viar) nos sectores cerebrais intermédios. A regulaçäo biológica, a memó
ria de estudos prévios e a planificaçäo de acçöes futuras resultam duma
actividade cooperativa que se desenrola näo sá nos cortices sensoriais ini
ciais e nos cortices motores mas também nos sectores intermédios.
UMA MENTE INTEGRADA RESULTANTE
DE UMA ACTIVIDADE FRAGMENTADA
Uma intuiçäo comum, que é partilhada por muitos dos que gostam de
cogitar sobre a forma como o cérebro funciona, é a de que as múltiplas li
nhas de processamento sensorial experienciadas na mente imagens e
sons, sabor e aroma, textura superficiel e forma «ocorrem» todas nu
ma única estrutura cerebral. Em certa medida, é razoável pensar que o que
está em conjunto na mente está em conjunto num dado local do cérebro,
onde diferentes aspectos sensoriais se combinariam. A metáfora usual
tem um pouco a ver com um grande ecrä de Cinemascope equipado para
um glorioso Techiiicolor, com som estereofónico e odorante. Daniel Den
nett tem discutida este concerto, a que deu o titulo de «teatro cartesiano»,
e argumentou de forma persuasive, em termos de funçöes cognitivas, que
o teatro cartesiano näo pode existir'. Também eu defendo que, no plano
da neurociência, o teatro cartesiano é uma intuiçäo falsa.
Vou resumir aqui as minhas razöes, as quais tenho discutida por
menorizadamente noutros locaisl. O meu argumento principal contra a
noçäo de um local cerebral integrativo assenta na inexistência de uma
única regiäo no cérebro humano equipada para processar simultaneamen
te representaçöes de todas as modalidades sensoriais que estäo activas
O ELABORAR DE UMA EXPLICAÇAO
quando nôs experienciamos em simultäneo, por exemplo, o som, o movi
mento, a forma e a cor, num registo temporal e espacial perfeito.
Começamos agora a perceber onde é que a construçäo de imagens para
cada diferente modalidade tem a probabilidade de ocorrer, mas em sitio
algum iremos encontrar uma única área para a qual todos esses produtos
separados seriam projectados com exactidäo de registo.
É verdade que existera algumas regiöes do cérebro onde os sinais
vindos de muitas regiöes sensoriais iniciais diferentes podem convergir.
Algumas dessas regiöes de convergência recebem, de facto, uma vasta va
riedade de sinais polirnodais, como por exemplo os cortices entorinal e
peririnal. Mas é improvável que o tipo de integraçäo que essas regiöes
podem produzir ao utilizarem tais sinais seja o que forma a base para o
estabelecimento duma mente integrada. Isto porque a danificaçäo dessas
reglöes de convergência do mais alto nivel, mesmo quando ocorre em am
bos os hemisíérios, näo impede de todo a integraçäo «mental», ainda que
provoque outras consequências neuropsicológicas detectáveis, como por
exemplo limitaçöes na aprendizagem.
Talvez seja mais proveitoso pensar que o nosso forte sentido de in
tegraçäo mental é criado a partir da acçäo concertada dos sistemas de
grande escala, através da sincronizaçäo de conjuntos de actividade neural
em regiöes cerebrais separados na verdade, um truque de sincroni
zaçäo. Se a actividade ocorre em regiöes cerebrais anatomicamente se
parades, mas se a mesma decorre dentro de aproximadamente a mesma
«janela temporal»*, é ainda possivel ligar as partes escondidas, criando
assim a impressäo de que tudo ocorre no mesmo local.
Repare que isto näo é, de maneira alguma, uma explicaçäo sobre a
forma como o tempo faz a ligaçäo, mas antes uma sugestäo de que a sin
cronizaçäo** constitui uma parte importante do mecanismo.
A ideia da integraçäo pelo tempo tem emergido ao longo da última
década e aparece agora de forma proeminente no trabalho de vários teo
rizadoreS4.
Caso o cérebro utilize o tempo para integrar processos separados em
combinaçöes significativas, esta seria uma soluçäo sensata e económica,
más näo seria uma soluçäo desprovida de riscos e problemas. O principal
risco seria a dessincronizaçäo***.
Qualquer disfunçäo do mecanismo de regulaçäo do tempo criaria
provavelmente uma integraçäo adulterada ou uma desintegraçäo. Talvez
* Teniporal ivitidozo no original. (N. da T.)
** Timing no original. (N. da T.)
*** Mistiniiiig no original. (N. da T.)
112 O ERRO DE DESCARTES
seja isto que, de facto, acontece em estudos de confusäo causados por trau
matismos cerebrais ou em alguns sintomas de esquizofrenia e outras
doenças mentais. O problema fundamental criado pela ligaçäo pelo
tempo (time binding) tem a ver com a necessidade de manutençäo de uma
actividade intensa em diferentes locais durante o intervalo de tempo que
for necessário, para a elaboraçäo de combinaçöes signiíicativas e para o
processo do raciocinio e da tomada de decisöes. Por outras palavras, a
ligaçäo pelo tempo requer mecanismos de atençäo e de memória de traba
lho poderosos e efectivos, e a natureza parece ter acedido em fornecê los.
Cada sistema sensorial aparece equipado de modo a providenciar os
seus próprios mecanismos locais de atenç' äo e de memória de trabalho.
Mas, quando se trata dos processos de atençäo global e de memória de tra
balho, estudos em seres humanos, assim como experiências em animais,
sugerem que os cortices pré frontais e algumas estruturas do sistema lim
bico (o cingulo) säo essenciaisi. A misteriosa conexäo entre os processos
e os sistemas cerebrais discutida no principio deste capitulo pode ficar
agora mais clara.
IMAGENS DO AGORA, IMAGENS DO PASSADO
E IMAGENS DO FUTURO
O conheci inento factual que é necessário para o raciocinio e para a
tomada de decisöes chega à mente sob a forma de imagens. Debmcemo
nos, agora, sobre o possivel substrato neural dessas imagens.
Se olhar pela janela para uma paisagem de Outono, se ouvir a música
de fundo que está a tocar, se deslizar os seus dedos por uma superficie de
metal lisa ou ainda se ler estas palavras, linha apôs linha, até ao fim da pá
gina, estará a formar imagens de modalidades sensoriais diversas. As
imagens assim formadas chamam se imagens perceptivas.
Mas pode agora parar de prestar atençäo à paisagem, à música, à su
perficie metálica ou ao texto, e desviar os seus pensamentos para outra
coisa qualquer. Talvez esteja agora a pensar na sua tia Maria, na Torre Eif
fel, na voz do Placide Domingo ou naquilo que acabei de dizer acerca de
imagens. Qualquer desses pensamentos é também constituida por
imagens, independentemente de serem compostas principalmente por
formas, cores, movimentos, sons ou palavras faladas ou omitidas. Essas
imagens, que väo ocorrendo à medida que evocamos uma recordaçäo de
coisas do passada säo conhecidos como imagens evocadas, para poderem
ser distinguidas das imagens de tipo perceptivo.
O ELA50RAR DE UMA EXPLICAÇAÇ) 113
Ao utilizarmos imagens evocadas,,podemos recuperar um determi
nado tipo, de imagem do,passado, a qual,foi formada quando planeámos
qual ,@quer coisa que ainda näo aconteceu mas que esperamos que venha a
acontecer, como, por exemplo, reorganiz@r a nossa biblioteca no proximo
íim de semana. Enquant@ o processo de planificaçäo se desenrolou,
estiv@mos a formar,únagç@s de objectes e de movimentos e a consolidar
,a merporizaçäo dessa flcçäo,n,a,nossa mente. A natureza das imagens de
?i,lgp que ainda näo açonteceu, e que pode de facto nunca vir a acontecer,
nao é diferente da natureza das imagens acerca de al go que ja acon teceu
e que retemos. Elas constituera a memória de um futuro possivel e näo do
passaçio que já foi.
'Estas diversas imagens perceptivas, evocadas a partir do passada
real, e evpcadas a partirde planos para o futuro säo construçöes do cé
rebro do nosso, organisme. Tudo o que se pode saber ao certo é que sao
,reais para nos proprio,s e que há outros seres que constroem imagens do
mesmo tipo. Partilhamos com outros seres humanos, e até com alguns
animais, as imagens em que se apoia o nosso concerto clo mundo; existe
uma consistência notável nas construçöes,que diferentes individuos
elaboram'rel,ativas aos aspectos essenciais do ambiente (texiuras, sons,
f ormas, cores, espaço). Se os nossos organismos fossem desenhados de
maneiras diferentes, as construçöes que nós fazemos do mundo que nos
rodeia seriam igualmente diferentes. Näo sabemos, e é improvável que al
guma vez venhamos a saber, o que é a realidade «absoluta».
Como é que conseguimos criar estas maravilhosas construçöes? Elas
parecem ser engenáradas por uma maquinaria neural complexe de per
cepçäo, memorla e raciocinio. A construçäo é por vezes regulada pelo
mundo exterior ao cérebro, isto é, pelo mundo que está dentro do nosso
corpo ou à volta dele, com uma pequena ajuda da memória do passada.
É isto que se passa quando geramos imagens perceptivas. Outras vezes,
a construçäo é inteiramente dirigida pelo interior do nosso cérebro, pelo
nosso doce e silencioso processo de pensamento, de cima para baixo. É o
que se passa, por exemplo, quando evocamos a nossa melodia favorita ou
recordamos cenas visuais com os olhos fechados, quer as cenas sejam uma
reposiçäo de um aconteciinento real ou fruto da nossa imagmaçäo.
Porém, a actividade neural que está mais intimamente relacionada
com as imagens que experienciamos ocorre nos córtices sensoriais iniciais
e näo nas outras regiöes. A actividade nos côrtices sensoriais iniciais, quer
seja desencadeada pela percepçäo ou pela evocaçäo de recordaçöes, é um
resultado, por assim dizer, de processos complexes que operam insi
diosamente em numerosas regiöes do córtex cerebral e dos núcleos de
neuronios que se encontram abaixo do córtex, nos gänglios basais, no
Forum d. Ciê@@cia 29 8
114 O ERRO DE DESCARTES
tronco cerebral e noutros sitios. Ern suma: as imagens säo baseadas directa
mente nas representaçöes neurais, eapenas nessas, que ocorrem nos cortices sen
soriais iniciais e säo topograficamente organizadas. Mas säo formadas ou
sob o controlo de receptores sensoriais que estäo orientados para o ex
terior do cérebro (isto é, a retina) ou sob o controlo de representaçöes
disposicionais (disposiçöes) contidas no interior do cérebro, em regiöes
corticais e núcleos subcorticais.
Formaçäo de imagens perceptivas
Como é que se formam as imagens quando se apercebe de al
go no mundo exterior, como por exemplo uma paisagem, ou no
corpo, como por exemplo uma dor no cotovelo direito? Em am
bos os casos, existe um primeiro passo que é necessário mas näo
suficiente: os sinais emitidos pelo sector do corpo em questäo
(olho e retina, no primeiro caso; terminaçöes nervosas da arti
culaçäo do cotovelo, no segundo) säo transportados por neu
rónios, ao longo dos seus axónios e através de várias sinapses
electroquimicas, para o cérebro. Os sinais säo recebidos pelos
cortices sensoriais iniciais*. Para os sinais vindos da retina, a re
cepçäo acontecerá nos cortices visuais iniciais, localizados na
parte posterior do cérebro, no lobo occipital. Para os sinais vin
dos da articulaçäo do cotovelo, a recepçäo acontecerá nos cór
tices somatossensoriais iniciais, nas regiöes parietal e insular,
que säo o sector cerebral que se encontra danificado na ano
sognosia. É de salientar, novamente, que näo se trata de um cen
tro, mas de um coiijunto de áreas. Cada uma das áreas que fazem
parte do conjunto é complexe e a rede de interconexöes forma
da por ela é ainda mais complexe.
O funcionamento da maquinaria perceptiva dentro desses cortices iniciais
começa agora a ser cornpreendido. Os estudos do sistema visual, acerca do qual
uma grande quantidade de dados neuroanatámicos, neurofisiológicos e psicofí
sicos têm vindo a ser reunidos, estäo a abrir o caminho para esssa compreensäo,
mas existe ainda uma profusäo de outras novas descobertas sobre os sistemas so
matossensorial e auditivo. Todos estes cortices iniciais formam uma aliança dinâ
mica, e as representaçöes topograficamente organizadas que eles geram mudam
constantemente com o tipo e a quantidade de inforrnaçäo de entrada, como tem
sido demonstrado pelo trabalho de vários investigadores'.
O ELABORAR DE UMA EXPLICAÇAO 115
As representaçöes topograficamente organizadas resultam
näo de uma dessas áreas mas da sua interacçäo concertada. Näo
existe nada de frenológico nesta ideia.
Quando todos ou a maioria dos côrtices sensoriais iniciais de
uma dada modalidade sensorial säo destruidos, a capacidade
para formar imagens nessa modalidade desaparece. Os doentes
que estäo privados de côrtices visuais iniciais näo säo capazes
de ver grande coisa. (Nestes doentes algumas capacidades
sensoriais residuais säo preservadas, provavelmente porque as
estruturas corticais e subcorticais relacionadas com a modali
dade sensorial estäo intactas. Após uma destruiçäo extensa dos
cOrtices visuais iniciais, alguns doentes conseguem apontar
para focos de luz que confessam näo verem; eles têm o que é
conhecida por «visäo cega». Os cortices parietais, os coliculos
superiores e o tálamo säo apenas algumas das estruturas pos
sivelmente envolvidos nestes processos.) A deficiência percep
tiva pode ser especffica. Após a lesäo de um dos subsistemas
contidos nos côrtices visuais iniciais, por exemplo, pode se per
der a capacidade de ver cor; esta perda pode ser completa ou täo
diminufda que os doentes apercebem se das cores como se es
tas estivessem desvanecidas. Os doentes que säo afectados por
esta anomalia vêem a forma, o movimento e a profundidade,
mas näo a cor. Neste estado, a acromatopsia, os doentes cons
troem um universo em tons de cinzento.
Embora os côrtices sensoriais iniciais e as representaçöes
topograficamente organizadas que estes formam sejam ne
cessários para a ocorrência de imagens na consciência, eles näo
parecem, contudo, ser suficientes. Por outras palavras, se os
nossos cérebros apenas gerassem boas representaçöes topo
graficamente organizadas e nada mais fizessem com essas
representaçöes, duvido que alguma vez pudéssemos estar
conscientes da sua existência como imagens. Como é que sa
berfamos que elas säo as nossas imagens? A subjectividade, o
elemento chave da consciência, estaria ausente nesse desigil do
cérebro. Há outras condiçöes que têm de se concretizar também.
Essas representaçöes neurais têm de ser correlacionadas de
forma essencial com aquelas que, de momento a momento,
constituera a base neural para a construçäo do sel@.
Self é um eu sem linguagem. Optou se por manter a palavra inglesa, a fim
de näo se confundir com 1 (eu). (N. da T.)
116 O ERRO DE DESCARTES
Voltarei a este assunto nos Capítulos Sete e Dez, mas devo
dizer, neste ponto, que o selfnäo é o mal afamado homúnculo,
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