APÓS onze anos no poder, em que ganhou três eleições gerais, a Primeira-Ministra britânica cedeu a 20 de Novembro, embora só anunciasse a intenção de se demitir dois dias mais tarde. As verdadeiras razões da sua queda eram várias, todas interligadas. Em primeiro lugar, quando um membro do Parlamento de back-bench 32) recorreu a uma regra obscura do partido para a desafiar e tornar inevitável a sua reeleição formal pelos colegas Conservadores, ela escolheu e utilizou uma equipa de apoio de inefável incompetência. Em segundo, permitiu que a persuadissem a escolher esse momento, 18 de Novembro, para se deslocar a Paris, a fim de participar numa conferência, o que permitiu uma actividade mais livre nos bastidores. O elemento-chave de votação era um grupo de cerca de cinquenta MP (33) com eleitorados marginais -uma maioria de menos de 5000 -, os quais temiam a perda dos seus lugares nas próximas eleições, se ela continuasse no poder. De qualquer modo, metade deles perdeu a coragem... e os lugares, mais tarde. Em poucas horas, aquilo que principiara como um mero desalojar de pedras de uma calçada converteu-se numa avalancha. Assim, depois de consultar o seu Gabinete, que lhe garantiu que perderia, a Dama de Ferro apresentou a demissão. A importante e inesperada notícia atingiu os militares estacionados no Golfo como um impacto físico e não foram poucos os que manifestaram contrariedade. C32] Designação dos lugares da retaguarda na Câmara dos Comuns. (N. do T.) V3) Member of Parliament. (N. do T.) 240 Mike Martin inteirou-se quando o motorista iraquiano o informou. No entanto, encolheu os ombros e perguntou: Quem é? Ignorante! -ripostou o outro. -A dirigente dos Beni Naji. Agora, venceremos. Momentos depois, o Primeiro-Secretário Kulikov saía precipitadamente da resistência, para regressar à embaixada. Naquela noite, Martin enviou uma longa "erupção" para Riade, que continha o mais recente conjunto de informações de Jericó e o seu próprio pedido de novas instruções. E, agachado à entrada da barraca, para que o prato da parabólica não se visse do exterior, aguardou a resposta. A luz intermitente na consola do pequeno emissor-receptor revelou-lhe, à uma e meia, que acabava de ser recebida e gravada. Em seguida, desmontou o aparelho, voltou a guardá-lo no esconderijo e escutou a gravação. Havia uma nova lista de pedidos de informação e o acordo sobre a recente exigência monetária de Jericó, já transferida para a sua conta. Em menos de um mês, o renegado do Conselho do Comando Revolucionário possuía mais de um milhão de dólares. Juntamente com a lista, havia duas novas instruções para Martin. A primeira consistia em enviar uma mensagem a Jericó, que se esperava conseguisse introduzir nas mentes dos pla-neadores de Bagdade. Referia-se à possibilidade de as últimas notícias de Londres sobre a demissão da Primeira-Ministra poderem levar a Coligação a rever a intenção de libertar o Koweit, se a posição do Rais se mantivesse firme. Nunca se saberá se essa desinformação chegou às altas esferas de Bagdade, mas ainda não se escoara uma semana quando Saddam Hussein declarou que o derrube de Margaret Thatcher se devera ao desagrado do povo britânico por se lhe opor. A outra instrução na gravação destinada a Mike Martin consistia em perguntar a Jericó se alguma vez ouvira falar numa arma ou sistema de armas chamado Punho de Deus. Ele passou a maior parte do resto da noite a traduzir o texto em arábico em duas folhas de papel de correio aéreo. Vinte horas depois, achavam-se ocultas debaixo do tijolo solto no muro perto do santuário de Imam Aladham, em Aadhamiya. As respostas tardaram uma semana. Martin leu a hieroglí-fica caligrafia arábica de Jericó e verteu tudo para inglês. Do ponto de vista militar, revestia-se de interesse. As três divisões da Guarda Republicana que enfrentavam os ingleses e americanos ao longo da fronteira-, a Tawakkulna e
241 a Medina, a que acabava de se juntar a Hammurabi -estavam equipadas com uma mistura de tanques de combate T54/55, T62 e T72, todos de origem russa. No entanto, numa visita recente, o general Abdullah Kadiri, do Corpo Blindado, descobrira, horrorizado, que a maioria dos soldados retirara as baterias e as utilizava para alimentar ventoinhas, fogareiros eléctricos, rádios e leitores de cassettes. Resultava duvidoso que, agora, em condições de combate, algum voltasse a funcionar. Houvera várias execuções imediatas e dois comandantes tinham sido substituídos e mandados para casa. O meio irmão de Saddam, Ali Hassan, agora governador--geral do Koweit, comunicara que a ocupação estava a transformar-se num pesadelo, com o ataque aos soldados iraquianos e deserções em número crescente. Além disso, a Resistência não dava sinais de enfraquecer, apesar dos constantes e brutais interrogatórios, numerosas execuções pelo coronel Sabaawi, da AMAM, e duas visitas pessoais do seu chefe, Ornar Khatib. E, pior de tudo, a Resistência adquirira explosivos de plástico denominados Semtex-H, mais potentes que a dinamite industrial. Jericó identificara mais dois postos de comando militares importantes, construídos em cavernas subterrâneas e invisíveis do ar. Imperava a convicção, no círculo imediato de Saddam Hussein, de que uma contribuição seminal para a queda de Mar-garet Thatcher fora a sua própria influência. Ele reiterara por duas vezes a recusa absoluta de considerar sequer a retirada do Koweit. Finalmente, Jericó nunca ouvira falar de nada com o nome de código de Punho de Deus, mas prestaria atenção, para a eventualidade de o pronunciarem na sua presença. No entanto, estava convencido de que semelhante arma ou sistema de armas não existia. Martin leu a comunicação para o gravador, acelerou a velocidade deste e transmitiu a mensagem. Em Riade, foi recebida com avidez e a hora devidamente anotada: 23.55 de 30 de Novembro de 1992. Leila Al-Hilla emergiu da casa de banho lentamente, deteve-se na porta, com a iluminação procedente das suas costas, e pousou as mãos nas ombreiras. O clarão realçava as formas voluptuosas do corpo através do négligé, que lhe custara uma pequena fortuna numa bouti-que de Beirute. O homem de compleição possante deitado na cama olhou-a com uma expressão faminta. 242 Leila gostava de permanecer demoradamente na casa de banho antes de uma sessão de sexo, a fim de apurar todos os pormenores susceptíveis de intensificar os seus atributos pro-vocatórios. Por fim, baixou os braços e começou a avançar para a cama, em movimentos quase ondulatórios. No entanto, o homem deitado de costas e despido, fechara os olhos. "Não adormeças agora, cretino, precisamente quando preciso de ti", pensou ela. Sentou-se na borda da cama e fez deslizar a mão pelo corpo dele, peludo como um urso. Em seguida, inclinou-se e beijou-o na boca. No entanto, os lábios do homem corresponderam apenas vagamente, e Leila notou o odor intenso a arak. Bêbedo, mais uma vez. Por que seria que o imbecil não bebia com alguma moderação? Não obstante, aquela garrafa de arak todas as noites tinha as suas vantagens. Enfim, toca a trabalhar. Era uma excelente cortesã e não o ignorava. A melhor do Médio Oriente, como muitos afirmavam, e sem dúvida das mais dispendiosas. Na adolescência, treinara-se numa academia muito privada do Líbano, onde ensinavam todos os truques para conquistar e satisfazer um homem. Após quinze anos de profissionalismo por conta própria, sabia que noventa por cento da perícia de uma boa prostituta não tinha nada que ver com o problema de enfrentar a virilidade insaciável. Isso era para as revistas e filmes porno, O seu talento concentrava-se em adular, enaltecer e condescender, mas em especial provocar uma erecção total, perfeita. Assim, fez deslizar a mão para a virilha do homem e rodeou-lhe o pénis com os dedos. Emitiu um suspiro ao encontrá-lo flácido como uma esponja. O general Abdullah Kadiri, comandante do Corpo de Blindados do Exército da República do Iraque, necessitaria de um encorajamento suplementar, naquela noite. Pegou num vibrador que colocara previamente debaixo do colchão, encerrado numa saqueta de "turco", lubrificou-o com um gel especial e introduziu-lho no ânus. O general soltou um grunhido, abriu os olhos, baixou-os para a mulher desnuda agachada junto do seu aparelho reprodutor e expôs os dentes encimados por um denso bigode preto, num largo sorriso. Leila acentuou a pressão no vibrador e sentiu o pénis principiar a endurecer. Untou a boca com um líquido sem perfume 243 nem sabor de um pequeno frasco e iniciou a sucção do órgão, operação que se prolongou até que a erecção se consumou, quando começava a doer-lhe o queixo. Acto contínuo, antes que se registasse um retrocesso na tumefacção, escarranchou-se em cima dele, para que a penetrasse completamente. O general, agora totalmente acordado e lúcido, passou a colaborar activamente no processo, até que, no meio de uma série de exclamações entrecortadas, se abandonou ao orgasmo. Terminado o trabalho, ela deitou-se a seu lado, puxou o lençol para cima de ambos e acariciou o parceiro, ao mesmo tempo que murmurava: -Meu pobre urso... Estás cansado, hem? Trabalhas de mais, querido. Exigem demasiado de ti. Que foi, hoje? Mais problemas no conselho que só tu consegues resolver? Sabes que podes confiar na tua Leila. E foi o que ele fez, antes de adormecer. Mais tarde, quando o ouviu roncar, recolheu à casa de banho e trancou a porta, após o que anotou tudo em arábico. De madrugada, enrolou a folha de papel de seda numa espécie de tampão, que introduziu na vagina para a ocultar à inspecção dos seguranças. Posteriormente, entregá-la-ia ao homem que lhe pagava. Sabia que era uma operação perigosa, mas lucrativa, e constituía a única maneira de vir a tornar-se rica, como sempre ambicionara. Poderia então abandonar o Iraque e montar uma academia, talvez em Tânger, com pessoal especializado para atrair e satisfazer a abastada clientela. Se Gidi Barzilai se sentira frustrado com os métodos de segurança do Winkler Bank, as duas semanas de vigilância a Wolfgang Gemutlich tinham-no transtornado. O homem era positivamente inconcebível. Após a identificação do Vigilante, o banqueiro fora prontamente seguido à sua residência nas imediações do Prater Park. No dia imediato, enquanto se encontrava no banco, a equipa yarid mantivera-se nas proximidades da casa até que Frau Gemutlich saíra para ir às compras. O membro feminino da equipa fora no seu encalço, em contacto com os colegas através da rádio, para os poder prevenir do seu regresso. Na realidade, a esposa de Wolfgang permaneceu ausente cerca de duas horas, tempo mais do que suficiente para o que pretendiam. A introdução no domicílio não criou problemas à equipa neviot, que instalou dispositivos de escuta na sala, quarto e telefone. A busca rápida, porém eficiente, não revelou nada de 244 útil. Havia apenas os documentos usuais: escritura da casa, passaportes, certificados de nascimento e de casamento e até uma série de circulares do banco. Não obstante, foi tudo fotografado. Quando a colega que seguia Frau Gemutlich informou finalmente que ela se encaminhava para casa, os técnicos neviot haviam terminado as pesquisas e já se achavam cá fora. A porta da rua foi fechada pelo homem de fato-macaco da companhia dos telefones, sem que, atrás deles, ficasse o menor vestígio da invasão. Daquele momento em diante, a equipa neviot ficaria à escuta na carrinha fechada estacionada um pouco abaixo, na mesma rua. Duas semanas mais tarde, um dos agentes comunicou a Barzilai que as palavras trocadas pelo casal Gemutlich não chegavam a preencher uma bobina de gravação. Na primeira noite após a instalação do dispositivo de escuta, registara-se um total de dezoito, entre as quais "Podes vir para a mesa, Wolfgang" e "Tenho sono. Vou-me deitar". As restantes revelavam-se igualmente destituídas de importância. Todas as outras diligências para descobrir um ponto vulnerável no temperamento ou actividades pessoais do banqueiro redundaram num desaire total. O homem não jogava, não manifestava predilecção por rapazes, não frequentava clubes nocturnos, não tinha amantes, etc. Houve, porém, uma ocasião em que saiu de casa a uma hora diferente da rotina, e as esperanças dos agentes reanimaram^se. Gemutlich vestia sobretudo preto e seguiu a pé em direcção a uma residência, a cinco quarteirões de distância. Bateu à porta, que se abriu para que entrasse. No momento imediato, uma das janelas do rés-do-chão iluminou-se. Antes de a porta voltar a fechar-se, um dos agentes israelitas vislumbrou uma mulher de expressão grave e túnica de nylon branca. Tratar-se-ia de algum centro de massagens, com pessoal feminino eficiente e condescendente? O inquérito discreto efectuado na manhã seguinte revelou que se tratava de uma calista que recebia determinados clientes no domicílio. Wolfgang Gemutlich fora aparar os calos. A 1 de Dezembro, Cidi Barzilai recebeu um "míssil" de Kobi Dror, em Telavive. Não se tratava de uma operação sem limite de tempo. As Nações Unidas haviam intimado o Iraque a abandonar o Koweit até 16 de Janeiro. A partir dessa data, eclodiria a guerra e tudo poderia acontecer. Portanto, tinha de se despachar. 245 - Podemos vigiar o filho da mãe até ao dia do Juízo Final afirmaram os dois chefes das equipas ao seu controlador. Não há um único grão de imundície na sua vida. O homem é incompreensível. Não faz nada, mas absolutamente nada, que possamos utilizar contra ele. Barzilai enfrentava um dilema. Podiam raptar Frau Gemut-lich e ameaçar o marido de que, se não colaborasse... No entanto, não só ele poderia preferir prescindir da companhia da esposa a cometer algum acto menos próprio, como havia o perigo de que recorresse à polícia. Existia também a possibilidade de raptar o próprio banqueiro e pressioná-lo, porém o homem teria de voltar ao banco para efectuar a transferência para encerrar a conta de Jericó. E, uma vez no seu habitat usual, poderia lançar o alarme. Ora, Kobi Dror insistira em que não houvesse o menor indício da operação em curso. - Concentremo-nos na secretária -acabou Barzilai por decidir. -Em regra, essas funcionárias costumam estar ao corrente de tudo o que o chefe sabe. Por conseguinte, as duas equipas volveram a atenção para a não menos sensaborona, pelo menos aparentemente, Fraulein Edith Hardenberg. Ainda lhes consumiu menos tempo -apenas dez dias. Seguiram-na ao seu apartamento na Trautenauplatz, no décimo nono bairro, nos subúrbios a noroeste da cidade. Vivia só, sem qualquer amante, namorado ou sequer um animal de estimação. A busca aos documentos privados revelou uma conta bancária modesta e a existência de uma mãe em Salisburgo. Edith conduzia um pequeno Seat, que deixava estacionado diante da porta, mas a maioria das vezes utilizava os transportes públicos, sem dúvida em virtude da falta de espaço para arrumar o carro em plena cidade. Não havia fotografias de homens jovens no apartamento, mas somente uma da mãe, outra de ambas de férias num lago qualquer e uma terceira de um indivíduo uniformizado, sem dúvida do pai, já falecido. Todavia, se existia algum homem importante na sua vida, parecia ser Mozart. É uma fanática pela ópera -informou o chefe da equipa neviot. -Todos os discos LP que possui... dá a impressão de que ainda não se decidiu a passar aos CD... são de composições de Mozart. Além disso, tem uma estante cheia de livros sobre o assunto e há vários cartazes de espectáculos de música clássica em teatros de Viena. Então, a respeito de homens, nada, hem? -grunhiu Barzilai. 246 -Só se for o Pavarotti... Acho melhor, não pensarmos mais nisso. Mas ele continuava a pensar. Recordava-se de determinado caso em Londres, vários anos atrás. Uma funcionária pública que trabalhava no Ministério da Defesa. Uma solteirona inveterada, até que os soviéticos lhe tinham colocado no caminho um atraente jugoslavo. O próprio juiz se mostrara compreensivo, no julgamento dela. Naquela noite, Barzilai enviou um longo telegrama codificado a Telavive. Em meados de Dezembro, a concentração do exército da Coligação a sul do Koweit tornara-se numa vaga inexorável de homens e material. Trezentos mil homens e mulheres de trinta nações estendiam-se numa série de linhas através do deserto saudita a partir da costa, por mais de cento e cinquenta quilómetros. Nos portos de Jubail, Dammam, Bahrain, Doha, Abu Dhabi e Dubai, cargueiros largavam peças de artilharia, tanques, carburante, munições e peças sobresselentes, numa sucessão interminável. A partir das docas, os comboios seguiam para oeste pela Tapline Road, para estabelecer as vastas bases logísticas que, um dia, abasteceriam o exército invasor. Na altura, as forças da Coligação achavam-se confinadas pelo general Schwarzkopf à porção do deserto a sul do Koweit. Bagdade ignorava, porém, que, antes de atacar, o oficial americano tencionava enviar mais tropas através do Wadi ai Batin a mais cento e cinquenta quilómetros para oeste no interior do deserto, para invadir o Iraque, surpreendendo a Guarda Republicana pelo flanco e destruí-la. A 13 de Dezembro, os Rocketeers, 336.a Esquadrilha do Comando Aéreo Táctico da USAF, (M) descolaram da base em Thumrait, em Omã, e transferiram-se para Al Kharz, na Arábia Saudita, em obediência a uma decisão tomada no dia um daquele mês. Al Kharz era um aeródromo "esquelético", apenas com pistas. Não havia torre de controlo, hangares, oficinas ou qualquer espécie de acomodação para o pessoal. Mas era um aeródromo. Com uma previdência surpreendente, o governo há muito que construíra bases aéreas em número suficiente para albergar aparelhos que totalizassem cinco vezes os efectivos da Real Força Aérea Saudita. Os construtores americanos entraram em actividade a par- :riR p) United States Air Force. (N. do T.) :^ íJPíSí- 247 tir de 1 de Dezembro e não tardou a haver instalações para cinco mil homens e cinco esquadrilhas de "caças". Al Kharz situa-se a oitenta quilómetros a sueste de Riade, que ficava a apenas cinco para além do alcance máximo dos mísseis Scud, em poder do Iraque. Durante três meses, alojaria cinco esquadrilhas. Dor Walker gostara da estada em Thumrait. As condições de vida eram modernas e excelentes e, na atmosfera descontraída de Omã, as bebidas alcoólicas autorizadas dentro da base. Contactara pela primeira vez com o SAS britânico, que tinha uma base de treino permanente no local, e outros "oficiais contratados" que prestavam serviço nas forças do sultão Qaboos, de Omã. Realizaram-se algumas festas memoráveis, com representantes do sexo oposto eminentemente acessíveis, e resultara emocionante pilotar os Eagle em missões "simuladas" sobre a fronteira iraquiana. Acerca do SAS, após uma incursão no deserto com membros do regimento em carros-patrulha, Walker comentara ao novo comandante de esquadrilha, tenente-coronel Steve Turner: -Estes tipos são indiscutivelmente loucos. Al Kharz revelar-se-ia diferente. Como lar dos dois lugares santos, Meca e Medina, a Arábia Saudita proíbe rigorosamente o consumo de bebidas alcoólicas, além de qualquer exposição do corpo das mulheres abaixo do queixo, à excepção das mãos. Na sua Ordem Número Um, o general Schwarzkopf banira o álcool a todas as forças da Coligação sob o seu comando. Por conseguinte, todas as unidades americanas a respeitavam, e aplicava-se rigorosamente a Al Kharz. Não obstante, no porto de Dammam, os descarregadores americanos ficaram surpreendidos com a quantidade de xampu destinado à Real Força Aérea britânica. Caixotes consecutivos do produto eram transferidos para camiões ou aviões de carga Hércules C-130 e levados para as esquadrilhas da RAF. Os trabalhadores portuários estranhavam sobretudo que, numa área largamente afectada pela escassez de água, as tripulações inglesas pudessem consagrar tanto tempo à lavagem do cabelo. O enigma persistiria até ao termo da guerra. Do outro lado da península, na base no deserto de Tabuq, que os Tornado britânicos partilhavam com os Falcon americanos, os pilotos da USAF estavam ainda mais intrigados ao verem, no final da tarde, os ingleses, sentados debaixo de toldos, decantar uma pequena porção de xampu num copo, que acabavam de encher de água engarrafada. Em Al Kharz, o problema não se punha. Não havia xampu de qualquer espécie. Por outro lado, as condições gerais eram 243 menos confortáveis que em Thumrait. À parte o comandante de esquadrilha, que dispunha de uma tenda só para ele, os outros, de coronel para baixo, partilhavam-nas à razão de dois, quatro, seis, oito ou mesmo doze em cada uma, consoante a graduação. Como se isso não bastasse, a área consagrada ao pessoal feminino estava-lhes vedada, inconveniência tornada ainda mais frustradora pelo facto de as damas americanas, fiéis à sua cultura e sem a política religiosa saudita para as orientar, tomavam banhos de sol em reduzidos biquinis, do outro lado de vedações pouco elevadas que tinham montado em torno das tendas. O que levou o pessoal do sexo oposto a requisitar todos os veículos pesados da base possuidores de carroçarias bem acima do rodado. Existia no local outro estado de espírito resultante de uma causa diferente. As Nações Unidas tinham imposto a Saddam Hussein o dia 16 de Janeiro como limite do ultimato. No entanto, as declarações provenientes de Bagdade continuavam a revelar-se provocatórias, e tornava-se evidente pela primeira vez que os iraquianos estavam dispostos a ir para a guerra. Por conseguinte, as missões de treino assumiram um aspecto mais premente. Graças a caprichos meteorológicos, o dia 15 de Dezembro apresentava-se invulgarmente cálido, em Viena. O Sol incidia nas ruas e a temperatura subia gradualmente. À hora do almoço, Frauléin Hardenberg abandonou o banco como habitualmente para a sua refeição modesta quotidiana e, obedecendo a um impulso, decidiu munir-se de sanduíches e ir comê-las no Stadt-park, a poucos quarteirões de distância da Ballgasse. Era seu hábito fazê-lo no Verão e até no Outono, pelo que vinha prevenida de casa com sanduíches, o que não acontecia naquele 15 de Dezembro. Apesar disso, a sua decisão de comer no parque era irreversível e não estava disposta a deixar-se desencorajar por um pormenor de somenos. Havia uma razão especial para a sua predilecção pelo pequeno jardim do outro lado do Ring. Numa das extremidades, situa-se o Hubner Kursalon, restaurante de paredes de vidro como uma ampla estufa, onde, durante o período do almoço, um pequeno conjunto musical costumava interpretar melodias de Strauss, sem dúvida um dos compositores vienenses de todos os tempos. Se não tinha posses para pagar os preços assaz "salgados" do estabelecimento em causa, uma pessoa podia sentar-se num 249 dos bancos das proximidades e escutar a agradável música gratuitamente. Edith Hardenburg comprou as sanduíches num quiosque das cercanias, encontrou um banco desocupado e começou a comer lentamente, ao som das valsas. - Entschuldigung. Experimentou um sobressalto, ao ouvir a voz proferir com suavidade o equivalente a "Com licença". Se havia alguma coisa que detestava -e não permitia -era que desconhecidos se lhe dirigissem. O homem era jovem, de cabelo preto, olhos castanhos e sotaque estrangeiro. Preparava-se para desviar a vista, quando se apercebeu de que ele tinha na mão uma brochura ilustrada e apontava para uma palavra do texto. Tratava-se de um programa referente à ópera "A Flauta Mágica". - Este termo não é alemão, pois não? -E indicava a palavra partitura. Em vez de guardar as sanduíches que restavam e afastar-se, como a mais elementar sensatez recomendava, ela replicou secamente: Não, é italiano. Ah...-O homem pareceu algo intrigado. -Estou a aprender alemão, mas não entendo o italiano. Refere-se à música, suponho? Não, diz respeito à obra no seu conjunto. Obrigado. Não é fácil compreender as vossas óperas vienenses, mas agradam-me profundamente. -Fez uma pausa, enquanto Edith aguardava com certa curiosidade. -Esta passa-se no Egipto. Eu sei. Como a Aida. Também gosto de Verdi, mas prefiro Mozart. Entretanto, ela acabara por embrulhar as sanduíches sobreviventes e estava disposta a afastar-se. Até já se devia ter levantado, para ele não imaginar que estava disposta a escutá-lo. Todavia, o desconhecido escolheu aquele momento para exibir um sorriso que a fez vacilar. Era tímido, quase de súplica. Não há comparação possível -declarou Edith. -Mozart é o mestre de todos. Ele viveu aqui. -O sorriso acentuou-se e, portanto, os seus efeitos demolidores. -Talvez até se sentasse neste banco, para compor as suas obras. Custa-me a crer. O banco ainda não existia, naquela época. Ela levantou-se e o jovem inclinou-se numa leve vénia. 250 - Lamento se a incomodei, Fraulein. -Agradeço-lhe os esclarecimentos, em todo o caso. Edith empreendeu o regresso ao banco, onde acabou de comer as sanduíches, furiosa consigo própria. Só lhe faltava aquilo: deixar-se abordar nos parques por jovens desconhecidos! Por outro lado, tratava-se apenas de um estudante estrangeiro que pretendia elucidar-se acerca das óperas vienenses. Não havia nada de censurável nisso. Apesar da sua paixão pela música, nunca assistira à representação de uma ópera no Staatsoper, onde "A Flauta Mágica" seria levada à cena dentro de três dias. No entanto, os preços praticados pela principal sala de ópera da cidade eram proibitivos, a menos que uma pessoa se resignasse a ir para a galeria. No dia seguinte, o Inverno reapareceu, com o seu habitual cortejo de desconforto. Por conseguinte, ela retomou o hábito de almoçar no café usual, sentada à mesa que já quase considerava sua. No terceiro dia, após o breve e aparentemente insignificante episódio no parque, instalou-se no lugar do costume e notou que a mesa ao lado devia estar ocupada, pois continha dois livros de estudo -não se preocupou em ler os títulos - um copo de leite parcialmente consumido. Acabava de pedir o prato do dia, quando o ocupante reapareceu das instalações sanitárias. No momento em que se sentava, reconheceu-o e estremeceu de admiração. Outra vez, Gruss Gott! -articulou entre dentes, ao mesmo tempo que comprimia os lábios num trejeito de desaprovação. Terminei a tradução do programa -informou o jovem, após uma leve inclinação de cabeça. -Compreendi tudo perfeitamente. Ela moveu levemente a sua e começou a comer, pois a empregada acabava de lhe servir o que pedira, pelo que se achava impossibilitada de invocar um pretexto qualquer e retirar-se. - Excelente. Veio estudar para Viena? Por que lhe perguntara aquilo? Estaria porventura louca? Contudo, o ruído das conversas à sua volta obrigou-a a ponderar a situação. Por que se preocupava? Um diálogo civilizado, mesmo com um estudante estrangeiro, não poderia conduzir a nada de deplorável. Em todo o caso, perguntou-se que pensaria Herr Gemutlich. Desaprovaria a ideia, sem a menor dúvida. - Sim, engenharia -confirmou o jovem, com um largo sorriso. -Na Universidade Técnica. Quando me formar, regressarei ao meu país, para colaborar no seu desenvolvimento. A propósito, chamo-me Karim. 251 Fraulein Hardenberg -apresentou-se ela. -Qual é o seu país, Herr Karim? A Jordânia. ?Um árabe, ainda por cima! Bem, talvez houvesse vários a frequentar a Universidade Técnica, perto dali. A maioria dos que costumava ver compunha-se de vendedores ambulantes, indivíduos pouco atraentes que negociavam tapetes ou vendiam jornais junto dos cafés. Ora, o jovem da mesa ao lado tinha um ar absolutamente respeitável. Devia pertencer a uma família mais bem situada na vida. Em todo o caso... um árabe. Por fim, Edith acabou de comer e fez sinal à empregada para que lhe trouxesse a conta. Eram horas de se separar do mancebo, embora se mostrasse particularmente delicado. Para um árabe. - Mas acho que não vou poder ir -declarou ele, pesaroso. Ela baixou os olhos para a conta e abriu a carteira, para procurar o dinheiro. --Ir onde? -À ópera. Ver "A Flauta Mágica". Sozinho, não seria capaz, no meio de tanta gente. Não saberia quando aplaudir ou permanecer silencioso. - De qualquer modo, duvido que conseguisse arranjar ?bilhete -observou, com uma expressão tolerante. Ele assumiu uma expressão de perplexidade. - Não se trata disso. -Levou a mão à algibeira e pousou dois rectângulos de papel na mesa. Na dela. Ao lado da conta. Eram na segunda fila. Perto dos cantores. Coxia central.- Tenho um amigo nas Nações Unidas. As empresas costumam mandar algumas entradas para lá. Ele não estava interessado em ir e deu-me estas. Dera. Não vendera, dera. Os bilhetes disputavam-se praticamente pelo preço do ouro, e o amigo oferecera-os. -? Importa-se de me levar consigo? -aventurou o jovem, em tom quase implorativo. -Por favor? A frase achava-se construída habilmente. Seria ela que o levaria. Nem pensar-replicou com firmeza. Peço desculpa, Fraulein. Vejo que a ofendi. Ele pegou nos rectângulos de papel e fez menção de os rasgar. -Não! -O advérbio brotou dos lábios dela antes que se conseguisse conter. -Não faça isso, por favor. Mas não me servem para nada. Bem, talvez eu... O rosto dele iluminou-se. - Quer, pois, acompanhar-me à ópera? 252 Ia "acompanhá-lo", mais ou menos como uma cicerone, pelo que não havia nada de censurável na intenção. Combinaram encontrar-se à entrada do teatro às sete e um quarto. Edith chegou no seu carro, que arrumou nas proximidades sem problemas, e foram conduzidos aos lugares. Se Edith Hardenburg, solteira, de quase quarenta Verões sem amor, alguma vez vislumbrou o paraíso, foi naquela noite de 1990, quando se sentou a poucos metros do palco e mergulhou na música. Se alguma vez conheceu a sensação da embriaguez foi também naquela ocasião ao deixar-se intoxicar pela torrente de vozes que se exprimiam nas mais variadas intonações musicais. No final do espectáculo, a intoxicação persistia. De contrário, não teria permitido que ele a conduzisse ao Café Land-tman, antigo refúgio de Freud. O chefe dos empregados de mesa escoltou-os a uma mesa do canto, onde cearam. Mais tarde, Karim acompanhou-a ao carro. Entretanto, ela acalmara-se e a reserva inicial restabelecia-se. - Gostava que me mostrasse a verdadeira Viena -disse ele, num murmúrio. -A sua Viena, dos belos museus e concertos. Se não, nunca compreenderei a cultura da Áustria. Detiveram-se junto do carro. Não, ela não se ofereceria para o levar a casa, onde quer que fosse, e qualquer sugestão de que lhe permitisse a entrada na sua revelaria a espécie de biltre que era. Onde pretende chegar? -Gostava de a voltar a ver. Porquê? "Se me disser que sou linda, esbofeteio-o", prometeu a si própria. Porque é bondosa. Ah... Sentiu-se corar com intensidade. Sem mais uma palavra, Karim inclinou-se para a frente e beijou-a na face. Em seguida, deu meia volta e afastou-se. Naquela noite, Edith Hardenburg teve sonhos agitados. Remontou ao passado. Outrora, houvera na sua vida Horst, que a amara naquele Verão quente de 1970, quando ela tinha dezanove anos e era virgem. Fora ele que lhe suprimira a castidade e a possuíra. E desaparecera no Inverno, sem uma palavra de explicação ou despedida. A princípio, supôs que sofrera um acidente e telefonara a todos os hospitais. Depois, admitiu que a profissão de viajante de uma empresa o tivesse obrigado a ausentar-se da cidade subitamente e telefonaria mais tarde. Por fim, inteirara-se de que tinha casado com uma jovem 253 de Graz, com a qual se encontrava quando o serviço o levava a passar por lá. A partir de então, não tornara a envolver-se com qualquer homem. A mãe dissera-lhe que, mais cedo ou mais tarde, todos acabavam por trair as mulheres, e não se equivocara. Naquela noite, a uma semana do Natal, adormeceu com o programa de "A Flauta Mágica" entre os dedos. Enquanto sorria e os sonhos lhe acudiam, exibia um sorriso de felicidade. Decerto não havia mal algum nisso... 254