enganado, logo existo»)'. Mas, umas linhas mais adiante, Descartes escla
rece a afirmaçäo de forma inequivoca:
Por isso eu soube que era uma substäncia cuja essência inte
gral é pensar, que näo havia necessidade de um lugar para a
existência desta substäncia e que ela näo depende de algo ma
terial; entäo, este «eu», quer dizer, a ah na através da qual sou o
que sou, distingue se completamente do corpo e é ainda mais
fácil de conhecer do que este último; e, ainda que näo houvesse
corpo, a alma näo deixaria de ser o que é'.
É este o erro de Descartes: a separaçäo abissal'entre o corpo e a mente,
entre a substäncia corporal, infinitamente divisivel, com volume, com
dimensöes e com um funcionamento mecänico, por um lado, e a subs
täncia mental, indivisivel, sem volume, sem dimensöes e intangivel; a
sugestäo de que o raciocinio, o juizo moral e o sofrimento adveniente da
dor fisica ou agitaçäo emocional poderiam existir independentemente do
corpo. Em concrets: a separaçäo das operaçöes mais refinadas da mente,
para um lado, e da estrutura e funcionamento do organisme biológico,
para o outro.
Mas há quem possa perguntar por que motivo incomodar Descartes e
näo Platäo, cujas ideias sobre o corpo e a mente säo muito mais exaspe
rantes, como podemosverificarnofédon? Porque preocuparmo nos com
este erro especifico de Descartes? Afinal, alguns dos seus outros erros säo
bem mais espectaculares do que este. Descartes pensava que o calor fazia
circular o sangue, que as finas e minúsculas particulas do sangue se
transformavam em «espiritos anirnais», os quais conseguiam depois mo
ver os músculos. Por que näo censura lo por uma dessas noçöes? A razäo
é simples: há muito tempo que sabemos que ele estava errado nestes
aspectos concretos, e as perguntas sobre como e por que circula o sangue
receberam já uma resposta que nos satisfaz completamente. O mesmo já
256 O ERRO DE DESCARTES
näo sucede com as questöes relativas à mente, ao cérebro e ao corpo, em
relaçäo às quais o erro de Descartes continua a prevalecer. Para muitos,
as ideias de Descartes säo consideradas evidentes em si mesmas, e sem ne
cessitarem de alguma reavaliaçäo.
Pode bem ter sido a ideia cartesiana de uma mente separada do corpo
que esteve na origem, pelo meio do século xx, da metáfora da mente como
programa de softivare. De facto, se a mente pode ser separada do corpo,
talvez fosse possivel compreendê la sem recorrer à neurobiologia, sem
qualquer necessidade de saber neuroanatomia, neurofisiologia e neu
roquimica. É interessante e paradoxal que muitos investigadores em
ciência cognitiva, que julgam serem capazes de investigar a mente sem
qualquer recurso à neurobiologia, näo se considerem dualistas.
A separaçäo cartesiana pode estar também subjacente ao modo de
pensar de neurocientistas que insistera que a mente pode ser perfeita
mente explicada em termos de fenómenos cerebrais, deixando de lado o
resto do organisme e o meio ambiente fisico e social e, por conseguinte,
excluindo o facto de parte do próprio meio ambiente ser também um
produto das acçöes anteriores do organisme. Protesto contra esta restriçäo,
näo porque a mente näo estej a directamente relacionada com a actividade
cerebral mas porque esta formulaçäo restritiva é forçosamente incom
pleta e insatisfatória em termos humanos. É um facto incontestável que o
pensamento provém do cérebro, mas prefiro enquadrar esta afirmaçäo e
considerar as razöes por que os neurónios conseguem pensar täo bem.
Esta é, de facto, a questäo principal.
A ideia de uma mente descorporalizada* parece ter também moldado
a forma peculiar como a medicina ocidental aborda o estudo e o trata
mento da doença (ver o Postscriptiim).
A divisäo cartesiana domina tanto a investigaçäo como a prática mé
dica. Em resultado disso, as consequências psicológicas das doenças do
corpo propriamente dito, as chamados doenças reais, säo normalmente
ignoradas ou säo levadas em linha de conta muito mais tarde. Mais negli
genciado ainda é o inverse, os efeitos dos conflitos psicológicos no corpo.
É curiosa pensar que Descartes contribuiu para a alteraçäo do rumo da
medicina, ajudando a a abandonar a abordagem orgänica da mente
no corpo que predominou desde Hipócrates até ao Renascimento. Que
irritado que Aristôtles teria ficado se lhe tivessem dito.
Versöes do erro de Descartes obscurecem as raizes da mente humana
num organisme biologicamente complexe, mas frágil, finito e único;
obscurecem a tragédia implicita no conhecimento dessa fragilidade,
Dis bodied, no original. (N. da T.)
tIMA PAIXAO PELA RAZAO 257
finitude e singularidade. E, quando os seres humanos näo conseguem ver
a tragédia inerente à existência consciente, sentem se menos impelidos a
fazer algo para a minimizar e podem mostrar menos respeito pelo valor
da vida.
Os factos que apresentei relativos às sensaçöes e à razäo, juntamente
com outros que discuti acerca da interligaçäo entre o cérebro e o corpo
propriamente dito, däo apoio à ideia mais geral com a qual abri o livro:
que a compreensäo cabal da mente humana requer a adopçäo de uma
perspectiva do organisme; que näo só a mente tem de passar de um
cogitum näo fisico para o dorninio do tecido biológico, como deve também
ser relacionada com todo o organisme que possui cérebro e corpo inte
grados e que se encontra plenamente interactivo com um meio ambiente
fisico e social.
No entanto, a mente verdadeiramente incorporada que concebo näo
renuncia aos seus niveis mais refinados de funcionamento, aqueles que
constituera a sua alma e o seu espirito. Do meu ponto de vista, o que sé
passa é que a alma e o espirito, em toda a sua dignidade e dimensäo huma
na, säo os estudos complexes e únicos de um organisme. Talvez a coisa
que se toma mais indispensável fazermos no nosso dia a dia, enquanto
seres humanos, seja a de recordar a nós próprios e aos outros a complexi
dade, fragilidade, finitude e singularidade que nos caracterizam. É claro
que esta näo é uma tarefa fácil: mudar o espirito do seu pedestalnum algu
res inlocalizável para um lugar bem mais exacto, preservando ao mesmo
tempo a sua dignidade e a sua importäncia; reconhecer a sua origem hu
milde e a sua vulnerabilidade e ainda assim continuar a recorrer à sua
orientaçäo e conselho. Uma tarefa indispensável e dificil, sem dúvida,
mas sem a qual talvez seja melhor que o Erro de Descartes fique por
corrigir.
Fomrn da Ci@a 29 17
Postscriptum
O CORAÇÄO HUMANO EM CONFLITO
vozciopoetanäoprecisaapenasdeserumregistodohomem,po
,,Ade ser também um dos seus amparos, o pilar que o ajude a resis
tir e a prevalecer.»' William Faulkner escreveu estas palavras cerca de
1950, mas mantêm toda a sua actualidade. O público que tinha em mente
era composto pelos seus colegas escritores, mas o que disse podia per
feitamente aplicar se áqueles que estudam o cérebro e a mente. A voz do
cientista pode ser mais do que o mero registo da vida tal como ela é; o
conhecimento cientifico pode constituir um pilar que ajude os seres
humanos a resistir e a vingar. Escrevi este livro convicto de que o conhe
cimento em geral e o conhecimento neurobiológico em particular têm
uma funçäo importante a desempenhar no destino humano; convicto de
que, se realmente o quisermos, o profundo conhecimento do cérebro e da
mente ajudará a alcançar a felicidade, cuja procura tem estimulado tanto
progresse desde há dois séculos e ajudará a manter a liberdade que Paul
Éluard descreveu täo gloriosamente no seu poema «Liberté»'.
No mesmo texto que citei acima, Faulkner acusa os seus colegas de
profissäo de «terem esquecido os problemas do coraçäo humano em con
flito consigo próprio, o único tema que pode resultar em boa literatura,
porque só acerca dele vale a pena escrever e sofrer a agonia e o cansaço».
Pede lhes que näo deixem espaço nos seus trabalhos «para nada que näo
seja as antigas realidades e verdades do coraçäo, as velhas verdades uni
versais sem as quais qualquer história é efémera e condenada amor e
honra, e piedade, e orgulho, e compaixäo e sacrifício».
É tentador e encorajante acreditar, indo talvez para além das palavras
POSTSCRIPTUM 259
de Faulkner, quenäosó aneurobiologia nos pode ajudarna compreensäo
e na compaixäo da condiçäo humana mas que, ao fazê 1o, nos pode aju
dar a compreender os conflitos sociais e contribuir para a sua diminuiçäo.
Näo quero com isto dizer que a neurobiologia possa salvar o mundo, mas
apenas que o aumento gradual de conhecimelitos sobre os seres humanos
nos pode ajudar a encontrar melhores formas de gerir as coisas humanas.
Há já algum tempo que os seres humanos se encontram a atravessar
uma nova fase evolutiva em termos ii itelectuais, na qual as suas mentes
e os seus cérebros tanto podem se'r escravos como donos dos seus corpos
e das sociedades que constituera. É claro que há imensos riscos quando os
cérebros e as mentes que vieram da natureza resolvem fazer de aprendiz
de feiticeiro e influenciar a próprianatureza. Mas também é arriscado näo
aceitar o desafio e näo tentar minimizar o sofrimento. Os riscos de näo se
fazer coisa nenhuma säo ainda majores. Fazer apenas o que a natureza
dita só pode agradar áqueles que näo conseguem imaginar mundos
melhores e alternatives melhores, áqueles que pensam quejá estäo no me
lhor dos possiveis mundos'.
A NEUROBIOLOGIA MODERNA
E A IDEIA DE MEDICINA
Há algo de paradoxal na nossa cultura relativamente à conceptuali
zaçäo da medicina e relativamente aos seus profissionais. Há muitos
médicos que se interessam pelas humanidades, das artes à literatura e à
filosofia. Há um número surpreendentemente grande de médicos que se
tornaram poetas, romancistas e dramaturgos de destaque, e houve vários
que reflectiram com profundidade sobre a condiçäo humana e abor
daram sabiamente as suas dimensöes fisiolôgica, social e politica. E, no
entanto, as escolas de medicina de onde eles provêm ignoram, na sua
maior parte, essas dimensöes humanas, concentrando se na fisiologia e
na patologia do corpo propriamente dito. A medicina ocidental, e em par
ticular a medicina dos Estados Unidos, alcançou a glória através da ex
pansao da medicina interna e das subespecialidades cirúrgicas, tendo
ambas como objective o diagnóstico e o tratamento de órgäos e sistemas
doentes em todo o corpo. O cérebro (mais concretamente, os sistemas ner
vosos central e periférico) foi incluido nesse empreendimento, uma vez
que era um desses «órgäos». Mas o seu produto mais precioso, a mente,
näo foi alvo de grande preocupaçäo por parte da corrente central da
260 O ERRO DE DESCARTES
medicina e, na verdade, näo tem constituido o tópico principal da especia
lidade associada ao estudo das doenças do cérebro: a neurologie. Talvez
näo tenha sido por acaso que a neurologia americana começou como sub
especialidade da medicina interna e apenas se autonomizou no século xx.
O resultado desta tradiçäo tem sido uma considerável negligência da
mente enquanto funçäo do organisme. Poucas escolas de medicina ofe
recem actualmente aos seus estudantes qualquer formaçäo acerca da
mente normal, formaçäo essa que pode ser fornecida apenas num cur
riculo com fortes componentes em psicologia geral, neurofisiologia e
neurociência. As escolas de medicina proporcionam estudos da mente
doente que se encontra nas doenças mentais, mas é espantoso ver que, por
vezes, os estudantes começam a aprender psicopatologia sem nunca te
rem aprendido psicologia normal.
Há diversas razöes subjacentes a esta situaçäo, e suponho que a maior
parte delas provém de uma perspectiva cartesiana da condiçäo humana.
Ao longo dos três últimos séculos, o objective da biologia e da medicina
tem sido a compreensäo da fisiologia e da patologia do corpo. A mente foi
excluida, tendo sido em grande parte relegada para o campo da religiäo
e da íilosofia, e, mesmo depois de se ter tornade o tema de uma disciplina
especifica, a psicologia, só recentemente lhe foi permitida a entrada na
biologia e na medicina. Sei que há louváveis excepçöes a este panorama,
mas elas vêm apenas reforçar a ideia que estou a dar sobre a situaçäo geral.
O resultado de tudo isto tem sido uma amputaçäo do concerto de na
tureza humana com o qual a medicina trabalha. Näo surpreende que, de
um modo geral, as consequências do corpo sobre a mente mereçam uma
atençäo secundária, ou näo mereçam mesmo qualquer atençäo. A medi
cina tem demorado a aperceber se de que aquilo que as pessoas sentem
em relaçäo ao seu estado fisico é um factor principal no resultado do tra
tamento. Ainda sabemos muito pouco acerca do efeito placebo, através
do qual os doentes apresentam uma reacçäo melhor que aquela que uma
determinada intervençäo médica levaria a esperar. (O efeito placebo pode
ser avaliado através do efeito de comprimidos ou injecçöes que, sem o
doente saber, näo contêm qualquer ingrediente farmacológico e se pre
sume deste modo näo terem qualquer influência, positiva ou negativa.)
Por exemplo, näo sabemos quem é mais susceptivel de reagir com efeito
placebo ou se somos todos susceptíveis de reagir com tal efeito. Des
conhecemos também até onde pode ir o efeito placebo e até que ponto se
pode aproximar do resultado de um medicamento activo. Sabemos muito
pouco sobre a maneira de induzir o efeito placebo e näo temos a menor
ideia sobre o grau de erro criado pelo efeito placebo nos double blind.
Começa finalmente a ser aceite o facto de as perturbaçöes psicológicas
POSTSCRIPTUM 261
poderem provocar doenças no corpo, mas continuam por estudar as
circunstäncias em que isso se verifica e o grau que atinge. É claro que as
nossas avós conheciam bem o assunto: diziam nos que o sofrimento, a
preocupaçäo obsessiva, o mau humor, e assim por diante, podiam estra
gar a pele e tomar nos mais atreitos a infecçöes, mas tudo isso tinha um
ar «folclórico» e nada tinha de convincente em termos cientificos. A medi
cina demorou muito tempo a descobrir que valia a pena tomar em consi
deraçäo o que estava por ctetrás de tanta sabedoria humana.
A negligência cartesiana da mente, por parte da biologia e da medicina
ocidentais, tem tido duas consequências negativas principais. A primera
situa se no campo da ciência. O esforço para compreender a mente em
termos biolôgicos em geral atrasou se várias décades e pode dizer se que
só agora começa. Mais vale tarde do que nunca, sem qualquer dúvida,
mas o atraso significa também que se tem vindo a perder o impacte po
tencial que um conhecimento profundo da biologia da mente poderia ter
tido nos problemas das sociedades humanas.
A segunda consequência negativa relaciona se com o diagnéstico e
com o tratamento eficaz das doenças que nos confrontam. É bem verdade
que todos os grandes médicos têm sido homens e mulheres que nao sao
apenasbem versadosno essencial da fisiopatologia da sua época, mas que
também estäo à vontade, dado o bom senso e a sabedoria que acumu
laram, no que toca aos conflitos do coraçäo humano. Têm sido peritos
eximios no diagnéstico e no tratamento graças a uma combinaçäo de
conhecimentos e talents. No entanto, estariamos a iludir nos se pensás
semos que o nivel padräo da prática da medicina no mundo ocidental é
o desses médicos famosas que todos conhecemos. Uma imagem distor
cida do organismohumano,juntamente com o crescimento assoberbador
do conhecimento e com a necessidade de subespecializaçäo, tornam a me
dicina cada vez mais inadequada. A medicina bem poderia dispensar o
acréscimo de problemas que a sua dimensäo industriel agora lhe traz, mas
também estes näo param de se avolumar e agravam, por certo, o seu de
sempenho.
O problema do abismo que separa o corpo da mente na medicina
ocidental ainda näo é matéria de debate para o público em geral, embora
pareça já ter sido detectado. Suspeito que o êxito de algumas formas da
chamada medi@a «alternativa», em especial daquelas que estäo ligadas
à tradiçäo de medicinas näo ocidentais, constitui uma reacçäo com
pensatória a este problema. Há que admirar e aprender essas formas de
medicina alternative, mas, infelizmente, e independentemente da sua
adequaçäo em termos humanos, o que oferecem näo chega para tratar efi
cazmente as doenças humanas. Com toda a jus tiça, devemos admitir que
262 O ERRO DE DESCARTES
até mesmo a medíocre medicina ocidental resolve um número extraordi
nário de problemas. No entanto, as formas de medicina altemativa vêm
colocar em destaque o ponto fraco da tradiçäo médica ocidental, que de
veria ser cientificamente corrigido dentro da própria medicina çientifica.
Se, como julgo, o êxito actual das medicinas alternativas é um indicio da
insatisfaçäo do público em relaçäo à incapacidade de a medicina tradi
cional considerar o ser humano como um todo, é de prever que essa insa
tisfaçäo irá aumentar nos próximos anos@ à medida que se aprofundar a
crise espiritual da sociedade ocidental.
Näo parece provável que diminuam, a breve trecho, a proclamaçäo de
sentimentos feridos, a procura desesperada da diminuiçäo da dor e do so
frimento individuais ou o chorar inarticulado pela perda do equili'brio e
felicidade anteriores, nunca alcançados, a que a maioria dos seres huma
nos aspira'. Seria absurde pretender que a medicina curasse sozinha uma
cultura doente, mas é igualmente absurde ignorar esse aspecto da doença
humana.
UMA NOTA SOBRE OS LIMITES ACTUAIS
DA NEUROBIOLOGIA
Ao longo deste livro, tenho vindo a falar de factos aceites, de factos em
discussäo e de interpretaçöes de factos; de ideias partilhadas ou näo por
muitos de nós nas ciências do cérebro e da mente; de coisas que säo como
eu digo e de coisas que podem ser como eu digo. O leitor talvez tenha
ficado surpreendido com a minha insistência de que reina a incerteza
sobre tantos «factos» e de que tanto do que se pode dizer sobre o cérebro
deve ser apresentado como hipóteses de trabalho. Naturalmente que gos
taria de poder afirmar que sabemos com certeza como é que o cérebro cria
a mente, mas näo o posso fazer e receio bem que ninguém possa.
Chamo a atençäo para o facto de que a falta de respostas deíinitivas so
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