flito consigo próprio, o único tema que pode resultar em boa literatura,
porque sá acerca dele vale a pena escrever e sofrer a agonia e o cansaço».
Pede lhes que näo deixem espaço nos seus trabalhos «para nada que näo
seja as antigas realidades e verdades do coraçäo, as velhas verdades uni
versais sem as quais qualquer história é efémera e condenada amor e
honra, e piedade, e orgulho, e compaixäo e sacrificio».
É tentador e encoraj ante acreditar, indo talvez para além das palavras
POSTSCRIPTUM 259
de Faulkner, que näo sO a neurobiologianos pode ajudarna compreensäo
e na compaixäo da condiçäo humana mas que, ao fazê 1o, nos pode aju
dar a comipreender os conflitos sociais e contribuir para a sua diminuiçäo.
Näo quero com isto dizer que a neurobiologia possa salvar o mundo, mas
apenas que o aumento gradual de conhecimentos sobre os seres humanos
nos pode ajudar a encontrar melhores formas de gerir as coisas humanas.
Há já algum tempo que os seres humanos se encontram a atravessar
uma nova fase evolutiva em termos ilitelectuais, na qual as suas mentes
e os seus cérebros tanto podem se'r escravos como donos dos seus corpos
e das sociedades que constituera. É claro que há imensos riscos quando os
cérebros e as mentes que vieram da natureza resolvem fazer de aprendiz
de feiticeiro e influenciar a próprianatureza. Mas também é arriscado näo
aceitar o desafio e näo tentar minimizar o sofrimento. Os riscos de näo se
fazer coisa nenhuma säo ainda majores. Fazer apenas o que a natureza
dita só pode agradar áqueles que näo conseguem imagin@ir murdos
melhores e alternativas melhores, áqueles que pensam quejá estäo no me
lhor dos possiveis mundoS3.
A NEUROBIOLOGIA MODERNA
E A IDEIA DE MEDICINA
Há algo de paradoxal na nossa cultura relativamente à conceptuali
zaçäo da medicina e relativamente aos seus profissionais. Há muitos
médicos que se interessam pelas humanidades, das artes à literatura e à
filosofia. Há um número surpreendentemente grande de médicos que se
tornaram poetas, romancistas e dramaturgos de destaque, e houve vários
que reflectiram com profundidade sobre a condiçäo humana e abor
daram sabiamente as suas dimensöes fisiológica, social e politica. E, no
entanto, as escolas de medicina de onde eles provêm ignoram, na sua
maior parte, essas dimensöes humanas, concentrando se na fisiologia e
na Patologia do corpo propriamente dito. A medicina ocidental, e em par
ticular a medicina dos Estados Unidos, alcançou a glória através da ex
pansäo da medicina interna e das subespecialidades cirúrgicas, tendo
ambas como objective o diagnôstico e o tratamento de órgäos e sistemas
doentes em todo o corpo. O cérebro (mais concretamente, os sistemas ner
vosos central e periférico) foi incluido nesse empreendimento, uma vez
que era um desses «órgäos». Mas o seu produto mais precioso, a mente,
näo foi alvo de grande preocupaçäo por parte da corrente central da
260 O ERRO DE DESCARTES
medicina e, na verdade, näo tem constituido o tópico principal da especia
lidade associada ao estudo das doenças do cérebro: a neurologie. Talvez
näo tenha sido por acaso que a neurologia americana começou como sub
especialidade da medicina intema e apenas se autonomizou no século xx.
O resultado desta tradiçäo tem sido uma considerável negligência da
mente enquanto funçäo do organisme. Poucas escolas de medicina ofe
recem actualmente aos seus estudantes qualquer formaçäo acerca da
mente normal, formaçäo essa que pode ser fornecida apenas num cur
riculo com fortes cornponentes em psicologia geral, neurofisiologia e
neurociência. As escolas de medicina proporcionam estudos da mente
doente que se encontranas doenças mentais, mas é espantoso ver que, por
vezes, os estudantes começam a aprender psicopatologia sem nunca te
rem aprendido psicologia normal.
Há diversas razöes subjacentes a esta situaçäo, e suponho que a maior
parte delas provém de uma perspectiva cartesiana da condiçäo humana.
Ao longo dos três últimos séculos, o objective da biologia e da medicina
tem sido a compreensäo da fisiologia e da patologia do corpo. A mente foi
excluida, tendo sido em grande parte relegada para o campo da religiäo
e da filosofia, e, mesmo depois de se ter tornade o tema de uma disciplina
especifica, a psicologia, só recentemente lhe foi permitida a entrada na
biologia e na medicina. Sei que há louváveis excepçöes a este panorama,
mas elas vêm apenas reforçar a ideia que estou a dar sobre a situaçäo geral.
O resultado de tudo isto tem sido uma amputaçäo do concerto de na
tureza humana com o qual a medicina trabalha. Näo surpreende que, de
um modo geral, as consequências do corpo sobre a mente mereçam uma
atençäo secundária, ou näo mereçam mesmo qualquer atençäo. A medi
cina tem demorado a aperceber se de que aquilo que as pessoas sentem
em relaçäo ao seu estado fisico é um factor principal no resultado do tra
tamento. Ainda sabemos muito pouco acerca do efeito placebo, através
do qual os doentes apresentam uma reacçäo melhor que aquela que uma
determinada intervençäo médica levaria a esperar. (O efeito placebo pode
ser avaliado através do efeito de comprimidos ou injecçöes que, sem o
doente saber, näo contêm qualquer ingrediente farmacológico e se pre
sume deste modo näo terem qualquer influência, positiva ou negativa.)
Por exemplo, näo sabemos quem é mais susceptivel de reagir com efeito
placebo ou se somos todos susceptiveis de reagir com tal efeito. Des
conhecemos também até onde pode ir o efeito placebo e até que ponto se
pode aproximar do resultado de um medicamento activo. Sabemos muito
pouco sobre a maneira de induzir o efeito placebo e näo temos a menor
ideia sobre o grau de erro criado pelo efeito placebo nos double blind.
Começa finalmente a ser aceite o facto de as perturbaçöes psicológicas
POSTSCRIPTUM 261
poderem provocar doenças no corpo, mas continuam por estudar as
circunstäncias em que isso se verifica e o grau que atinge. É claro que as
nossas avós conheciam bem o assunto: diziam nos que o sofrimento, a
preocupaçäo obsessiva, o mau humor, e assim por diante, podiam estra
gar a pele e tomar nos mais atreitos a infecçöes, mas tudo isso tinha um
ar «folclórico» e nada tinha de convincente em termos cientificos. A medi
cina demorou muito tempo a descobrir que valia a pena tomar em consi
deraçäo o que estava por detrás de tanta sabedoria humana.
A negligência cartesiana da mente, por parte da biologia e da medicina
ocidentais, tem tido duas consequências negativas principais. A primera
situa se no campo da ciência. O esforço para compreender a mente em
termos biológicos em geral atrasou se várias décodas e pode dizer se que
só agora começa. Mais vale tarde do que nunca, sem qualquer dúvida,
mas o atraso significa também que se tem vindo a perder o impacte po
tencial que um conhecimento profundo da biologia da mente poderia ter
tido nos problemas das sociedades humanas.
A segunda consequência negativa relaciona se com o diagnóstico e
com o tratamento eficaz das doenças que nos confrontam. É bem verdade
que todos os grandes médicos têm sido homens e mulheres que nao sao
apenas bem versados no essencial da fisiopatologia da sua época, mas que
também estäo à vontade, dado o bom senso e a sabedoria que acumu
laram, no que toca aos conflitos do coraçäo humano. Têm sido peritos
eximios no diagnóstico e no tratamento graças a uma combinaçäo de
conhecimentos e talents. No entanto, estariamos a iludir nos se pensás
semos que o nivel padräo da prática da medicina no mundo ocidental é
o desses médicos famosas que todos conhecemos. Uma imagem distor
cida do organisme humano,juntamente com o crescimento assoberbador
do conhecimento e com a necessidade de subespecializaçäo, tornam a me
dicina cada vez mais inadequada. A medicina bem poderia dispensar o
acréscimo de problemas que a sua dimensäo industrial agora lhe traz, mas
também estes näo param de se avolumar e agravam, por certo, o seu de
sempenho.
O problema do abismo que separa o corpo da mente na medicina
ocidental ainda näo é matéria de debate para o público em geral, embora
pareça já ter sido detectado. Suspeito que o êxito de algumas formas da
chamada medicina «alternativa», em especial daquelas que estäo ligadas
à tradiçäo de medicinas näo ocidentais, constitui uma reacçäo com
pensatória a este problema. Há que admirar e aprender essas formas de
medicina alternativa, mas, infelizmente, e independentemente da sua
adequaçäo em termos humanos, o que oferecem näo chega para tratar efi
cazmente as doenças humanas. Com toda a justiça, devemos admitir que
262 O ERRO DE DESCARTES
até mesmo a mediocre medicina ocidental resolve um número extraordi
nário de problemas. No entanto, as formas de medicina altemativa vêm
colocar em destaque o ponto fraco da tradiçäo médica ocidental, que de
veria ser cientificamente corrigido dentro da própria medicina çientifica.
Se, como julgo, o êxito actual das medicinas alternativas é um indicio da
insatisfaçäo do público em relaçäo à incapacidade de a medicina tradi
cional considerar o ser humano como um todo, é de prever que essa insa
tisfaçäo irá aumentar nos próximos anos@ à medida que se aprofundar a
crise espiritual da sociedade ocidental.
Näo parece provável que diminuam, a breve trecho, a proclamaçäo de
sentimentos feridos, a procura desesperada da diminuiçäo da dor e do so
frimento individuais ou o chorar inarticulado pela perda do equilíbrio e
felicidade anteriores, nunca alcançados, a que a maioria dos seres huma
nos aspira'. Seria absurde pretender que a medicina curasse sozinha uma
cultura doente, mas é igualmente absurde ignorar esse aspecto da doença
humana.
UMA NOTA SOBRE OS LIMITES ACTUAIS
DA NEUROBIOLOGIA
Ao longo deste livro, tenho vindo a falar de factos aceites, de factos em
discussäo e de interpretaçöes de factos; de ideias partilhadas ou näo por
muitos de nós nas ciências do cérebro e da mente; de coisas que säo como
eu digo e de coisas que podem ser como eu digo. O leitor talvez tenha
ficado surpreendido com a minha insistência de que reina a incerteza
sobre tantos «factos» e de que tanto do que se pode dizer sobre o cérebro
deve ser apresentado como hipôteses de trabalho. Naturalmente que gos
taria de poder afirmar que sabemos com certeza como é que o cérebro cria
a mente, mas näo o posso fazer e receio bem que ninguém possa.
Chamo a atençäo para o facto de que a falta de respostas definitivas so
bre as questöes do cérebro/mente näo constitui motivo de desespero e
näo deve ser vista como um sinal de fracasse ilos campos cientificos que
se encontram actualmente empenhados nesse empreendimento cienti
fico. Muito pelo contrário, o moral das tropas é elevado, uma vez que o
ritmo a que väo surgindo novas descobertas é maior do que nunca. A falta
de explicaçöes concretas e exaustivas näo indica um impasse. Há razöes
para se crer que chegaremos a explicaçöes satisfatórias, mas seria tolice
estabelecermos uma data para quando tal vai acontecer, e seria mais tolice
POSTSCRIPTUM 263
ainda se disséssemos que estäo ali ao virar da esquissa. Se existe algum
motive para preocupaçäo, ele deve se näo à falta de progresse mas antes
à torrente de factos novos que a neurociência vai revelando e à ameaça de
que possam submergir a capacidade de pensar com clareza.
Poderá pergunta ' r por que é que, se se possui toda esta profusäo de
factos novos, näo há respostas definitivas? Por que é que näo podemos
apresentar uma descriçäo precisa e exaustiva do modo como vemos e,
mais importante, como é que existe um self que consegue ver?
A principal razäo da demora poder se ia talvez dizer até que a
@inicarazäo éaenormecomplexidadedosproblemasparaos quaisnäo
precisamos respostas. É óbvio que o que queremos compreender depende,
em larga medida, do funcionamento de neur'onios, e que dispomos de
conhecimentos substanciais sobre a estrutura e a funçäo desses neuró
nios, até às moléculas que os constituera e os levam a fazer o que melhor
fazem: disparar com certos padröes de excitaçäo. Até sabemos algumas
coisas sobre os genes que criam esses neurónios e os fazem actuar de de
terminada maneira. Mas, nitidamente, as mentes humanas dependem da
excitaçäo geral desses neurónios na medida em que constituera agre
gados de grande complexidade que väo desde circuitos locais, à escala
microscópica, a sistemas macrosco'picos que se estendem por vários cen
timetros. Existera vários milhares de milhöes de neurónios nos circuitos
de um cérebro humano. O número de sinapses formadas entre estes
neurónios é de, pelo menos, 10 triliöes, e o comprimento dos cabos dos
axónios que formam os circuitos neurais atinge váriascentenas de milhares
de quilómetros. (Agradeço a Charles Stevens, neurobiólogo do Instituts
Salk, esta estimativa informal.) O produto da actividade nestes circuitos
constitui um padräo de estimulaçäo que é transmitido a outro circuito. Es
te outro circuito pode ou näo activar se, o que depende de uma série de
influências, algumas locais, fornecidas por outros neurónios que termi
nam nas proximidades, outras globais, trazidas por compostes quimicos,
como as hormonas, que chegam pelo sangue. A escala temporal para a
produçäo de impulsos é extremamente pequena o que quer dizer que,
num segundo da vida das nossas mentes, o cérebro produz mithöes cl@e
padröes de impulsos numa grande diversidade de circuitos distribuidos
por várias regiöes do cérebro.
É evidente que os segredos da base neural da mente näo podem ser
descobertos através da revelaçäo de todos os mistérios de um único neu
rónio, por muito tipico que ele possa.ser; ou através do desvendamento
de todos os padröes complicados de actividade localnum circuito de neu
rónios tipico. Numa primera aproximaçäo, os segredos elementares da
mente residem na interacçäo dos padröes de impulsos criados pormuitos
264 O ERRO DE DESCARTES
circuitos neurais, a nivel local e global, momento a momento, dentro do
cérebro de um organisme vivo.
Näo há uma resposta única e simples para o enigma cérebro/mente,
mas antes muitas respostas, ligadas às inúmeras componentes do sistema
nervoso nos seus diversos niveis de estrutura. A abordagem necessá
ria para se compreender esses niveis requer diversas técnicas e processa se
em diferentes ritmos. Parte do trabalho pode ser baseado nas experiências
em animais, e estas tendem a desenvolver se com rel@itiva rapidez.
Mas um outro tipo de trabalho só pode ser levado a efeito em seres hu
manos, com as devidas reservas e limitaçöes éticas, e aqui O ritmo é mais
lento.
Há quem tenha perguntado por que motivo näo alcançou ainda a
neurociência resultados täo espectaculares como os que a biologia mo