em tempos consciente, quando pela primera vez aprendemos que os
objectes em queda nos podem magoar e que é melhor evitá los ou detê
los do que sermos atingidos por eles. Mas a experiência destas situaçöes
à medida que crescemos levou os nossos cérebros a ligarem directamente
o estimulo desencadeador à resposta mais vantajosa. A «estratégia» para
a selecçäo da resposta consiste agora em activar a forte ligaçäo entre esti
mulo e reacçäo, para que a resposta su@a automática e rapidamente, sem
esforço ou deliberaçäo, embora possamos tentar suprimi la de livre von
tade.
O terceiro exemplo reúne uma variedade de situaçöes agrupadas em
180 O ERRO DE DESCARTES
dois grupos. Um deles inclui a escolha de uma carrera; decidir com quem
se casar ou viver; decidir se se deve tomar o aviäo quando a trovoada está
iminente; decidir em quem votar e como investir as poupanças pessoais;
decidir se se perdoa a alguem que nos fez mal ou se se comuta a sentença
de um condenado à morte. O outro grupo inclui o raciocinio que acompa
nha a construçäo de um novo motor ou o projectar da construçäo de um
edificio, a resoluçäo de um problema de matemática, o compor uma peça
musical, o escrever um livro ou o julgar se uma nova proposta de lei está
de acordo ou viola o espirito ou a letra da Constituiçäo.
Todos os casos deste terceiro exemplo assentam no processo suposta
mente claro de derivaçäo de consequências lógicas a partir de premissas,
o qual consiste no elaborar de inferências válidas. Libertas da influência
das paixöes, essas inferências permitem nos escolher a melhor opç~ao
possivel, aquela que leva ao melhor resultado possivel dado o pior pro
blema possível. Näo é dificil, por isso, separar o terceiro exemplo dos dois
primeiros. Em todos os casos do terceiro exemplo, as situaçöes que cons
tituem o estimulo apresentam mais partes; as opçöes de resposta säo mais
numerosas; as suas respectivas consequências têm mais ramificaçöes e es
sas consequências säo muito diferentes, no imediato e no futuro, estabe
lecendo desse modo conflitos entre possiveis vantagens e desvantagens.
A complexidade e a incerteza avolumam se tanto que näo é fácil chegar
a previsöes fidedignas. Igualmente importante é o facto de um grande nú
mero desta infinidade de opçöes e resúltados ter de surgir na consciência
para que uma estratégia de gestäo possa ser escolhida. Para chegar a uma
selecçäo da resposta final, é precisa recorrer ao racióclnlo, e isso implica
ter em mente uma grande quantidade de factos e de resultados correspon
dentes a acçöes hipotéticas e confrontá los com os objectivos intermédios
e finais, requerendo todos eles um método, uma espécie de plano de j ogo
escolhido de entre os diversos planos que ensaiamos no passado em
inúmeras ocasiöes.
Com base nas diferenças marcantes entre o terceiro exemplo e os dois
primeiros, näo é de surpreender que as pessoas normalmente presumam
que possuem mecanismos completamente distintos, para o terceiro tipo
de casos e para os outros, tanto em termos neurais como mentais me
canismos, na verdade, täo distintos que Descartes situou um fora do cor
po, como traço distintivo do espirito humano, enquanto situou os outros
no interior, como traços distintivos dos espiritos animais; mecanismos täo
distintos que um deles representa a clareza do pensamento, a competên
cia dedutiva e a algoritmicidade, enquanto os outros estäo conotados com
a obscuridade e com a vida menos disciplinada das paixöes.
Mas se é verdade que a natureza dos exemplos do terceiro tipo difere
A HIPOTESE DO MARCADOR SOMATICO 181
nitidamente da natureza dos exemplos dos dois primeiros tipos, também
é verdade que os casos que agrupa näo säo iguais. Todos requerem a acti
vidade da razäo, na acepçäo mais comum do termo, mas alguns apro
ximam se mais da pessoa e da envolvente social do decisor do que os
outros. Decidir quem amar ou perdoar, fazer escolhas de carreras ou de
investimento situam se no dominio pessoal e social imediato; resolver o
último teorema de Fermat ou decidir sobre a constitucionalidade de uma
lei afastam se mais do núcleo pessoal. Os prirneiros inserem se, desde
logo, na racionalidade e razäo prática; as segundas inserem se mais facil
mente na razäo teórica e até na razäo pura.
A noçäo intrigante é a de que, apesar das manifestas diferenças entre
os exemplos em matéria de tema e nivel de complexidade, existe um fio
condutor que os une a todos, um núcleo neurobiolôgico comum.
Raciocinar e decidir num espaço pessoal e social
Raciocinar e decidir pode revelar se uma tarefa árdua, espe
cialmente quando estäo em causa a nossa vida pessoal e o seu
contexte social imediato. Existera bons motivos para tratar
estas duas áreas como um dominio autónomo. Em primeiro lu
gar, uma limitaçäo profunda marcada na tomada de decisäo em
termos pessoais näo é obrigatoriamente acompanhada de uma
limitaçäo marcada no dominio näo pessoal, como bem con
firmam os casos de Phineas Gage, Elliot e outros. Estamos
actualmente a investigar até que ponto este tipo de doentes säo
competentes a raciocinar quando as premissas näo lhes dizem
directamente respeito, e até que ponto conseguem chegar às
decisöes que delas decorrem. Pode muito bem suceder que,
quanto mais os problemas se afastarem do seu ser pessoal e
social, melhores os resultados que conseguiräo obter. Em
segundo lugar, observaçöes de senso comum do comportamento
humano permitem sustentar uma dissociaçäo semelhante nas
capacidades de raciocinio, dissociaçäo essa que se estende nos
dois sentidos. Todos conhecemos pessoas que säo extraordina
riamente inteligentes no seu percurso social, que possuem um
sentido infalivel para obterem vantagens pessoais e para o seu
grupo das mais diversas situaçöes, mas que se revelam incri
velmente ineptas quando lhes é confiado um problema näo
182 O ERRO DE DESCARTES
pessoal e näo social. A situaçäo inversaéigualmente dramática:
todos conhecemos cientistas e artistas cujo sentido social é um
desastre e que regularmente se prejudicam a si próprios e aos
outros com as suas atitudes. O professor distraído é a variante
benigna deste último tipo. Estäo aqui em acçäo, nestes diferen
tes estilos de personalidade, a presença ou a ausência do que
Howard Garáner chamou a «inteligência social», ou a presença
ou a ausência de uma ou outra das suas inteligências múltiplas,
como, por exemplo, a «matemática»'.
O dominio pessoal e social imediato é o que mais se aproxima
do nosso destino e aquele que envolve a maior incerteza e a
maior complexidade. Em termos latos, dentro deste dominio,
decidir bem é escolher uma resposta que seja vantajosa para o
organisme, de modo directo ou indirecte, em termos da sua
sobrevivência e da qualidade dessa sobrevivência. Decidir bem
implica também decidir de forma expedita, especialmente
quando está em jogo o factor tempo, ou, pelo menos, decidir
dentro de um enquadramento temporal apropriado para o
problema em questäo.
Estou bem alerta para a dificuldade de definir o que é vanta
joso e apercebo me de que algumas coisas podem ser vantajo
sas para alguns individuos mas nao para outros. Por exemplo,
ser milionário näo é necessariamente bom, e o mesmo se pode
dizer de ganhar prémios. Muito depende do quadro de referên
cia e da meta que estabelecemos. Sempre que chamo vantajosa
a unra decisäo, estou a referir me a resultados pessoais e sociais
básicos, tais como a sobrevivência do individus e da sua es
pécie, a segurança do abrigo, a manutençäo da saúde fisica e
mental, o emprego, a estabilidade financera, a aceitaçäo no
grupo social. A nova mente de Gage ou de Elliot näo lhes per
mitia alcançar nenhuma destas vantagens.
A RACIONALIDADE EM ACÇAO
Comecemos por considerar uma situaçäo que requer uma escolha.
Imagine que é o dono de uma grande empresa e está perante a possibili
dade de se encontrar, ou näo, com um possivel cliente que lhe pode pro
porcionar um vultuoso negócio, mas que é também o arqui inimigo do
seu melhor amigo, e perante a perspective de levar, ou näo, por diante um
A HIPOTESE DO MARCAI)OR SOMATICO 183
determinado negócio. O cérebro de um adulto normal, inteligente e
educado reage à situaçäo, criando rapidamente cenários de opçöes de res
posta possiveis e cenários dos correspondentes resultados. Na nossa
consciência, os cenarlos säo constituidos por múltiplas cenas imaginárias,
näo propriamente um filme continue mas antes instantes pictóricos de
imagens chave nessas cenas, que saltam de umas para as outras em justa
posiçäo rápida. Exemplos do que as imagens poderiam mostrar: o en
contro com o presumivel cliente; o ser visto na companhia dele pelo seu
melhor amigo e fazer perigar a vossa amizade; o näo encontro com o
cliente; o perder um bom negócio mas o salvaguardar de uma amizade
preciosa, e assim por diante. O aspecto que pretendo salientar aqui é o de
que a mente näo está vazia no começo do processo de raciocinio. Pelo con
trário, encontra se repleta de um repertório variado de imagens, origina
das de acordo com a situaçäo que enfrenta e que entram e saem da sua
consciência numa apresentaçäo demasiado rica para ser rápida ou com
pletamente abarcada. Reconhecerá nele, embora o exemplo näo seja mais
do que uma caricatura, o tipo de dilema com que nos vemos confrontados
quotidianamente. Como resolver o impasse?
Existera, pelo menos, duas possibilidades distintas: a primeira ba
seia se no ponto de vista tradicional da «razäo nobre» da tomada de deci
säo; a segunda, na «hipótese do marcador somático».
A perspectiva da «razäo nobre», que näo é se näo a do senso comum,
parte do principio de que estamos nas melhores condiçöes para decidir e
somos o orgulho de Platäo, Descartes e Kant quando deixamos a lógica
formal conduzir nos à melhor soluçäo para o problema. Um aspecto im
portante da concepçäo racionalista é a de que, para alcançar os melhores
resultados, as emoçöes têm de ficar defora. O processo racional näo deve
ser prejudicado pela paixäo.
Basicamente, na perspective da razäo nobre, os diferentes cenários säo
considerados um a um e, para utilizar o caläo corrente da gestäo, é efec
tuada uma análise de custos/beneficios de cada um deles. Tendo em
mente a estimativa da «utilidade subjectiva», que é a coisa que pretende
maxirnizar, deduzirá logicamente o que é bom e o que é mau. Por exem
plo, considerará as consequências de cada opçäo em diferentes pontos do
futuro e calculará as perdas e os ganhos dai decorrentes. Dado que a maior
parte dos problemas tem muito mais de duas alternativas na nossa carica
tura, a sua análise torna se cada vez mais dificil à medida que vai avan
çando nas suas deduçöes. Mas repare que mesmo um problema com duas
alternativas näo é assim täo simples. Ganhar um cliente pode trazer uma
recompensa imediato e também uma recompensa futura substancial.
Desconhece a dimensäo dessa recompensa, pelo que é precisa calcular a
sua grandeza e a sua proporçäo, ao longo do tempo, para que a possa
184 O ERRO DE DESCARTES
contrapor aos potenciais prejuizos, entre os quais deverá incluir as conse
quências da perda de uma amizade. Como esta última perda variará com
o tempo, terá também de calcular a sua taxa de «desvalorizaçäo»! Na
verdade, está perante um cálculo complicado, que decorre em diversas
épocas imaginárias, agravado pela necessidade de comparar resultados
de natureza diferente que têm de algum modo de ser traduzidos numa
moeda comum para que a comparaçäo possa fazer algum sentido. Uma
parte considerável deste cálculo dependerá da criaçäo continua de mais
cenários imaginários assentes em esquemas visuais e auditivos, entre
outros, e também da criaçäo continua das narrativas verbais que acom
panham esses cenários e que säo essenciais à manutençäo do processo de
inferência lógica.
Vamos agora propor para discussäo a afirmaçäo de que, se esta estra
tégia é'a única de que dispöe, a racionalidade, tal como foi descrita acima,
näo vai funcionar. Na melhor das hipóteses, a sua decisäo levará um
tempo enorme, muito superior ao aceitável se quiser fazer alguma coisa
mais nesse dia. Na pior, pode nem sequer chegar a uma decisäo porque
se perderá nos meanáros do seu cálculo. Porque? Porque näo vai ser fá
cil reter na memória as muitas listas de perdas e ganhos que necessita de
consultar para as suas comparaçöes. A representaçäo de fases inter
médias, que deixou em suspense e precisa agora de inspeccionar para as
traduzir para uma forma simbólica necessa'ria ao prosseguimento das in
ferências lógicas, irá pura e simplesmente desaparecer da sua memória.
Perder lhes à o rasto A atençäo e a memória de trabalho possuem uma
capacidade limitada. Se a sua mente dispuser apenas do cálculo pura
mente racional, vai acabar por escolher mal e depois lamentar o erro, ou
simplesmente desistir de escolher, em desespero de causa.
O que a experiência com doentes como Elliot sugere é que a estratégia
fria defendida por Kant, entre outros, tem muito mais a ver com a maneira
como os doentes com lesöes pré frontais tomam as suas decisöes do que
com a maneira como decidem as pessoas normais. Naturalmente que os
racionalistas puros funcionam melhor se se munirem de papel e lápis e
apontarem todas as opçöes e a infinidade de cenários que se lhes segue.
(Aparentemente, foi o que Darwin sugeriu para quem quisesse escolher
a melhor pessoa com quem casar.) Mas, cuidado!, precisam de muito
papel e apara lápis, uma secretária desmesurada e bem mais tempo do
que alguem poderá ficar à espera da resposta.
É também importante referir que os problemas da perspectiva raciona
lista näo se limitam à limitada capacidade da nossa memória. Mesmo com
papel e lápis para pôr de pé o conhecimento necessário, sabemos agora
que as estratégias do raciocinio normal estäo repletas de deficiências,
A HIPOTESE DO MARCADOR SOMATICO 185
como o demonstraram Amos Tversky e Daniel Kahneman4. Uma dessas
deficiências pode muito bem radicar na tremenda ignoräncia e deficiente
uso da teoria das probabilidades e da estatistica, como sugeriu Stuart
Sutherland'. E, no entanto, apesar de todos estes problemas, os nossos cé
rebros säo capazes de decidir bem, em segundos ou minutes, consoante
a fracçäo de tempo considerada adequada à meta que pretendemos
atingir, e, se o conseguem com tanto ou täo regular êxito, teräo de efectuar
essa prodigiosa tarefa com mais do que a razäo pura. Precisam de qual
quer coisa bem diferente.
A HIPOTESE DO MARCADOR SOMATICO
Considere de novo os cenários que esbocei. As componentes chave
desses cenários desdobram se na mente, de forma esquemática e pratica
mente simultänea, de modo demasiado rápido para que os pormenores
possam ser bem definidos. Mas imagine agora que antes de aplicar qual
quer análise de custos /beneficios às premissas, e antes de raciocinar com
vista à soluçäo do problema, sucede algo de importante. Quando lhe
surge um mau resultado associado a uma dada opçäo de resposta, por
mais fugaz que seja, sente uma sensaçäo visceral desagradável. Como a
sensaçäo é corporal, atribui ao fenómeno o termo técnico de estado soiná
tico (em grego, soma quer dizer corpo); e, porque o estado «marca» uma
imagem, chamo lhe i narcador. Repare mais uma vez que uso somático na
acepçäo mais genérica (aquilo que pertence ao corpo) e incluo tanto as
sensaçöes viscerais como as näo viscerais quando me refiro aos marcado
res somáticos.
Qual a funçäo do marcador somático? Imagine que faz convergir a aten
çäo para o resultado negativo a que a acçäo pode conduzir e actua como
um sinal de alarme automático que diz@atençäo ao perigo decorrente de
escolher a acçäo que terá este resultado. O sinal pode fazer que rejette ime
diatamente o rumo de acçäo negativo, levando o a escolher outras alterna
tivas. O sinal automático protege o de prejuizos futuros, sem mais hesi
taçöes, e permite lhe depois escolher uma alternativa dentro de um lote mais
peq eno de alternativas. A análise custos/beneficios e a capacidade de
dutiva adequada ainda têm o seu lugar, mas só depois de este processo au
tomático reduzir drasticamente o número de opçöes. Os marcadores
somáticos podem näo ser suficientes para a tomada de decisäo humana
normal, dado que, em muitos casos, mas nao em todos, é necessário um
186 O ERRO DE DESCARTES
processo subsequente de raciocinio e de selecçäo final. Mas os marcado
res somáticos aumentam provavelmente a precisäo e a eficiência do pro
cesso de decisäo. A sua ausência redu las. Esta distinçäo é importante e
pode facilmente passar desapercebida. A hipótese que apresento näo
abrange as fases do raciocinio subsequentes à acçäo do marcador so
mático. Em suma, os marcadores somáticos säo um caso especial do uso de sen
timentos queforam criados a partir de emoçóes secunádrias. Estas emoç~öes e
sentimentosforam ligados, por via da aprendizagem, a certos tipos de resulta
dosfutiiros ligados a determinados cenários. Quando um marcador somático
negativo é justaposto a um determinado resultado futuro, a combinaçäo
funciona como uma campainha de alarme. Quando, ao invés, éjustaposto
um marcador somático positiva o resultado é um incentivo.
É esta a essência da hipótese do marcador somático. Mas, para obter
uma visäo integral desta hipótese, tem de continuar a leitura e descobrir
que, por vezes, os marcadores somáticos funcionam de forma velada, ou
seja, sem surgirem na consciência, e podem utilizar um circuito emocio
nal a que chamei «como se».
Osmarcadores somáticosnäotomam decisöespornós. Ajudam opro
cesso de decisäo dando destaque a algumas opçöes, tanto adversas como
favoráveis, e eliminando as rapidamente da análise subsequente. Pode
imaginá los como um sistema de qualiíicaçäo automática de previsöes,
que actua, quer se queira quer näo, com vista à avaliaçäo de cenários ex
tremamente diversos do futuro que antecipamos. Imaginemo los como
um mecanismo de bias. Suponha, por exemplo, que está perante a perspec
tiva de receber lucros extremamente elevados se fizer um investimento
muito arriscado. Suponha que lhe pedem para responder rapidamente,
sim ou näo, no meio de outros assuntos, se quer ou näo prosseguir com
esse investimento. Se a ideia de ir para a frente com o investimento se fizer
acompanhar de um estado somático negativo, isso ajudá lo à a rejeitar
essa opçäo imediata e a proceder a uma análise mais detalhada das suas
consequências potencialmente gravosas. O estado negativo associado ao
cenário do futuro contraria a perspectiva tentadora de um grande lucro
imediato.
A abordagem em termos de marcador somático é, pois, compativel
com a noçäo de que o comportamento pessoal e social eíicaz requer que
os individuos formem «teorias» adequadas das suas próprias mentes e
das mentes dos outros. Com base nestas teorias, é possivel prevermos que
ideias estäo os outros a formar a nosso respeito. O pormenor e o rigor des
tas previsöes é essencial para abordarmos uma decisäo critica numa sïtua
çäo social. Repito! O número de cenários que devemos inspeccionar é
imenso, e a minha ideia é a de que os marcadores somáticos (ou algo que
A HIPOTESE DO MARCADOR SOMATICO 187
se lhes assemelhe) colaboram no processo de filtragem desta grande
riqueza de pormenor com efeito, reduzem a necessidade de filtragem
ao permitirem uma detecçäo automática das componentes mais rele
vantes de um dado cenário. A simbiose entre os chamados processos
cognitivos e os processos geralmente designados por «emocionais»
torna se evidente.
Esta abordagem geral também se aplica à escolha de acçöes cujas
consequências imediatas säo negativas, mas que originam resultados po
sitivos no futuro. Um exemplo é a toleräncia de sacrificios agora para se
obterem beneficios mais tarde. Imagine que, para mudar o estado de coi
sas do seu negócio pouco próspero, precisa, bem como os empregados, de
aceitar uma reduçäo dos salários, a partir deste momento, juntamente
com um aumento dramático do número de horas de trabalho. A perspec
tiva imediata näo é nada agradável, mas a ideia de vantagens futuras cria
um marcador somático positive e ultrapassa a tendência para decidir
negativamente. Sem este prelúdio de dias potencialmente melhores,
como seria possivel aceitar o dentista, ojogging ou o ensino universitário?
Através da mera força de vontade, poder se ia contrapor, mas, nesse ca
so, como explicar a força de vontade? A força de vontade exerce se sobre
a avaliaçäo de uma perspective, e a avaliaçäo pode nem sequer ter lugar
se a atençäo näo for devidamente canalizada tanto para as dificuldades
imediatas comopara os êxitos futuros, tanto para o sofrimento agora como
para a compensaçäo@tura. Retire se esta última e estaremos a retirar a
força de elevaçäo às asas da força de vontade. A força de vontade é uma
metáfora para a ideia de escolher de acordo com resultados a longo prazo
e näo de acordo com os de curto prazo.
Um aparte sobre o altruisme
Neste ponto, podemos perguntar nos se o que foi dito atrás
se aplica à maioria, se näo mesmo a todas as decisöes geral
mente classificadas como altruistas, como, por exemplo, os sa
criíicios que os pais fazem pelos filhos ou que individuos por
natureza bons faziam pelo rei e pelo estado e que os heróis que
hoje restam ainda fazemnummomento de heroismo. Para além
do bem que os altruistas trazem aos outros, trazem bem a si prO
prios sob a forma de reconhecimento social, honra e afecto pú
blico, prestigio, auto estima e até mesmo vantagem financera.
188 O ERRO DE DESCARTES
A perspective de qualquer dessas recompensas pode fazer se
acompanhar de júbilo (cuja base neural vejo como um marca
dor somático positive) e pode, sem dúvida, trazer um extase
ainda mais palpável quando a perspectiva se concretiza. Mas os
comportamentos altruistas beneficiam quem os pratica num
outro aspecto que assume releväncla aqui: permitem evitar a
dor e o sofrimento futuros que seriam provocados pela ver
gonha de näo agir com altruisme. Näo é sá a ideia de arriscar a
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