opçöes e consequências prováveis. Por outras palavras, revelava se su
ficiente raciocinar sobre o problema, mas näo era necessário levar o ra
ciocinio a culminer numa decisäo. O desempenho normal desta tarefa de
monstrou a existência de conhecimento social e de acesso a ele, mas näo
revelou nada sobre o processo ou a escolha em si. A vida real tem o poder
de nos forçar a fazer escolhas. Se näo nos submetemos a esta pressäo,
podemos tomar nos täo indecisos como Elliot.
A distinçäo acima referida tem exemplo ilustrativo nas próprias pa
lavras de Elliot. No fim de uma sessäo, depois de ter produzido uma
quantidade abondante de opçöes de acçäo, todas elas válidas e exequi
veis, Elliot sorriu, aparentemente satisfeito com a sua imaginaçäo fértil,
mas acrescentou: «E, depois de tudo isto, ainda näo saberia o que fazer!»
Mesmo que tivéssemos utilizado testes que impusessem a Elliot fazer
uma escolha em cada item, as condiçöes continuariam a diferir das cir
cunstäncias da vida real. Ele teria estado a lidar apenas com o conjunto
original de restriçöes e näo com novas restriçöes resultantes de uma res
posta inicial. Se se tratasse da «vida real», para cada opçäo oferecida por
Elliot numa determinada situaçäo, teria existido uma contra resposta, o
UM PHINEAS GAGE MODERNO 69
que teria modificada a situaçäo e requerido um conjunto adicional de
opçöes, a serem fornecidas por Elliot, o que teria conduzido a mais uma
resposta ainda, e, por sua vez, à necessidade de um outro conjunto de
opçöes, e assim por diante. Por outras palavras, a evoluçäo continua,
ilimitada e incerta das situaçöes da vida real näo constava das tarefas
laboratoriais. No entanto, o objective do estudo de jeffrey Saver era ana
lisar o estado e a acessibilidade da base de conhecimentos em si mesmos.
Näo era a análise do processo de raciocinio e de decisäo que utilizaria
esses conhecimentos.
Devo salientar outras diferenças entre a vida real e as tarefas labora
toriais. A escala de tempo dos acontecimentos considerados nas tarefas
estava condensada, em vez de corresponder à real. Näo era real tilne. Em
algumas circunstäncias, o processamento no tempo real pode requerer a
retençäo de informaçäo na mente representaçöes de pessoas, objectes
ou cenas, por exemplo por periodos mais longos, especialmente se sur
gem novas opçöes ou consequências que requerem comparaçäo. Além
disso, nas nossas tarefas, as situaçöes e as questöes sobre elas foram apre
sentadas quase por completo através da linguagem. É muito frequente a
vida real apresentar nos uma mistura maior de material imagético e lin
guistico. Somos confrontados com pessoas e com objectos; com imagens,
sons, aromas, etc; com cenas de intensidades variadas; e com todo o tipo
de narrativas verbais ou pictóricas que criamos para os acompanhar.
A parte estas lacunas, tinhamos feito progresses. Os resultados suge
riam que näo deviamos atribuir a deficiência da capacidade de decisäo de
Elliot à ausência de conhecimento social, a um acesso deficiente a tal
conhecimento ou a uma limitaçäo elementar do raciocinio ou, ainda
,menos, a um defeito elementar na atençäo ou na memória de trabalho
relativos ao processamento do conhecimento de factos necessário para
tomar decisöes nos domínios pessoal e social. A deficiência parecia ra
dicar se nos estádios de raciocinio mais avançados próximo de ou no
momento em que a concretizaçäo de uma escolha ou a selecçäo de uma
resposta devem ocorrer. Por outras palavras, o que quer que corresse mal
corria mal numa fase avançada do processo. Elliot era incapaz de fazer
uma escolha eficiente e podia näo chegar sequer a fazer qualquer escolha,
ou escolher mal. Recordamos como ele divagava face a uma dada tarefa
e passava horas enfiado num beco sem saida. Ao sermos confrontados
com uma tarefa, um sem número de opçöes abrem se à nossa frente, e
temos de seleccionar correctamente o nosso caminho, dia após dia, se
quisermos continuar em frente. Elliotji näo conseguia seleccionar esse c@i
minho. A razäo desta incapacidade era o mistério.
Estava agora certo de que Elliot tinha muito em comum com Phineas
70 O ERRO DE DESCARTES
Gage. Os seus comportamentos sociais e as suas deficiências na tomada
de decisöes eram compativeis com uma base de conhecimentos sociais
normal e com a preservaçäo de funçöes neuropsicológicas do mais alto
nivel, tais como a memória convencional, a linguagem, a atençäo ele
mentar, a memória de trabalho elementar e o raciocinio elementar. Além
disso, estava certo de que, no caso de Elliot, o defeito era acompanhado
de uma reduçäo na capacidade de reacçäo emocional e da vivência dos
sentimentos. (É provável que o defeito emocional também estivesse pre
sente no caso de Gage, mas os documentes existentes näo nos permitem
ter a certeza. Podemos deduzir que Gage näo sentia vergonha ou emba
raço dado o uso que fazia da linguagem obscena e da exposiçäo pública
da sua própria desgraça.) Também tinha uma forte suspeita de que o
defeito nas emoçöes e nos sentimentos näo era um transeunte inocente
perto da deficiência de comportamento social. As emoçöes conturbadas
contribufam provavelmente para o problema. Comecei a pensar que a
frieza do raciocinio de Elliot o impedia de atribuir diferentes «valores» às
diferentes opçöes, tornando a sua paisagem de tomada de decisöes deses
peradamente plana. Poderia também dar se o caso de esta mesma frieza
ter tornade a sua paisagem mental demasiado instável e efémera, despro
vida do tempo necessário para a selecçäo de respostas. Por outras pala
vras, poderia tratar se näo de um defeito básico mas subtil na memória
de trabalho que poderia alterar o remanescente do processo de raciocinio
necessário para a emergência da decisäo. Fosse como fosse, a tentativa de
compreender tanto Elliot como Gage prometia uma entrada na neurobio
logia da racionalidade.
Quatro
A Sangue Frio
bem sabido que, sob certas circunstäncias, as emoçöes perturbam
Eo raciocínio. As provas disso säo abundantes e estäo na origem
dos bons conselhos com que temos sido educados. Mantém a cabeça íria,
mantém as emoçöes ao largo! Näo deixes que as paixöes interfiram no
bom juizo. Em resultado disso, concebemos habitualmente as emoçöes
como uma faculdade mental supranumerária, um parceiro do nosso pen
samento racional que é dispensável e imposto pela natureza. Se a emoçäo
é aprazivel, fruimo la como um luxo; se é dolorosa, sofremo la como um
intruse indesejado. Em qualquer dos casos, o conselho dos sábios será o
de que devemos experienciar as emoçöes e os sentimentos apenas em
quantidades adequadas. Devemos ser razoáveis.
Há muito boa sabedoria nesta crenç@l täo aceite, e näo vou negar que
as emoçöes näo controladas e mal orientadas podem constituir uma d@is
principais origens do comportamento irracional. Täo pouco negarei que
um raciocinio que é à partida normal pode ser perturbado por inflexöes
subtis enraizadas nas emoçöes. Por exemplo, é mais provivel que tim
doente aceite de bom grado um determinado tratamento se lhe disserem
que 90% das pessoas tratadas em casos sen ielhantes se encontram vivas
ao fim de cúico anos do que se for informado de que 10% morreram'. Em
bora o resultado final seja precisamente o mesmo, é natural que os senti
mentes que surgem associados à ideia de morte conduzam à rejeiçäo de
uma opçäo qi ie seria aceite no outro enquadramento da escolha; eis um
exemplo acabado de uma inferência irracional. O facto de esta irraciona
lidade näo resultar da ausência de conhecimento pode ser atestado pelo
facto de que se os doentes fossem médicos näo responderiam de forma
diferente dos doentes que näo säo. Todavia, o que é ignorado pela abor
72 O ERRO DE DESCARTES
dagem tradicional é uma noçäo que emerge do estudo de doentes como
Elliot e de outras observaçöes que mencionarei mais à frente: a redllçäo das
emoçöes pode coiistitiiir umafonte igualmente iniportaiite de coinportaimento ir
racional. Esta ligaçäo aparentemente ilógica entre ausência de emoçöes e
comportamento anómalo pode ensinar nos muito sobre a maquinaria
biológica da razäo.
Comecei a tentar delimitar esta noçäo recorrendo à abordagem da
neuropsicologia experimentall. Esta abordagem depende, em termos ge
rais, dos seguintes passos: encontrar correlaçöes sistemáticas entre lesöes
em determinados locais do cérebro e perturbaçöes do comportamento e
da cogniçäo; validar os resultados pelo estabelecimento do que é conhe
cido como dissociaçöes duplas, nas quais as lesöes no local A provocam
a perturbaçäo X mas näo a perturbaçäo Y, enquanto lesöes no local B cau
sam a perturbaçäo Y mas näo a X; formuler tanto hipóteses gerais como
particulares, de acordo com as quais um sistema neural normal constitui
do por diferentes componentes (isto é, regiöes corticais e núcleos subcor
ticais) desempenha uma operaçäo cognitiva/comportamental normal
com diferentes componentes especificas; e, finalmente, avaliar a validade
das hipóteses formuladas com novos casos de lesöes cerebrais, nos quais
uma dada lesäo num determinado sitio funciona como uma espécie de
sonda para verificar se a lesäo provocou o efeito que se esperava de acordo
com as hipéteses de partida.
A finalidade da abordagem neuropsicológica é, pois, a de explicar a
forma como certas operaçöes cognitivas e as suas componentes estäo rela
cionadas com os sistemas neurais e as suas componentes. A neuropsicolo
gia näo se ocupa, ou pelo menos näo deve ocupar se, com a descoberta da
«Iocalizaçäo» cerebral de um dado «sintoma» ou «sínárom,,I>,.
A minha primera preocupaçäo foi a de verificar se as nossas obser
vaçöes sobre Elliot se repetiam com outros doentes. Foi o que veio a
acontecer, de facto. Até hoje, estudámos doze doentes* com lesöes pré
frontais do tipo registado em Elliot, e em nenhum dos casos deixámos de
encontrar uma associaçäo entre deficiência na tomada de decisöes e per
da de emoçöes e sentimentos. A capacidade da razäo e a experiência de
emoçöes estäo reduzidas em conjunto, e as suas limitaçöes sobressaem
num perfil neuropsicolôgico em que a atençäo, a memória, a inteligência
Até 1993. (N. do A.)
A SANGUE FRIO 73
¨ a linguagem ern termos dos seus níveis básicos parecem täo intactes que
nunca poderiam ser invocadas como explicaçäo das falhas dos doentes na
sua capacidade de)'uizo.
Mas a notória diminuiçäo concomitante da razäo e dos sentimentos
nao surge apenas apôs uma lesäo pré frontal. Neste capitulo, mostrarel
como esta combinaçäo de limitaçöes pode surgir da lesäo de outras re
giöes cerebrais especificas e como tais correlaçöes sugerem uma interac
çäo entre os sistemas subjacentes aos processos normais da emoçäo e da
razäo.
Costaria de comentar, numa perspectiva histórica, os casos de lesöes
pré frontais. O caso de Phineas Gage näo é a única fonte histo'rica impor
tante para a tentativa de compreender as bases neurais do raciocinio e da
capacidade de decisäo; podemos encontrar quatro outras fontes para aju
dar a delinear o perfil básico.
O primeiro caso, que será aqui identificado como «doente A», foi estu
dado em 1932 por Brickner, um neurologista da Columbia University. O
doente A era um corrector da Bolsa, vivia em Nova lorque, tinha 39 anos
e era pessoal e profissionalmente bem sucedido. Este doente desenvolveu
um tumor cerebral como o de Elliot, um meningiomal. O tumor com
primiu os lobos frontais e produziu um resultado semelhante ao que ob
servámos em Elliot. Walter Danáy, pioneiro da neurocirurgia, conseguiu
remover o tumor que ameaçava a vida do doente, mas näo antes de a
massa ter causado lesöes extensas nos côrtices cerebrais nos lobos fron
tais, esquerdo e direito. As áreas afectadas incluiram todas as que foram
também perdidas em Elliot e Gage, mas de forma um pouco mais exten
sa. No lado esquerdo, todos os côrtices frontais localizados à frente das
áreas responsáveis pela linguagem foram removidos. No lado direito, a
excisäo foi maior e incluiu todo o córtex em frente das áreas que controlam
o movimento. Os córtices na superficie ventral (orbital) e na parte inferior
da superficie interna (mediana) de ambos o's lados dos lobos frontais fo
ram também removidos. A circunvoluçäo do ângulo foi poupada. (A des
criçäo ciru'rgica completa foi confirmada, vinte anos depois, na autópsia.)
O doente A possufa uma percepçäo normal. A sua orientaçäo em rela
çäo a pessoas, locais e ao tempo era normal, assim como a sua memória
74 O ERRO DE DESCARTES
A
E
Figui7a4.1 Asáreassoinbreadas representa ni os sectores ventral emedianodo lo
bofrontal, os quais se encotitram comproinetidos de forma consistente em doeiites com a
«matriz de Gage». É de notar que o sector dorsolate@al dos lobosfrontais näo é afectado.
A: Hemisíério cerebral direito, perspectiva externa (lateral).
B: Hemi@fério cerebral direito, perspectiva interna (niediano).
C: O cérebro visto por baixo (aspects ventral ou orbital).
D: Hemisfério esquerdo, perspectiva externa.
E: Heniisfériöesquerdo,perspectivainterna.
convencional de factos recentes e remotos. As suas capacidades lin
guistica e motora näo tinham sido afectadas, e a sua inteligência parecia
intacta de acordo com os testes psicológicos disponiveis na época. Foi
muito discutido o facto de ele conseguir executar cálculos e jogar um bom
jogo de damas. Mas, apesar da sua impressionante saúde fisica e das suas
louváveis capacidades mentais, o doente A nunca regressou ao trabalho.
Ficou em casa a formular planos para o seu regresso profissional, mas
nunca chegou a implementar o mais simples desses planos. Outra vida
destroçada.
A personalidade de A tinha se alterado profundamente. A modéstia
de outrora tinha desaparecido. Tinha sido um homem cortês e pondera
do, mas agora os seus comentários sobre outras pessoas, incluindo a sua
mulher, eram desrespeitosos e, por vezes, francamente cruéis. Vanglo
riava se das suas façanhas profissionais, fisicas e sexuais, embora näo
trabalhasse, näo praticasse qualquer desporto e tivesse cessado a sua ac
tividade sexual com a mulher ou com qualquer outra pessoa. A maior
parte da sua conversa girava à volta de façanhas miticas e era apimentada
porcomentários trocistas, geralmente à custa de outros. Em certas ocasiöes,
quai ido frustrado, agia de forma verbalmente insultuosa, embora nunca
fisicamente violenta.
A vida emocional do doente A parecia empobrecida. De vez em
A SAN "UE FRIO 75
quando, ele poderia ter uma fugaz explosäo emocional, mas, na maior
parte do tempo, tal exposiçäo näo ocorria. Näo existera sinais de que
nutrisse sentimentos por outros, nem sinal de vergonha, tristeza ou an
gústia perante a reviravolta trágica da sua vida. O seu afecto global pode
ser sugestivamente descrito como superficial. De um modo geral, o doen
te A tinha se tornade passive e dependente. Passou o resto da vida ao cui
dado da familia. Ensinaram lhe a trabalhar com uma impressora, na qual
fazia cartöes de visita, e esta tornou se a sua única actividade produtiva
O doente A exibia claramente as caracteristicas cognitivas e compor
tamentais que estou a tentar delimitar e a que vou chamar «a matriz de
Phineas Gage»: depois de sofrer a lesäo dos córtices frontais, a sua capa
cidade para escolher o curso de acçäo mais vantajoso foi perdida; apesar
de ter conservado capacidades intelectuais intactas, as emoçöes e os sen
timentos estavam comprometidos. Deve notar se que, em torno desta
matriz, existera diferenças quando diversos casos säo comparados. Mas
é inerente à natureza das sináromas terem uma matriz, um núcleo de sii i
tomas partilhados, e terem variaçäo de sintomas na periferia desse nú
cleo. Tal como indiquer aquando da discussäo das diferenças superíiciais
entre os casos de G@ige e de Elliot, é prematuro estabelecer a causa dessas
diferenças. Neste ponto da conversa, quero simplesmente realçar @l exis
tência dum núcleo partilhado pelos diferentes doentes.
A segunda forte histórica data de 19401. Donald Hebb e Wilder
Penfield, da McGill University, no Canada, descreveram um doente que
tinha sofrido um grave acidente aos 16 anos de idade, e a descriçäo reve
lou um ponto importante. Phineas Gage, o doente A e os outros doentes
modernos com o mesmo tipo de problema eram adultos normais e já ti
nham atingido uma personalidade madura quando sofreram lesöes nos
lobos frontais e passaram a exibir sinais de comportamento @inormal.
Qual teria sido o resultado se as lesöes ti\,essem ocorrido durante o desen
volvimento, algures na ú tfäncia ou na adolescência? Deveria prever se
que nunca teriam desenvolvido uma personalidade normal e que o seu
sentido social nunca teria amadurecido? É precisamente isso que tem siclo
er.contrado nesse tipo de casos. O doente de Hebb Penfield fez uma
fractura composta dos ossos frontais que comprimiu e destruiu @imbos os
lados dos córtices frontais. Tinha sido umá crianç@l e um adolescente
normal; depois do ferimento, contudo, näo só a continuaçäo do seu desen
volvimento social foi bloqueada como O set@ comportamento social se de
teriorou.
Talvez ainda mais elucidativo seja o terceiro caso, descrito por S. S. Ac
kerley e A. L. Benton em 19481. O seu doente sofreu um@l lesäo do lobo
frontal pouco depois do nascimento e, por isso, itravessou a infäncia e a
76 O ERRO DE DESCARTES
adolescência desprovido de muitos dos sistemas cerebrais que julgo se
rem necessários para a emergência de uma personalidade humana nor
mal. E, confirmando esta expectative, o seu comportamento foi, de facto,
sempre anormal. Embora näo fosse uma criança estúpida e os instrumen
tos básicos da sua mente parecessem intactes, nunca adquiriu um com
portamento social normal. Quando, aos 19 anos de idade, foi submetido
a uma exploraçäo neurocirúrgica, a intervençäo revelou que o lobo fron
tal esquerdo era pouco mais do que uma cavidade oca e que a totalidade
do lobo frontal direito estava ausente como consequência de um atrofia
mento. Lesöes graves, ocorridas por volta do momento do nascimento, ti
nham danificada irreversivelmente a maior parte dos córtices frontais.
Este doente nunca foi capaz de se manter empregado. Após alguns
dias de boa discipline, perdia o interesse pela sua actividade e acabava
mesmo por roubar ou por se comportar de forma desordeira. Qualquer
saida da rotina facilmente o induzia em frustraçäo e poderia provocam lhe
uma explosäo de mau humor, embora, em geral, tendesse a ser dócil e
educado. (Foi descrito como possuindo uma «cortesia de mordomo in
glês».) Os seus interesses sexuais eram reduzidos e nunca se envolveu
emocionalmente com nenhuma companhia. O comportamento era este
reotipado, desprovido de imaginaçäo, destituido de iniciativa. Nunca ad
quiriu capacidades profissionais ou hobbies. A recompensa ou a puniçäo
näo pareciam influenciar o seu comportamento. A memo'ria era capricho
sa; falhava quando se esperava que tivesse aprendido e aprendia espec
tacularmente em matérias de menor importäncia, como, por exemplo, o
conhecimento detalhado de marcas de automóveis. O doente näo era nem
feliz nem triste, e tanto o prazer como a dor pareciam ser de curta duraçäo.
Os doentes de Hebb Penfield e de Ackerly Benton partilhavam um
conjunto de traças de personalidade. Rigidos e perseverantes na sua
forma de encarar a vida, eram ambos incapazes de organizar uma activi
dade futura e de conservar um emprego rentável; faltava lhes originali
dade e criatividade; tinham tendência a vangloriar se e a apresentar uma
imagem favora vel deles próprios; exibiam modos geralmente correcíos
mas estereotipados; estavam menos aptos do que outros para sentir pra
zer e para reagir à dor; tinham impulsos sexuais e exploratórios diminui
dos; e demonstravam uma ausência de defeitos motores, sensoriais ou de
comunicaçäo e uma inteligência geral dentro do que seria de esperar da
do o seu passado sóciocultural. Continuam a aparecer doentes similares
e, naqueles que tenho observado, as consequências säo semelhantes.
Assemelham se ao doente de Ackerly e Benton, tanto na história clinica
como no comportamento social. Uma maneira de descrever o seu estado
é a de dizer que eles nunca constroem uma teoria apropriada acerca de si
A SANGUE FRIO 77
próprios ou acerca do seu papel social na perspectiva do passado e do fu
turo. E o que näo conseguem construir para si próprios também näo con
seguem construir acerca dos outros. Encontram se privados de uma teo
ria da sua própria mente e da mente daqueles com quem interageml.
A quarta fonte de evidência histórica vem de um sitio inesperado: a li
teratura sobre leucotomia pré frontal. Esta operaçäo cirúrgica, desenvol
vida em 1936 pelo neurologista português Egas Moniz, destinava se a
tratar a ansiedade e a agitaçäo associadas a estudos psiquiátricos como as
doenças obsessivas compulsivas e a esquizofrenial. De acordo com o
modo como foi originalmente planeada por Moniz e executada pelo seu
colaborador, o neurocirurgiäo Almeida Lima, a cirurgia produzia peque
nas áreas de lesäo na massa branca práfunda de ambos os lobos frontais.
(O nome da operaçäo é bastante simples: leiikos, em grego, significa
«branco», e toinos «secçäo»; «pré frontal» indica a regiäo que era alvo da
operaçäo.) Tal como discutimos no Capitulo Dois, a massa branca locali
zada por debaixo do córtex cerebral é constituida por íeixes de axónios ou
fibras nervosas, sendo cada uma delas um prolongamento de um neuró
nio. O axónio é o meio que um neurónio usa para estabelecer contacto com
outro neurônio. Os feixes de axónios atravessam a substäncia cerebral na
massa branca, ligando diferentes regiöes do córtex cerebral. Algumas
conexöes säo locais, entre regiöes do córtex separadas por apenas poucos
milimetros, enquanto outras conexöes ligam regiöes que estäo muito
afastadas, como, por exemplo, regiöes corticais de um dos hemisférios
cerebrais a regiöes corticais do outro. Existera também conex öes, numa
direcçäo ou na outra, entre regiöes corticais e núcleos s ' ubcorticais, que
säo os agregados de neurónios por debaixo do córtex cerebral. Um feixe
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