E das outras barbaridades que foram levadas a dizer.

— Foram levadas a dizer?!

— Claro que foram! Não podiam conhecer nada daquilo. Foram obri­gadas a falar aquelas barbaridades e ficaram conhecendo a existência dessas coisas. Houve uma violência contra a inocência de meus filhos. Isso me pôs em pânico, mais que a acusação contra mim.

— Por quê? — perguntou o magistrado

— Porque as crianças perderam a pureza de suas infâncias de forma terrível, ao serem obrigadas a descrever obscenidades e, ainda por cima, pra­ticadas com o pai. Qual será a extensão do estrago moral que isso lhes cau­sará? Essa é minha preocupação!

Ele foi perfeito, mesmo porque o discurso era sincero, arrasador, saído do fundo de sua alma. O juiz olhou para o curador, e esse respondeu com um leve sorriso, indicando acreditar na resposta.

Passada a palavra a mim, declinei de fazer perguntas. Achei que, nas res­postas ao juiz, o Sr. Olavo Brás havia demonstrado uma coerência sólida. Não apenas pela lógica de sua preocupação, mas porque sua conclusão de­monstrava amor e responsabilidade pela infância dos filhos. Preferi não usar do direito de perguntar. Podia estragar o que já havia sido demonstrado e re­duzido a termo com absoluta fidelidade pelo magistrado.

Foi a vez do advogado da mulher:

— Sr. Olavo, ao afirmar que as crianças foram levadas a falar, o senhor insinua que foi a mãe delas quem fez isso?

— Insinuo, não, doutor! Afirmo. Minha ex-mulher forçou as crianças a dizerem o que disseram.

— E qual a razão para a própria mãe fazer tal coisa, se ela deve amar os filhos tanto quanto o senhor?

— Ódio, vingança, loucura.

— Qual seria a razão do ódio e da vingança?

— A loucura.

— O senhor acha que sua ex-mulher é louca?

— Tenho certeza, doutor.

— Por que não tomou providências para tratá-la, em vez de separar-se dela; e, na separação amigável, concordou com que ela ficasse com a guarda das crianças? Se o senhor se afastou de seu lar, manteve o regime de visitas por tanto tempo, deixando as crianças com sua mulher, não podia considerá-la doente mental. Ou isso somente agora lhe ocorreu, depois das acusações das próprias crianças?

Pergunta bem articulada. Mas o Sr. Olavo Brás foi firme:

— O senhor tem razão em observar que, na separação, concordei com que ela ficasse com a guarda das crianças. Esse foi meu erro. Pensei que a lou­cura da minha ex-mulher havia sido curada, ou estava em processo de cura.

— Por quê?

— Porque, antes da separação, eu contratara uma psiquiatra para o tra­tamento. A então minha mulher concordou e passou a ter sessões seguidas de terapia. Deu-me a impressão de que estava bem melhor, quando resolvemos assinar a separação judicial, que foi amigável.

— E por que se separaram?

— Por motivos muito particulares. Não gostaria de dizer.

O colega foi amável. Não insistiu no ponto. Mas continuou:

— Julgando que sua ex-mulher estava melhor, o senhor concordou com a separação consensual, ou o senhor a propôs?

— Concordei. O pedido partiu dela.

— Não lhe ocorreu que seria uma temeridade deixar seus filhos com uma pessoa que o senhor considerava louca? — alfinetou novamente o advogado.

— Claro que pensei nisso. Mas somente em desquite litigioso poderia obter a guarda dos meus filhos. Tive medo dos traumas, sobretudo nas crian­ças. Naquele momento, minha ex-mulher realmente parecia em processo de cura, e o litígio judicial poderia pôr tudo a perder. Minha esperança susten­tava-se em razões que me pareciam fundadas: meus filhos poderiam conviver com a mãe mais equilibrada, desde que submetida a tratamento.

O interrogatório estava desvirtuando-se para um debate fora do objeti­vo judicial de fixar os fatos a serem julgados. Parecia um concurso de orado­res. Como meu cliente estava levando vantagem sobre o advogado, fiquei quieto. O juiz não interveio. Tudo bem.

— O senhor parece muito seguro sobre suas opções — observou o cau­sídico, caindo na tentação de debater com o depoente, desviando-se da obje­tividade de interrogá-lo. — Mas não estou convencido dessa história toda. É verdade que contratou médica psiquiatra para cuidar de sua ex-mulher. Nós sabemos disso. A doutora, inclusive, prestou depoimento neste processo. O que me intriga é sua conduta posterior. A despeito do problema médico, so­mente agora o senhor acusa de loucura a mãe de seus filhos.

— O que ela fez, doutor, é uma loucura evidente! — gritou o Sr. Olavo Brás.

— Ou a loucura foi sua de praticar aqueles atos com seus filhos? — dis­parou o advogado.

A essa altura, interrompi:

— Senhor juiz, solicito de Vossa Excelência que peça ao nobre colega o obséquio de seguir as regras do processo oral. Em vez de bate-boca com o in­terrogando, que formule as perguntas a Vossa Excelência. E quero protestar contra a afirmação de que meu cliente praticou os atos de que foi acusado nessa conversa de acusação recíproca de loucura dos dois lados.

O juiz ponderou que estava dando ao advogado o mesmo direito que me assegurara: o de perguntas diretas. Mas não reduziria a termo a última afirmação do advogado, porque, realmente, tinha a forma de pergunta, mas era uma opinião do defensor da autora. E virou-se para o advogado:

— Doutor, peço-lhe o favor de não confrontar o depoente. Pergunte o que quiser. Tenho o máximo interesse em conhecer toda a verdade, exposta ou oculta, deste caso. O desvio do que tecnicamente consideramos o fulcro da questão pode conduzir à revelação de fatos inesperados. Por isso, admito esse descarrilamento das regras processuais. Mas apelo para o advogado não passar disso e evitar essa espécie de pugilismo com o depoente. O senhor está com a palavra.

— Excelência — insistiu o causídico —, é necessário que o réu explique com clareza por que somente agora, depois de acusado, invocou a loucura de sua ex-mulher? Durante o casamento, contratou psiquiatra, mas, durante a separação, quando queria ou esperava que minha cliente estivesse equili­brada, como diz, nada fez nesse sentido e veio com essa acusação de doença mental agora, depois que as crianças denunciaram sua censurável conduta. Quero que ele explique isso.

— Porque sua cliente, doutor — respondeu sem hesitação o Sr. Olavo Brás —, comprometeu-se comigo, quando concordei com o desquite amigá­vel, que continuaria com o tratamento médico. Mas interrompeu e faz tem­po. Deu no que deu, o senhor me desculpe.

— O senhor afirma que ela se comprometeu a continuar o tratamento, que é caro, muito dispendioso. Talvez não tenha suportado os custos finan­ceiros. Por que o senhor não fez constar das cláusulas da separação a obri­gação de a mulher continuar se tratando e o senhor assumindo os custos?

— Mas constou, doutor. Está entre as cláusulas do desquite. Do contrá­rio, eu não teria assinado a separação.

Foi fulminante. É terrível o advogado não ler com atenção os documen­tos que manuseia, e nos mínimos detalhes. A cópia do documento da separa­ção consensual, que meu cliente ainda chamava de desquite, pelos longos anos de costume popular com a antiga expressão, fora juntada pelo próprio advogado. Na inicial do pedido de suspensão do direito de visitas, teve que juntar o documento indispensável para demonstrar as condições da sepa­ração. Creio que apenas leu o fixado para as visitas e as saídas do fim de semana. Mais nada.

O juiz abriu os autos, folheou o documento e bateu na cláusula:

— Doutor, está aqui, cláusula oitava das obrigações recíprocas: “A separanda mulher obriga-se a continuar seu tratamento médico com a Doutora A.M.D., assumindo o separando varão as respectivas despesas, independen­temente das pensões alimentícias fixadas na cláusula sexta”.

— Não tenho mais perguntas — concluiu o advogado, inteiramente desconcertado.

O juiz suspendeu os trabalhos por quinze minutos, antes de começar­mos a ouvir as testemunhas. Aproveitamos todos para ir ao banheiro, um de cada vez, educadamente. Depois, com meus assistentes, comentei o mau gosto do advogado, que escrevera “separando varão”. Horrível! Ainda bem que não utilizou a expressão no feminino, “separanda varoa”, que muitos causídicos, de antiquada linguagem, ainda teimavam em usar. Aliás, na ter­minologia forense, há complicações absolutamente desnecessárias. Por exem­plo: usamos a expressão “cônjuge supérstite”, quando simplesmente podíamos dizer viúvo ou viúva.

196

Durante o intervalo nos trabalhos, verifiquei que o Curador de Família conversou longamente com a mãe das crianças e, depois, com o Sr. Olavo Brás. Pouco usual. Estava, claro, fazendo uma diligência por sua conta, sem a participação dos advogados. Era um homem inegavelmente inteligente, afável, e, sob o ponto de vista profissional, um dos melhores membros do Mi­nistério Público de São Paulo, assim reconhecido pelos seus colegas, pelos advogados que o conheciam e pelos juizes.

Aproveitou o “recesso” da audiência, para buscar, à sua maneira, a ver­dade, ou alguns pedaços da verdade, que poderia colher com as próprias pes­soas envolvidas naquele drama de família. Sempre esteve ao lado da tese do juiz: o direito que importa defender é o das crianças. Os direitos da mãe e do pai são secundários, salvo, é claro, o direito de defesa do acusado de prá­tica de imoralidades com os próprios filhos.

Passamos a ouvir as testemunhas.

Nada de muito útil. Nem convém descrever os depoimentos em deta­lhes. As da autora, como esperado, elogiando a mulher, informando que sou­beram do fato pela forma clássica de quem não sabe nada, isto é, “por ouvir dizer”. Diante da pergunta “quem disse?”, a resposta é sempre a mesma: a parte interessada. As testemunhas do réu foram mais de canonização, elogios so­bre o conceito moral do empresário, vida correta, reputação ilibada.

Quando redigi o rol de testemunhas a serem ouvidas em audiência, tive uma inspiração: não inclui duas, que o Nerval havia conseguido com a firme promessa de que diriam, a primeira, o que era o Clube da Chave no Guarujá, e a segunda, que vira a mulher entrando naquela clandestina organização de farra. Tumultuaria a audiência, sem qualquer utilidade para a defesa.

No fundo, estava eu, depois de ouvir a psiquiatra, preocupado com a mãe das crianças, a despeito de ser tecnicamente minha adversária. Afinal, era uma doente grave. Diante disso, cumpre-nos enfrentar o problema sob a ótica médica. Não agredir o doente e, por mais incrível que pareça, procurar ajudá-lo a encontrar a luz no fim do túnel, embora a esquizofrenia paranóide seja um túnel sem fim e com muito pouca possibilidade de luz.

Terminados os depoimentos das testemunhas (ou a “oitiva”, como dizia o Nerval com seu vocabulário de polícia), o juiz anunciou que ouviria as crianças. Suspendeu mais uma vez os trabalhos. Já passava das sete horas da noite. Pai e mãe ficaram no corredor. Calmos. Pai conversando com as crianças e mãe comportando-se com serenidade, apesar de sua grave doença.



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