CAPÍTULO 17 TERRY MARTIN desembarcou no Aeroporto Internacional de São Francisco pouco depois das três da tarde do dia seguinte, aguardado pelo seu anfitrião, professor Paul Maslowski, cordial e sorridente, que se apressou a abraçá-lo ao bom estilo da hospitalidade americana. A Betty e eu calculámos que um hotel seria muito impessoal e talvez não se importasse de ficar connosco - declarou, enquanto conduzia o carro para a faixa de rodagem da auto-estrada. Com o maior prazer-disse Martin, sinceramente. Os estudantes estão ansiosos por ouvi-lo, Terry. Não há muitos, claro, pois a nossa faculdade de árabe é mais pequena que a vossa, mas reina grande entusiasmo. - Excelente. Terei muito gosto em conhecê-los. Conversaram animadamente sobre a paixão comum, a Mesopotâmia medieval, até que chegaram à casa pré-fabricada do professor, num sector residencial em Menlo Park. Martin foi então apresentado à esposa de Maslowski, Betty, e escoltado a um confortável quarto de hóspedes. Consultou o relógio, que indicava cinco menos um quarto, e perguntou: - Posso telefonar? Com certeza -assentiu o professor. -Quer falar para casa? Não, para dentro do país. Empresta-me a lista? O número que Martin pretendia figurava em Livermore. Laboratório Nacional Lawrence L., no Condado Alameda. Ligava-me ao Departamento Z? -pediu, quando a telefonista atendeu, pronunciando Zed, à inglesa. A quem? Departamento Zee -corrigiu. -Ao gabinete da direcção. Um momento, por favor. 328, Surgiu na linha outra voz feminina. -Gabinete da direcção. Em que lhe posso ser útil? O sotaque britânico talvez influísse. Ele explicou quem era e o que fazia no país, numa breve visita, e gostaria de falar com o director. Nova pausa, para em seguida aparecer uma voz masculina. Dr. Martin? Sim. Sou Jim Jacobs, o subdirector. Em que o posso servir? Bem sei que é muito em cima da hora, mas encontro-me nos Estados Unidos para pronunciar uma conferência na Faculdade de Estudos sobre o Próximo Oriente, em Berkeley, e interessava-me passar por aí para falar consigo. Pode dar-me uma indicação de que se trata? Bom, não é fácil. Sou membro do sector britânico da Comissão Medusa. Isto sugere-lhe alguma coisa? Com certeza. Encerramos dentro de momentos, pelo que hoje já não há tempo. Pode ser amanhã? Perfeitamente. Tenho a conferência à tarde. Se fosse da parte da manhã... Às dez? -propôs o Dr. Jacobs. Ficou assente. Martin abstivera-se propositadamente de referir que não era um cientista nuclear, mas arabista. Não convinha complicar as coisas. Naquela noite, do outro lado do mundo, em Viena, Karim levou Edith Hardenberg para a cama. A sedução não foi precipitada nem desajeitada, parecendo culminar naturalmente um serão de música de concerto e ceia. Enquanto o conduzia ao seu apartamento, ela tentava convencer-se de que seria apenas para lhe oferecer café e conceder um beijo de despedida, embora no fundo soubesse que tentava iludir-se. Quando Karim a tomou nos braços e beijou com suavidade, mas de forma persuasiva, não se opôs. E no momento em que a levou para o quarto e começou a despi-la com uma eficiência subtil que Horst nunca usara, reconheceu a inutilidade de se insurgir. Quando se encontraram entre os lençóis, não soube exactamente como devia reagir, pelo que deixou o parceiro tomar a iniciativa. Os beijos subsequentes perderam a suavidade anterior, mas ganharam em avidez, quase voracidade, também nada que se comparasse com a maneira de proceder de Horst. Ele possuiu-a duas vezes ao longo da noite -a primeira pouco depois da meia-noite e a segunda já no limiar da alvorada, sempre com um cuidado e prudência que tornariam qualquer 329 tentativa de resistência quase absurda. De resto, resistir não figurava nas intenções imediatas, nem mais ou menos remotas, de Edith., que acabou por colaborar inteiramente. Embora não fizesse a menor ideia de que o seu hóspede tinha qualquer interesse no mundo além dos estudos árabes, o Dr. Maslowski insistiu em levá-lo a Livermore no carro, para não se sujeitar à despesa de uma longa corrida de táxi. - Parece que albergo debaixo do meu tecto uma pessoa mais importante do que supunha -observou pelo caminho. Mas embora Martin asseverasse que não era o caso, o californiano sabia o suficiente sobre o Laboratório Lawrence Livermore para compreender que nem toda a gente conseguia ser recebida por um membro da direcção, após um mero telefonema prévio. À entrada do recinto, um segurança uniformizado examinou o passaporte de Martin, utilizou o telefone para contactar com alguém no interior e indicou o parque de estacionamento. - Espero aqui -disse Maslowski. Atendendo à actividade a que se dedica, o laboratório constitui uma colecção quase estranha de edifícios na Vasco Road, alguns modernos, mas a maioria remonta aos dias em que o complexo era uma base militar. Jim Jacobs era um pouco mais velho do que Terry Martin, aparentava cerca de quarenta anos, doutorado em física nuclear, e recebeu-o num pequeno gabinete em cima de cuja secretária se viam numerosos documentos dispersos. Faz frio, hem? Aposto que pensava que ia apanhar calor na Califórnia. É a convicção geral dos forasteiros. Mas nesta área não. Toma café? É uma boa ideia. Com leite, açúcar?... Simples, por favor. O Dr: Jacobs premiu o botão do intercomunicador. - Arranjam-se dois cafés, Sandy? O meu já sabe como é. O outro simples. E sorriu ao visitante. Não se deu ao trabalho de comunicar que contactara com Washington para obter confirmação da idoneidade de Martin e de que se tratava realmente de um membro da Comissão Medusa. Jacobs estava ao corrente da existência desta última, porque ele e os seus colegas tinham sido consultados por várias vezes sobre o Iraque e haviam revelado todos os elementos de que dispunham, os pormenores da história de insensatez e incúria por parte do Ocidente que quase tinham proporcionado uma opção atómica a Saddam Hussein. 330
Em que lhe posso ser útil? É, por assim dizer, um tiro na escuridão -admitiu Martin, abrindo a pasta de que se fizera acompanhar-, mas alguma vez viu isto? Pousou na secretária uma cópia das doze fotografias da fábrica Tarmiya -a que Paxman lhe confiara desobedientemente. Jacobs observou-a por um momento e inclinou a cabeça afirmativamente. - Recebi uma dúzia delas de Washington, há três ou quatro dias. Que posso dizer? Não têm qualquer significado. Não consigo ser mais explícito do que fui para eles. Nunca vi nada de parecido com isto. Naquele momento, Sandy fez a sua aparição com um tabuleiro que continha duas chávenas fumegantes -uma loura sorridente, perfeitamente senhora de si. Olá -disse a Martin. Viva. -Ele voltou-se de novo para Jacobs. -O director também as viu? O interpelado enrugou a fronte. A implicação consistia em que ele podia não ter idoneidade suficiente para se pronunciar. Está a esquiar no Colorado. Mas mostrei-as a alguns dos nossos melhores cérebros, que são realmente bons, pode crer. Não duvido -apressou-se Martin a afirmar. Mais uma diligência frustrada. De qualquer modo, não acalentara grandes esperanças. Sandy pousou as chávenas na secretária e, ao ver a fotografia, proferiu: Isto, outra vez? Sim, outra vez -disse Jacobs, com um sorriso.- O Dr. Martin acha que devia ser mostrado a alguém mais... velho. Pode ser ao papá Lomax, por exemplo -sugeriu ela, e retirou-se. Quem é o papá Lomax? -quis saber Martin. Não faça caso. Trabalhou aqui, mas aposentou-se e vive isolado na montanha. De vez em quando, aparece por cá para matar saudades. O pessoal feminino adora-o e ele traz-lhe sempre flores silvestres. Tomaram o café e trocaram impressões sobre banalidades durante alguns minutos, até que se despediram. Uma vez no corredor, Martin deteve-se por um momento e assomou à porta da antecâmara. - Onde posso encontrar o papá Lomax? -perguntou a Sandy. : 331 Não sei ao certo. Vive na montanha, mas nunca esteve lá ninguém daqui. Tem telefone? As linhas normais não chegam lá, mas creio que possui um portátil. A companhia de seguros insistiu nisso. Ele é muito idoso, sabe. O rosto dela exibiu a expressão de sincera preocupação que só a juventude californiana sente pelas pessoas com mais de sessenta anos. Consultou um ficheiro e indicou um número de telefone, que Martin anotou, após o que agradeceu e retirou-se. A dez fusos horários dali, anoitecera em Bagdade. Mike Martin pedalava ao longo da Port Said Street. Acabava de passar diante do velho Clube Inglês e, recordando-o da adolescência, voltou-se para trás, a fim de o ver melhor. A falta de atenção quase provocou um acidente. Alcançara a extremidade da Nafura Square e, irreflectidamente, continuou a pedalar. Uma longa limusina apresentou-se à sua esquerda e, embora não tivesse prioridade, os dois motociclistas que a ladeavam não pareciam dispostos a parar. Um deles acabou por travar repentinamente, mas não conseguiu evitar que a roda da frente derrubasse a bicicleta, muito menos pesada. Martin rolou no pavimento, enquanto os legumes da cesta se espalhavam em volta. A limusina parou e em seguida contornou-o, antes de readquirir a velocidade anterior. : De joelhos, Martin sacudiu a cabeça e viu que o passageiro assomava à janela para ver quem era o imprudente que ousara fazer-lhe perder uma fracção de segundo do seu indubitavelmente precioso tempo. Era um rosto frio, acima do uniforme de brigadeiro-general, magro e acerbo, de lábios finos cruéis. No entanto, o que mais atraiu a atenção de Martin foram os olhos -agudos, totalmente inexpressivos, como os de um corpo sem vida. Sabia que acabava de ver o homem mais temido do Iraque depois do Rais, ou porventura tanto como este último. Chamavam-lhe Al Muazib, o Atormentador, extractor de confissões, chefe da AMAM, Ornar Khatib. Terry Martin marcou o número no período do almoço, mas não obteve resposta. Apenas o tom melífluo da voz gravada, que repetia: "A pessoa que procura não está disponível ou saiu. Volte a tentar mais tarde, por favor." Paul Maslowski levara-o a almoçar com os colegas da faculdade no refeitório da universidade e as conversas haviam 332 sido animadas e académicas. Martin voltou a tentar o número após o almoço, antes de seguir para Barrows Hall, acompanhado pela directora dos Estudos sobre o Próximo Oriente, Kathlene Keller, mas tornou a não obter resposta. A conferência decorreu satisfatoriamente. Assistiram vinte e sete estudantes, e ele ficou impressionado com o nível e profundidade da sua compreensão do material que escrevera e publicara sobre o tema do Califado que governara a Meso-potâmia Central no período a que os europeus chamavam idade Média. Quando abandonava a sala, avistou um telefone na parede do corredor e tentou a sorte mais uma vez. , -Estou... -articulou uma voz rouca. É o Dr. Lomax? Só existe um, amigo. Sou eu. Talvez lhe pareça estranho, mas acabo de chegar de Inglaterra e gostava de conversar consigo. Chamo-me Terry Martin. De Inglaterra, hem? Isso é longe. Que pode pretender um inglês de um jarreta como eu? Pôr à prova a sua memória. Mostrar-lhe uma coisa.. Não é fácil explicar pelo telefone. Posso passar por aí? Não é um impresso do IRS? !
-Não.
---Ou a fotografia de uma boneca da Playboy?" -Receio bem que não. .: -Aguçou^me a curiosidade. Sabe o caminho? - Não, mas tenho aqui papel e lápis. Se me fornecer as indicações necessárias... O papá Lomax descreveu a maneira de chegar ao local onde vivia, o que demorou algum tempo, enquanto Martin-anotava tudo cuidadosamente. - Fica para amanhã -concluiu.-Hoje já é tarde (c) você perdia-se na escuridão. E precisa de um transporte de quatro rodas. Foi um dos dois únicos J-STARS E-8A da Guerra do Golfo que captou o sinal, na manhã de 27 de Janeiro. Os J-STARS ainda eram aparelhos experimentais e deslocavam-se com numerosos técnicos civis a bordo, quando receberam ordem, em princípios de Janeiro, para seguirem urgentemente da sua base na fábrica de Grumman Melbourne, na Florida, para quase o lado oposto do mundo, na Arábia. Naquela manhã, um dos dois partira da base aérea militar em Riade e sobrevoava a fronteira iraquiana, ainda dentro do espaço aéreo saudita. O plink era ténue, mas indicava metal, que se deslocava lentamente, no interior do Iraque -um com- 333 bóio com um máximo de dois ou três camiões. No entanto, era para isso que o J-STAR servia, pelo que o comandante da missão informou um dos AWACS que sobrevoavam em círculos a parte norte do Mar Vermelho, revelando a posição exacta do alvo. No interior da estrutura do AWACS, o comandante marcou o local e olhou em volta à procura de um elemento no ar disponível para fazer uma visita hostil ao comboio. Todas as operações no sector do deserto ocidental continuavam concentradas na caça aos mísseis Scud, à parte a atenção prestada às duas vastas bases aéreas iraquianas denominadas H2 e H3, situadas naquela área. O J-STAR podia ter localizado uma rampa de Scud móvel, embora o facto fosse pouco vulgar durante o dia. O AWACS descobriu um elemento de dois Strike Eagle F-15E rumo ao sul proveniente da Scud-Alley North. Don Walker seguia para sul a sete mil metros de altitude, após uma missão nos arrabaldes de Al Qairn, onde ele e o colega Randy Roberts tinham arrasado uma base de mísseis fixa que protegia uma das fábricas de gás venenoso programada para ulterior destruição. Waiter recebeu a ordem e verificou o carburante. Não restava muito. Depois de lançar as bombas guiadas por laser, dispunha apenas de dois Sparrows e outros tantos Sidewinders. No entanto, estes últimos eram mísseis ar-ar, para a eventualidade de se depararem "jactos" iraquianos. Algures a sul da fronteira, o seu abastecimento aguardava pacientemente, e ele necessitaria de poupar até à última gota para-regressar a Al Kharz. No entanto, o comboio encontrava-se apenas a oitenta quilómetros de distância e unicamente a vinte e cinco da sua rota prevista. Mesmo que não possuísse projécteis apropriados, podia perfeitamente ir espreitar. Como o colega no outro aparelho ouvira tudo, Walker gesticulou através da canópla transparente e os dois Eagle "picaram" para a sua direita. A dois mil e quinhentos metros de altitude, avistou a fonte do plink que aparecera no ecrã do J-STAR. Não era uma rampa de Scud, mas dois camiões e dois BRDM-2, veículos blindados de fabricação soviética, que se deslocavam sobre rodas em vez de cremalheiras. Do seu posto de observação, Walker podia ver mais do que isso. Num uade profundo atrás dele, encontrava-se um Land--Rover. A mil e quinhentos metros, conseguia descortinar os quatro homens do SAS britânico à sua volta, como minúsculas formigas no tapete acastanhado do deserto. Simplesmente, não 334 podiam aperceber-se dos quatro veículos iraquianos que formavam uma ferradura em redor, nem dos soldados que saltavam para o chão dos dois camiões para os cercar. Walker convivera com membros do SAS em Omã. Sabia que actuavam no deserto ocidental contra as rampas de mísseis Scud, e vários colegas da esquadrilha já tinham entrado em contacto com eles, quando haviam localizado um alvo que se achavam impossibilitados de enfrentar. A mil metros de altitude, viu os quatro ingleses olhar para cima com curiosidade, O mesmo fizeram os iraquianos, a oitocentos metros de distância. Walker apressou^se a premir o botão de transmissão. Atenção, destruir os camiões. Entendido. Embora não dispusesse de bombas, nem mísseis, acondicionado na asa direita, havia um canhão Vulcan M-61-AI de vinte milímetros, capaz de expelir o carregador de quatrocentos e cinquenta projécteis com uma rapidez impressionante. A bala do canhão de vinte milímetros tem o tamanho de uma banana pequena e explode no momento do impacto, No caso de um camião com tropas, pode estragar-lhes os planos. Walker ligou a unidade de pontaria e viu os alvos na posição ideal no quadrante. O primeiro BRDM recebeu uma centena de balas e desintegrou-se num mar de chamas e o segundo não tardou a sofrer a mesma sorte. A vez dos camiões não se fez esperar e os sobreviventes correram freneticamente em direcção ao abrigo proporcionado por um grupo de rochas nas imediações. Dentro do uade, os quatro homens do SAS abarcaram a situação e trataram de subir para o seu transporte e abandonar o local da emboscada ao longo do curso de água seco. Os Eagle, por seu turno, ganharam altitude e rumaram ao ponto onde os aguardava o aparelho de abastecimento. O comandante da patrulha do SAS era um sargento chamado Peter Stephenson, que acenou na direcção dos "caças" que se afastavam; e murmurou: -Não sei quem vocês são, amigos, mas fico a dever-lhes um favor. Mrs. Maslowski possuía um jipe Suzuki como transporte de reserva que raramente conduzia e insistiu em que Terry Martin o utilizasse. Embora o seu voo de regresso a Londres não descolasse antes das cinco da tarde, ele partiu cedo porque não sabia que obstáculos se lhe deparariam pelo caminho. O Dr. Maslowski tinha de voltar para a faculdade, mas emprestou-lhe um mapa para que não se perdesse. 335 A estrada em direcção ao vale do rio Mocho obrigou-ò a passar de novo por Livermore, onde enveredou pela Mines Road. Teve sorte com as condições atmosféricas. O Inverno nunca é muito agreste nessa região, mas a proximidade do mar provoca nebulosidade e bancos de nevoeiro com frequência. Ora, naquele 27 de Janeiro, o céu apresentava-se límpido e o vento era fraco, embora fizesse algum frio. Cerca de vinte quilómetros adiante, Martin abandonou a Mines Road e entrou num caminho estreito que se estendia por uma encosta à beira de um precipício crescente, ao fundo do qual, em pleno vale, o rio Mocho brilhava ao Sol, no seu curso por entre as rochas. Por fim, desembocou numa extensão plana e arborizada. Pouco depois, passou por uma herdade isolada e, oito quilómetros adiante, avistou a cabana, de cuja chaminé se elevava uma estreita coluna de fumo azulado de lenha. ..
. Imobilizou o Land-Rover no pátio e apeou-se. Numa cerca próxima, uma vaca observou-o com aparente curiosidade. Como brotavam sons rítmicos do outro lado da cabana, Martin contornou-a e descobriu o papá Lomax numa pequena elevação rochosa sobranceira ao vale e rio em baixo. Tinha setenta e cinco anos e, apesar da preocupação de Sandy, o aspecto de quem lutava com ursos pardos como mero passatempo. Com cerca de um metro e oitenta e três de altura, jeans encardidas e camisa de xadrez, o velho cientista rachava lenha com a mesma facilidade com que qualquer pessoa cortava pão. Afinal, sempre deu com o sítio, hem? Ouvi-o aproximar-se. -Pousou o machado e aproximou-se do visitante, ao qual estendeu a mão. -Dr. Martin, salvo erro. Exacto. ",,,! -De Inglaterra? -Sim. Levou a mão à algibeira da camisa, puxou de uma bolsa de tabaco e um livro de mortalhas e começou a enrolar um cigarro. - Suponho que não é um político? - Não me tenho nessa conta. Emitiu um grunhido de aprovação. - Uma ocasião, trabalhei com um que passava o tempo a aconselhar-me a deixar de fumar. -Acendeu o cigarro e encheu os pulmões de fumo.-Bem, que o traz por cá? --Tenho de lhe pedir desculpa desde já -disse Martin, abrindo a pasta. -Talvez não passe de mera perda de tempo para ambos, mas gostava que desse uma olhadela a isto. 336 Lomax pegou na fotografia e observoU-a.
É realmente de Inglaterra? -Sem dúvida. -Fez uma viagem enorme só para me mostrar esta foto. -Reconhecera? -Que remédio. Passei cinco anos da minha vida a trabalhar lá. Martin teve a desconfortável sensação de que abria a boca de espanto. Trabalhou mesmo aí? Durante cinco anos. " -Em Tarmiya? -Onde diabo fica isso? Isto é Oak Ridge. , Desta vez, engoliu em seco várias vezes. - Escute, Dr. Lomax. Esta fotografia foi tirada há seis dias por um "caça" da Marinha dos Estados Unidos que sobrevoava uma fábrica bombardeada, no Iraque. O outro ergueu os olhos azuis brilhantes entre as pálpebras brancas e tornou a baixá-las para a foto. -O filho da mãe... Eu bem preveni os bastardos. Há três anos. "Escrevi um artigo em que advertia de que era este tipo de tecnologia o de utilização mais provável do Terceiro Mundo." Que lhe aconteceu? Acho que o rasgaram. Quem? ^ji) B -Quem havia de ser? Os cabeçudos. Sabe o que são esses discos dentro da fábrica. - Decerto. Calutrões. Isto é uma réplica da velha fábrica de Oak Ridge. Caiu... quê? Lomax voltou a erguer a vista. ;;; Imagino que não é médico? Ou físico? Não. A minha especialidade são os estudos arábicos. Calutrões. Ciclotrões californianos. A abreviatura dá calutrões. Que são, na realidade? separação de isótopos electromagnéticos, f45) Na sua linguagem, refinam Urânio 238 crude para filtrar o Urânio 235 das célebres bombas. Diz você que isto é no Iraque? Precisamente. Foi bombardeado por acaso, há uma semana. A fotografia é do dia seguinte. Até agora, ninguém sabia de que se tratava. (K) Electro-magnetic isotope separation. (N. do T.) 22 -O Punho de Deus 337 Volveu o olhar para o vale, ao mesmo tempo que expelia o fumo pelas narinas. Filho da mãe -repetiu. -Vivo aqui porque quero. Longe do smog e tráfego ruidoso. Tive a minha conta de tudo isso e bastou. Não possuo televisão, mas gosto de ouvir rádio. Isto diz respeito a Saddam Hussein, hem? Sim. Pode falar-me um pouco mais desses calutrões? -Foi em 1943 -murmurou, com uma expressão pensativa.-Há muito tempo, como vê. Já lá vão quase cinquenta anos. Antes de você nascer. Éramos então um pequeno grupo que tentava fazer o impossível, jovens, dinâmicos, engenhosos, e não sabíamos que se tratava de uma impossibilidade, Por conseguinte, fizemo-lo. Havia Fermi, da Itália, e Pontecorvo, Fuchs, da Alemanha, Nils Bohr, da Dinamarca, Nunn May, da Inglaterra, e outros. E nós, ianques: Urey, Oppie e Ernest. Eu era muito novo. Apenas vinte e sete anos. "A maior parte do tempo, limitávamo-nos a tentar fazer coisas que nunca tinham sido experimentadas e testar outras que se não podiam fazer. Dispúnhamos de um orçamento que hoje pareceria ridículo, pelo que trabalhávamos dia e noite e economizávamos, na medida do possível. Tinha de ser, pois o tempo urgia. Contra todas as previsões, conseguimo-lo, em três anos. Decifrámos os códigos e fabricámos a bomba. O Garoto e o Gordo. Depois a força aérea largouas em Hiroxima e Nagasaqui, e o mundo disse que não devíamos ter feito aquilo. O pior era que de contrário outros o fariam. A Alemanha nazi, a Rússia de Estaline..." Os calutrões... -lembrou Martin. Pois. Ouviu falar do Projecto Manhattan? Com certeza. -Pois bem, tínhamos vários génios em Manhattan; dois, em particular: Robert J. Oppenheimer e Ernest O. Lawrence. Sabe a quem me refiro? Muito bem;. Pensava que eram colegas, parceiros, hem? -Acho que sim. - Pois, engana-se. Eram rivais. Todos sabíamos que a chave de tudo se chamava "urânio", o elemento mais pesado do mundo. E, em 1941, também estávamos cientes de que somente o isótopo 235, mais leve, criaria a reacção em cadeia de que necessitávamos. A habilidade consistia em separar 0,7 por cento do 235 oculto algures na massa do Urânio 238. Quando a América entrou na guerra, recebemos um apoio substancial. Após anos de esquecimento, as altas esferas queriam resultados "ontem". Sempre a velha história. Por conseguinte, desunhámo-nos para separar esses isótopos. 338 -.,....? .:? "Oppenheimer voltou-se para a difusão do gás: reduzir o urânio a um fluido e depois a gás. O hexafluoreto de urânio, venenoso e corrosivo, difícil de manipular. A centrifugadora apareceu mais tarde, inventada por um austríaco capturado pelos russos, que passou a trabalhar em Sukhumi. Antes da centrifugadora, a difusão do gás era lenta e difícil. Lawrence enveredou pelo outro caminho: a separação electromagnética pela aceleração de partículas. Sabe o que isso significa? Receio bem que não. Basicamente, impelem-se os átomos a uma velocidade dos diabos e depois utilizam-se ímanes gigantescos para os fazer descrever uma curva. Dois carros de corrida entram velozmente numa curva, um pesado e o outro leve. Qual se despista? O pesado. Exacto. É esse o princípio. Os calutrões dependem de ímanes gigantescos com cerca de sete metros de largura. Estes discos -Lomax pousou o indicador nas "pastilhas elásticas" -são os ímanes. O conjunto é uma réplica do meu antigo bebé em Oak Ridge, Tennesses. Se funcionava, por que abandonaram o processo? - quis saber Martin. Por uma questão de rapidez. Oppenheimer chegou primeiro. O seu método era mais rápido. Os calutrões eram extremamente lentos e muito dispendiosos. Em 1945, e sobretudo quando o tal austríaco foi libertado pelos russos e nos visitou para mostrar a centrifugadora que inventara, a tecnologia dos calutrões foi abandonada. Passou ao domínio público. Qualquer pessoa pode obter os pormenores e os planos, na biblioteca do Congresso. Foi provavelmente o que os iraquianos fizeram. Os dois homens conservaram-se silenciosos por vários minutos. Está-me a dizer que o Iraque decidiu utilizar a tecnologia Ford de Modelo T e, como toda a gente pensou que se destinava a carros de corrida, ninguém deu por isso? -observou finalmente Martim. Mais ou menos. A memória das pessoas é curta. O velho Ford de Modelo T seria antigo, mas funcionava. Levava uma pessoa ao seu destino. Transportava-a de A para B. E avariava-se muito raramente. Os cientistas que o meu governo e o seu têm consultado sabem que o Iraque possui uma cascata de centrifugadoras de difusão de gás em funcionamento, há mais de um ano. Outra está na iminência de entrar em actividade, embora talvez isso ainda não acontecesse. Nessa base, calculam que os iraquianos não podem ter refinado urânio puro suficiente... digamos, trinta e cinco quilos... para fabricar uma bomba. 339
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