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Gervásio parou de esbravejar. Tomou um daqueles fôlegos bem respirados e prosseguiu:
— Arnaldo Jabor, que gosta de ser cineasta, na verdade é um grande cronista, escritor, dentre os melhores da nova geração. Tem a cabeça bem arrumada. E penteada. Mas é ingênuo. Escrevendo sobre os parlamentares brasileiros perguntou:
“... será que esses caras aí na CPI nunca leram Eça de Queiroz? Ninguém leu Rabelais, ninguém viu Daumier, Hoggarth, Goya, ninguém leu Balzac, Flaubert, Swift? Não. Nada. O Brasileiro navega tranqüilo, intocado em sua vaidade estúpida. E os corruptos, em sua impávida sordidez.”117
— Que esperava o ingênuo Jabor? Talvez que um Delúbio Soares tivesse lido a Bíblia? Não leu sequer as poesias de Bocage. Aprendeu a ler nas entrelinhas, e o único livro que degusta é o talão de cheques, quando por outros emitidos. Mas Jabor teve a genial idéia de transcrever um trecho de “As farpas”, de Eça de Queiroz, sob medida para a atualidade de nosso país:
“O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Não há princípio que não seja desmentido nem instituição que não seja escarnecida. Já não se crê na honestidade dos homens públicos. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os servidores públicos abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas idéias aumenta a cada dia. A ruína econômica cresce, cresce, cresce... A agiotagem explora o juro. A ignorância pesa sobre o povo como um nevoeiro. O número das escolas é dramático. A intriga política alastra-se por sobre a sonolência enfastiada do país. Não é uma existência; é uma expiação. Diz-se por toda a parte: o país está perdido!”
— Lembra Jabor que Eça escreveu isso em 1871. Como, então, pode indignar-se porque nossos parlamentares não leram a farpa, que hoje seria míssil, se do grande escritor português não há um único livro nas estantes de Delúbio Soares? Exigência descabida.
Resolvi intervir:
— Não pretendo dar razão a Lula, mas esses males são tradicionais no Brasil. Já em 1917, em prefácio a Lendas e tradições brasileiras, livro de Affonso Arinos, o nosso grande poeta parnasiano Olavo Bilac escreveu:
“Affonso Arinos resumiu, com precisão cruel, os males que nos adoecem e nos envergonham: a dispersão dos bons esforços; o desamparo do povo do interior, dócil e resignado, roído de epidemias e de impostos; a falta de ensino; a desorganização administrativa; a incompetência econômica; a insuficiência; a ignorância petulante e egoísta dos que governam este imenso território, em que ainda não existe nação.”
Era o começo do século passado. Mudou o Brasil ou mudou o Natal?
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Nessas circunstâncias, lembrei-me de Luiz Carlos Mendonça de Barros, ministro de Fernando Henrique, que, ao negociar as privatizações das estatais brasileiras, disse, ao seu interlocutor norte-americano interessado na nossa telefonia, que nós todos somos babacas.
O estilo é o próprio homem. A frase, mais lembrada do que o autor, é de Buffon, escritor francês que viveu de 1707 a 1788.
É verdade. Somos todos babacas. Inclusive Gervásio e Arnaldo Jabor. No primeiro período do Governo Lula, o espetáculo de mediocridade foi completo no governo e na oposição (exceções feitas a alguns, tanto de um lado, como de outro, mas poucas, muito poucas). Gervásio comentou esse desesperado vácuo de capacidades, lembrando Fernando Pessoa.
Isto, além de revelar a tendência para ter opiniões sobre qualquer assunto, que é um dos estigmas psíquicos de degenerescência, mostra, paralelamente, o hábito mental de não ter idéias e expor ao público as idéias que se não tem.
“Que caráter têm as idéias conforme expostas numa conversa usual.
São perfeitamente nítidas? Não o são. Tanto o não são que as discussões são geralmente intermináveis, sendo apenas modos de dois ou mais indivíduos levarem muito tempo a chegar a perceber118 que não se percebem uns aos outros, algumas vezes que não se percebem a si próprios, raras e ilustres vezes que não percebem nada.”119
Desculpem mencionar literatura tão elevada e tão bem escrita. Para compensar e voltar ao nível da realidade brasileira de hoje citarei um comentário de Lula para sua Ministra do Meio Ambiente, a Sra. Marina Silva, a propósito da transposição do Rio São Francisco:
“Marina, essa coisa de meio ambiente é igual um exame de próstata: não dá para ficar virgem toda a vida. Uma hora eles vão ter que enfiar o dedo no cu da gente. Então, companheira, se é para enfiar, é melhor que enfiem logo.”120
Grandes momentos da literatura na língua portuguesa: Fernando Pessoa e Luiz Ignácio Lula da Silva.
— Inácio, sem “g” — gritou Gervásio enfurecido. — O “G” é um ponto que ele reservou para Bush.
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De repente, Gervásio desviou o assunto para o assassinato de Celso Daniel, ex-Prefeito de Santo André, seqüestrado, torturado e morto por um grupo de bandidos, um deles “extraído” da penitenciária para a execução do crime. E de helicóptero. Tive a sensação de estar ouvindo um texto de Simenon ou de Agatha Christie.
— O prefeito janta num restaurante com um antigo segurança que passou a fazer negócios na Prefeitura. Ambos saem de carro, o amigo dirigindo. São interceptados, o veículo pára e destrava as portas por defeito de fábrica. O Prefeito é arrancado de dentro do carro e aparece morto, dias depois, vestindo outra roupa. A polícia não apurou nada.
— Apurou, sim — protestei. — Concluiu tratar-se de crime comum. Foi resultado de um assalto praticado por uma quadrilha da favela Pantanal.
— Mas essa quadrilha foi contratada para matar o Prefeito. Entre os mandantes e a quadrilha atuou, como intermediário, o meliante Dionízio de Aquino Severo, aquele extraído da penitenciária e de helicóptero para esse serviço. O sujeito não teve sequer chance de receber a paga. Foi morto quando estava detido no interior de um presídio em Guarulhos. Veja que facilidade: mata-se dentro do presídio. Somente o poder político consegue tal façanha. E tem mais.
— Meu Deus, Gervásio, você virou detetive ou vai escrever romance policial?
— Precisa ser detetive para ver o óbvio ululante? — retorquiu ele. — O bandido assassinado, enquanto esteve foragido, escondeu-se no apartamento de outro criminoso, Manoel Severino Estevam, vulgo Sérgio Orelha. Logo em seguida ao seqüestro do prefeito. Passou uns dias escondido na casa do comparsa. E, claro, conversou com o colega longamente sobre o caso.
— E daí? — perguntei.
— Acontece que o comparsa alguns meses depois também foi assassinado a tiros. O garçom do restaurante Rubayat, Antônio Palácio de Oliveira, que serviu Daniel, no seu último jantar antes do seqüestro, e que pode ter ouvido conversas entre o Prefeito e seu ex-segurança, sofreu um assalto e foi morto. O assalto teve uma testemunha, que ia descrever para a polícia como eram os assaltantes. Antes de depor, a testemunha foi morta com um tiro nas costas. A polícia não sabe quem matou.
— Espera um pouco — observei —, tudo isso pode ter sido coincidência.
— Coincidência? Você acredita em Papai Noel viajando num trenó puxado por oito renas voadoras e chifrudas? O investigador de polícia, que conhecia bem o bandido Dionízio Severo, aquele que fugiu da penitenciária de helicóptero, sabia de muita coisa. Chamava-se Otávio Mercier e recebeu telefonema de Severo um dia antes do bandido evadir-se e dois dias antes do seqüestro do Daniel. O policial foi morto ao perseguir dois homens que teriam roubado sua casa. Essa história de morrer na perseguição é verdade? Todos que de alguma forma estiveram ligados ao caso do seqüestro do Prefeito morreram de maneira um tanto quanto misteriosa. Até o cara que identificou o corpo de Daniel, abandonado numa estrada de terra em Juquitiba, devia ter alguma coisa para dizer. Foi assassinado com dois tiros. Então, o que você me diz?
— O trenó do Papai Noel é puxado por nove renas e não por oito.121
— Obrigado pela informação cultural. Agora, há pouco tempo, morreu o médico-legista, que fez a necropsia do cadáver de Daniel e denunciou a tortura a que foi submetido antes de morrer. Na época, foi proibido de falar sobre isso. Depois que o Ministério Público reabriu o inquérito e os irmãos de Daniel começaram a contar muitas coisas sérias, o caso sofre uma reviravolta. E o legista morre. Dizem que foi uma gripe que se complicou e comprometeu seu coração. É possível, é possível. Quantas renas puxam o trenó do Papai Noel?
— Nove.
— Foram exatamente oito mortes de pessoas envolvidas com o seqüestro e assassinato de Daniel, Prefeito de Santo André, contando com a dele. O legista seria o oitavo. Mas a versão é miocardite causada por uma gripe mal curada, ou suicídio. Com a assassinato do Toninho do PT, Prefeito de Campinas, temos nove mortes nesse romance policial intrincado de nosso novo sistema político. As nove renas do Papai Noel. Meu caro, o poder político não tem limite. Veja: o chefe de Gabinete do Lula, Gilberto Carvalho, é acusado pelos irmãos de Daniel de, na época em que trabalhava na Prefeitura de Santo André, levar dinheiro para José Dirceu. É gente que está no poder. Perigosíssima. Os irmãos do Prefeito assassinado, Bruno e João Francisco Daniel, depuseram na chamada CPI dos Bingos, aquela que apurava fatos indeterminados, e contaram detalhes impressionantes sobre a corrupção do PT em Santo André. Resultado: ameaçados de morte, eles e suas família tiveram que sair do país e fugiram para lugares onde esperam não ser encontrados. Nós fomos transformados numa república de muitos horrores. Os ameaçados que se mudem.
— Nos romances policiais — lembrei-me de dizer para brincar com Gervásio —, os assassinos são sempre os mordomos. E nunca o pessoal do Governo.
— Você gosta de brincar, mas passou perto. Essa gente toda que está no poder adora mordomias. E não é apenas no poder federal. Na Bahia, na santa terrinha, ao PT foi entregue a Secretaria Municipal da Saúde. A Subsecretária, companheira Alaé Souza, e Tânia Pedroso, que também prestava serviços à Secretaria e companheira petista de grande atividade, foram postas sob suspeita de mandarem matar Neylton Souto da Silveira. Ele era um humilde contador que descobriu desvio de verbas do Sistema Único de Saúde (SUS). A Prefeitura da capital baiana recebe 20 milhões de reais por mês. O cadáver do contabilista foi encontrado num depósito de lixo sem as calças, que provavelmente ficaram seguras na mão dos assassinos quando jogaram o corpo da vítima.
— Que coisa horrível. Mas isso é fato para noticiário policial. Não cabe nos seus comentários sobre a política nacional.
— Cabe, mano velho. Quero que você observe o estilo. Fernanda Karina, secretária que confirmou o mensalão distribuído por seu chefe Marcos Valério, teve o pai assassinado e ela própria, sob ameaça idêntica, pediu proteção e se escondeu. Em tão pouco tempo de poder são cadáveres em demasia. Não pretendo fazer trocadilho escatológico, mas o Brasil virou uma Chicago do tempo de Al Capone.122
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Gervásio estava impossível. Creio que se transformara em detetive ou em romancista:
— A viúva de Antônio da Costa Santos, Prefeito de Campinas, um dos assassinados, senhora Roseana Morais Garcia, disse que pediu a Lula uma investigação séria. Lula nada fez. Revoltada, ela declarou que no Brasil não existe democracia porque quem fere os interesses do crime organizado acaba eliminado sem defesa.123 E concluiu com dolorosa eloqüência: A luta neste país não é democrática, é na bala.
Atendeu o telefone celular, disse que estava muito ocupado e comunicou, à pessoa que ligou, que chamaria mais tarde. Não sei por que, mas queria continuar falando mal do Governo:
— No Brasil, não causam mais espanto as desculpas esfarrapadas de políticos quanto à corrupção que praticam. Já estamos nos acostumando com a repugnante impostura. Caixa dois? A gente finge que acredita. Recursos não escriturados? Faz parte do jogo de impunidade.
Sem tomar fôlego continuou:
— O PT tinha um secretário-geral, executivo, que recebeu de presente um carro de uma empresa fornecedora da Petrobrás. Ele se chamava Sílvio Pereira e, juntamente com José Genoíno, então presidente do partido, e José Dirceu, Ministro Chefe da Casa Civil de Lula, escolhia os asseclas para ocupar cargos nas diretorias das estatais, de onde se desviavam recursos por meio de negociatas, escandalosas umas, discretas outras. Mandava no Governo Lula. Com o escândalo do mensalão, escafedeu-se. Tempos depois deu uma entrevista a O Globo124 e confessou que o plano deles, sob o comando de Marcos Valério, era amealhar um bilhão de reais. Entre outras fontes, mencionou o banco Opportunity, de Daniel Dantas, que teria se recusado a pagar mais de cem milhões de reais em propina para o PT.125 Disse que quem mandava no PT eram Lula e José Dirceu, observando modestamente não estar à altura daquele time. De repente e em plena entrevista tem uma crise, pede para a jornalista, que o entrevistava, não publicar as declarações que acabara de fazer, rasga o bloco de notas da repórter e diz: “eles vão me matar”.
Gervásio mostrava estar em dia com a leitura dos jornais. Mas enveredou a conversa para conclusões próprias:
— Os irmãos de Celso Daniel tiveram razão em fugir do Brasil. Convocado a depor na CPI dos Bingos, Sílvio Pereira declarou estar perturbado da cabeça, não sabia distinguir ficção da realidade, que deu a entrevista, mas não deu como entrevista, que a jornalista não mentiu ao redigir suas declarações e que suas declarações eram inverídicas por sua própria natureza. Um “ora veja” fantástico. Ficou absolutamente claro para o país que a entrevista a O Globo foi apenas um recado. Ou acertam comigo ou eu falo o resto. Não falou.
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— Minha mãe nasceu analfabeta, costuma dizer Lula em seus discursos — comentou Gervásio. — Oratória barata. Aliás, para cativar o povo, ele chama a própria mãe de analfabeta depois de crescida. Também diz que seu pai era analfabeto. E conta que a mãe veio para São Paulo e encontrou o pai com outra mulher. Coisas de família, reveladas em público. Sujeito mal-educado. Grosseiro. Não há culpa em ser analfabeto. Não teve escola, não teve instrução, paciência. É um mal estrutural do Brasil. Mas o que ninguém merece engolir é a arrogância, a jactância de se dizer melhor que os outros, invocar-se como exemplo de moralidade e competência, cercado de delinqüentes e corruptos.
— Com a reeleição — observei —, os discursos de improviso aumentaram. Ninguém mais segura a falação.
— Não dá mais para agüentar essas coisas — continuou Gervásio. — Lula virou orador de banalidades e discursa todos os dias, falastrão de vulgaridades, incorrigível tagarela. Gosta de ouvir sua própria voz. Parece locutor de alto-falante em quermesse de feira irradiando corrida de jegues. Clovis Rossi costuma dizer que nunca neste país o fracasso teve tanta popularidade. Razão tem o Lima Duarte, quando o chamou de idiota, imbecil, ignorante, por fazer a toda hora apologia de não ter diploma, a glamorização da ignorância.
— Diga-me, Gervásio: por que toda essa raiva de Lula e seu Governo?
— Porque eles destruíram por muitos anos a combalida estrutura moral do Brasil. Já pensou em recuperar criminosos, ou em doutrinar jovens para não se dedicarem ao crime, com a televisão mostrando os milhões movimentados pelo Marcos Valério ou em superfaturamento de ambulâncias, em fraudes na compra de remédios para o Ministério da Saúde, ou em dinheiro escuso para comprar dossiês elaborados por bandidos, tudo em favor dos políticos da base do Governo, homens da intimidade do Presidente? É tarefa impossível convencer a juventude brasileira das vantagens de ser honesta.
— Realmente é um mau exemplo. Pode causar grandes estragos. Partindo da observação de Lima Duarte, o mais lamentável é que alguns participantes do Governo Lula converteram em critério da realidade a sua própria falta de cultura. Não todos, faço questão de deixar registrado.
— Não quero nem mencionar os inúmeros discursos que Lula fez se auto-elogiando e apregoando seu sucesso sem ter diploma, péssimo exemplo para a juventude levada a descrer das escolas e universidades.
— Mas ele declarou que com educação e saúde não se brinca. No novo governo nomeou bons ministros para essas pastas.
— Então pode-se brincar com o resto? Com a economia, a segurança, a agricultura? Minha revolta é com o fato concreto, dinheiro em malas, políticos sacando numerário em bocas de caixas de banco, dólares em cueca, compra de deputados, negociatas com superfaturamento de ambulâncias e remédios, tudo real e comprovado. Exemplos execráveis da corrupção sem disfarces esfregada na cara do povo, dos estudantes, dos professores, de muitos antigos petistas cheios de ideais, dos empresários, dos juízes, dos promotores, dos militares, dos agricultores, dos operários, de uma enorme multidão de gente honesta e que poderá envergonhar-se de ser honesta por ver triunfar a desfaçatez do roubo.
— Rui Barbosa.
— O que tem Rui Barbosa com isso?
— A frase. Essa sua conclusão é de Rui Barbosa.126 Veja que esta coisa vem de longe. Não é novidade do Governo Lula.
— Está enganado, meu caro. No Governo Lula, o mal foi feito fundo, porque a televisão levou tudo durantes dias e dias para dentro da casa de todos os brasileiros. O analfabeto ainda pode votar em Lula. Mas o filho do analfabeto está pensando em ser ladrão. Isso me dói. Lula é católico, diz ser. É devoto da Santa Ignorância. Diz que a corrupção no Brasil é um sistema e que continuará assim enquanto não houver reforma. É como se insinuasse: “enquanto não for implantada a legalidade ética, eu mesmo continuarei roubando e deixando roubar”. Por isso, o Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Eusébio Scheid, afirmou: “Lula não é um bom católico, é caótico!”.
Tomou outro fôlego e continuou:
— Na campanha eleitoral, o Arcebispo teve sua residência invadida e vistoriada por oficiais de justiça, cumprindo obra e graça do Judiciário do Rio de Janeiro, que quis impedir a liberdade religiosa, confundindo-a com partidarismo político. Jamais direi ter saudade dos militares. Mas não vejo grande diferença. Às vezes, a verdade é tão simples que até assusta.
— Acho que o Cardeal pegou muito pesado ao chamar o Presidente Lula de caótico. Você há de concordar comigo neste ponto.
— Concordar? — Gervásio fervia. — Veja a crise aérea que o caótico provocou no Brasil, com essa dependência sem solução do transporte aéreo, que por sua vez depende dos controladores de vôo, sargentos da Aeronáutica com direito à greve outorgada pelo governo do PT à custa de milhares de passageiros abandonados nos aeroportos, dormindo no chão, agredindo funcionários das companhias aéreas e por eles agredidos sem que uns e outros nada tivessem a ver com isso.
— Mas o Governo conseguiu fazer acordo com os controladores de vôo. É alguma coisa — ponderei, na esperança de evitar que Gervásio decolasse como sonhamos para nossos aviões.
— Não deixa de ser emblemático o acordo que o Ministro Paulo Bernardo celebrou com os grevistas no melhor estilo do sindicalismo para atender suas reinvidicações. Quebraram-se a hierarquia e a disciplina militares, valores inafastáveis para a ordem na vida castrense. Quis o comandante da Aeronáutica prendê-los porque a lei de regência qualifica a insurreição como motim. E motim é crime. Lula, que viajava para visitar Bush, desautorizou a prisão. Lula é o comandante supremo das Forças Armadas. Naquele momento estava voando e não queria encrenca com os controladores. Na volta, foi pressionado pelos comandos da Aeronáutica, Exército e Marinha. O exemplo poderia alastrar-se pelas outras forças armadas, que estão se comportando corretamente dentro das regras institucionais do Estado de Direito.
— Tudo bem — argumentei —, os comandantes das Forças Armadas são parte do Governo e convenceram o Presidente de que ele estava errado.
— Errado como sempre, caótico. O Ministro da Defesa, Waldir Pires, que deveria comandar os comandantes, sumiu. É completamente indefeso. Não sabe sequer explicar sua omissão. Concede entrevistas à televisão pronunciando dificultosas generalidades que ninguém entende. Alguém lembrou que ele pertencia ao Governo João Goulart,127 que foi deposto por uma baderna de outros sargentos estimulados pelos governistas de então. Por isso fomos submetidos a uma ditadura durante vinte e um anos.
— Agora isso não tem a menor condição de acontecer. Nossas instituições estão consolidadas. Se você não gosta do Governo faça oposição, entre para um partido político e lute por suas idéias, mas não fale em volta da ditadura.
— Calma, meu mano velho. Estou recordando fato histórico que envolveu o mesmo Waldir Pires de hoje. Ele dá azar. Mas Lula, com sua esperteza corintiana, voltou dos Estados Unidos e, como não podia dizer que não sabia de nada, disse que fora mal informado, isto é, sabia um pouquinho só. Recorreu à costumeira imagem de ser apunhalado pelas costas e mandou a Aeronáutica cuidar dos sargentos, mesmo porque o Ministério Público Militar abriu inquérito, imune à influência dos companheiros do PT. Paulo Bernardo falou em faca no pescoço e desfez o acordo. Os controladores de vôo não vão desistir da desmilitarização. Querem ser civis com direito a salários compatíveis com a profissão estressante. Foram enganados. Enquanto isto, enganam os pilotos dizendo que não há vagas nos aeroportos. Atrasam aterrissagem, impedem decolagem. É a operação padrão brasileiro.
— No mundo todo, o controle de vôo é exercido por civis, profissionais especializados. Nos Estados Unidos houve época em que os militares eram os responsáveis e fizeram qualquer coisa parecida com o que aconteceu no Brasil. Governo Reagan. Mas foram todos postos na rua, porque colocaram em risco a vida de milhares de passageiros.
— No Brasil é pior. Para agravar todos esses riscos à vida dos passageiros, os equipamentos do sistema aéreo nacional (radares, instrumentos de aproximação, ILS, rádio) estão obsoletos. O contigenciamento de verbas impediu a compra de novos. Ora são destruídos pelos raios, ora as pistas dos aeroportos são inundadas, ora um cachorro passeia por elas, ora as companhias vendem passagens acima da capacidade dos aviões, ora vendavais derrubam telhados de hangares, ora os buracos negros apagam as imagens do radar. Até hoje, em razão disso tudo, ninguém apurou as razões exatas da morte dos 154 passageiros do avião da Gol, fabricado nos Estados Unidos, no choque com o Legacy, fabricado no Brasil. O PT tem nomeado companheiros para todos os postos do Governo Federal (são cerca de 25 mil). Claro que fez o mesmo com a Infraero. Nunca mais vão largar essas regalias, a não ser se um dia a polícia gritar “pega ladrão!”. A polícia, não a política. Por isso não me filio a partido algum.
Depois de uma pequena pausa, prosseguiu:
— Ficou de tudo isso uma certeza: o Brasil, com seu imenso território, levará muito tempo para ter transporte decente. E ficará assistindo, de quando em vez, o Presidente Lula dizer uma coisa na sexta-feira e no sábado, como neste caso da crise aérea, para desdizer tudo na segunda-feira. Parece que o desmentido é justificável porque o dia primeiro de abril caiu no domingo, entre uma posição e outra. Para negações em geral, Lula é mais rápido do que o trem-bala francês.128
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