- Porque vi.
- O senhor viu-o operar no Alojamento V? .
- Sim.
- Muitas vezes?
- Vi o Dr. Kelno fazer umas 200 a 300 operações, no Alojamento V.
- Em judeus?
- Havia também casos por castigos, com ordem do tribunal, mas a
maioria das vezes as vítimas eram judeus. Pode dizer-se que 99 por cento das
experiências eram feitas em judeus.
- O senhor assistiu às operações do Dr. Kelno no Alojamento XX?
- Sim, muitas vezes.
- E viu-o a atender pacientes normais? Casos de abcessos, feridas e coisas
assim?
- Sim.
- O senhor notou alguma diferença entre o procedimento do Dr. Kelno
no Alojamento XX e no Alojamento V?
- Sim. Com os judeus era brutal. Muitas vezes chegava a espancá-los e a
amaldiçoá-los.
- Na mesa das operações?
- Sim.
- Bem, Sr. Tukla, gostaria que nos falasse, agora, sobre uma série de
operações que foram praticadas em fins de Novembro de 1943. Removeram a
oito homens os testículos e três pares de gémeas foram submetidas a ovariotomias.
- Lembro-me muito bem. Foi no dia 10 de Novembro. Nessa noite
Menno Donker foi castrado.
- Gostaria que nos falasse sobre este assunto.
Tukla bebeu um pouco de água e, como estava muito nervoso, entornou-a.
O seu rosto ficou muito pálido.
- Mandaram-me apresentar no Alojamento V. Havia ali um pequeno
exército de kapos e das SS. Deviam ser sete horas da noite quando levaram as
catorze vítimas para a sala de espera. Recebemos ordens para tirarmos os
pêlos a todos e depois aplicar as injecções raquidianas.
- Na sala de espera?
- Era sempre na sala de espera. O Dr. Kelno não queria perder tempo na
sala de operações.
- E essas pessoas recebiam alguma injecção prévia?
- Não. A Dr.a Viskova e o Dr. Tesslar queixaram-se que isto era um tra-
330
tamento desumano e que deveria ser aplicada uma dose de morfina antes da
raquidiana.
- Que disse o Dr. Kelno quanto a isso?
- Disse: “Não gastamos morfina com porcos.” Também se sugeriu que
deveria empregar a anestesia geral, como fazia com os pacientes do Alojamento
XX. O Dr. Kelno respondeu que não podia perder tempo.
- Portanto, as injecções na espinha eram dadas sempre na sala de espera
e por pessoas de competência duvidosa.
- É verdade.
- E essa gente sofria muito?
- Um sofrimento incrível. E esta é a minha cruz... saber que participei
nisso... - Balouçava-se para a frente e para trás, mordendo os lábios para
conter as lágrimas.
- O senhor sente-se com forças para continuar, Sr. Tukla?
- Tenho de continuar. Guardei isto durante mais de vinte anos. Tenho
de dizer tudo o que sei para poder ter um pouco de paz. - Chorava. - Fui um
cobarde. Deveria ter agido da mesma maneira que Donker. Deveria ter-me
recusado. - Suspirou profundamente, pediu desculpa e fez um sinal com a
cabeça, dizendo que podia continuar.
- Bem, gostava que nos contasse o que presenciou na sala de espera do
Alojamento V, na noite de 10 de Novembro. O senhor assistiu à preparação
das catorze pessoas. Continue, por favor.
- Menno Donker foi o primeiro. O Dr. Kelno ordenou-me para entrar na
sala de operações para ajudar a segurá-lo.
- O senhor lavou-se com anticépticos?
- Não.
- Quem é que estava mais presente?
- O Dr. Lotaki, como assistente do Dr. Kelno. Havia um ou dois enfermeiros
e dois guardas das SS. Donker bradou que estava são e depois
implorou ao Dr. Kelno que lhe deixasse um dos testículos.
- O que foi que Kelno respondeu a isso?
- Cuspiu para cima dele. Em seguida, a confusão do lado de fora foi tão
grande que Voss mandou-me ao Alojamento III, para ir buscar o Dr. Tesslar.
Regressei com ele e a cena com que deparámos era tão macabra que nunca
pude esquecê-la. Nem um só dia. Nem só uma noite. As raparigas, nuas, os
gritos de dor causados pela injecção, a luta, a pancadaria, apanhavam até
mesmo na mesa de operações... E o sangue... Só Mark Tesslar parecia que
estava acima daquilo tudo. São e humano.
- E o senhor esteve presente na sala de operações?
- Sim. Era eu que levava e trazia as vítimas.
- Quem operava?
- O Dr. Adam Kelno.
- Todas as operações?
- Sim.
- Ele lavava-se de operação para operação?
- Não.
- Esterilizava os instrumentos?
- Não.
- Tinha consideração para com os pacientes?
- Parecia um talhante enlouquecido, com um machado na mão, num
matadouro. Era uma autêntica chacina.
- Quanto tempo durou?
- Ele operava muito depressa, de dez em dez minutos. Quinze minutos o
máximo. Por volta da meia-noite, mandaram-me levar todos para o Alojamento
III. Só se viam macas e estavam todos nelas, lado a lado. O chão da
sala de espera estava cheio de sangue. Levámos os pacientes de volta ao alojamento.
Tesslar implorou-me para ir buscar Kelno... mas fugi apavorado.
Adam Kelno escreveu um bilhete: Vou sair do tribunal.
Smiddy respondeu-lhe: Fique onde está.
- Qual foi o seu último contacto com essa situação, Sr. Tukla?
- Fui chamado ao Alojamento V no dia seguinte e mandaram-me preencher
as certidões de óbito de uma das mulheres e de um dos homens. Escrevi,
na certidão da mulher, ”hemorragia”, e na do homem, ”choque”.
Os alemães mandaram-me mudar para ”tifo”.
- Bem, Sr. Tukla, o senhor tem estado a pagar por isso já há muito
tempo.
- Tenho vivido todos estes anos com medo de ser considerado criminoso
de guerra.
- O senhor sabe o que aconteceu aos seis livros de relatórios cirúrgicos?
- Foi uma grande confusão quando os russos libertaram o campo. Muitos
de nós fugimos logo que os guardas das SS se retiraram. Não sei o que
aconteceu aos cinco livros. Um deles, o sexto, guardei-o.
- Conseguiu escondê-lo durante todos estes anos?
- Sim.
- Qual é o período que consta nesse livro?
- A segunda metade do ano de 1943.
- Meritíssimo, gostaria de apresentar como prova, agora, o Registo Médico
do campo de concentração de Jadwiga.
Capítulo trigésimo quarto
Desencadeou-se uma guerra de palavras.
- Meritíssimo - disse Sir Robert Highsmith, o meu nobre colega
alcançou um certo clima de dramatismo ao apresentar, no último instante,
uma nova prova. Vou pôr objecções, arduamente, quanto à introdução desta
prova, considerando-a como inadmissível.
332
- Apoiando-se em quê? -perguntou o juiz Gilray.
- Bem, em primeiro lugar, não li este documento e nem tive a oportunidade
de examiná-lo.
- Meritíssimo - disse Bannister -, o registo chegou às nossas mãos às
três da manhã. Durante a madrugada, conseguimos reunir uma equipa de 40
voluntários, que estudaram todas as páginas para descobrir o material relevante
para este caso. Anotei nesta folha de papel todas as informações que
considerei essenciais. Posso distribuir fotocópias dessas páginas do registo. E
as perguntas que vamos fazer estão relacionadas com estas páginas, que vou
dar ao meu nobre colega para estudar.
- Então o senhor pretende fazer uma emenda no seu pedido de justificação?
- perguntou o juiz.
- Exactamente, Meritíssimo.
- E é quanto a isto que ponho objecções - disse Highsmith.
Richard Smiddy deu um curto bilhete à sua secretária para ir buscar
Bullock, o seu chefe de escritório, e para ele reunir um grupo de auxiliares,
caso Bannister conseguisse o que litigava. Ela saiu a correr.
- Na minha experiência - disse o juiz Gilray -, tenho encontrado
causas em que a defesa pode pedir uma emenda à sua apresentação do caso,
quando é apresentada uma nova prova.
- Não vi esse pedido de emenda - disse Highsmith.
- Tenho-o aqui, está redigido numa única página - respondeu Bannister.
Foram distribuídos exemplares ao juiz, a Chester Dicks e a Richard
Smiddy, que se debruçaram sobre eles enquanto Sir Robert continuava o
debate.
- O Meritíssimo e o meu nobre colega hão-de verificar que a execução
está contida numa só página e que se relaciona apenas à parte do registo médico
- disse Bannister.
- Bem, o que é que me diz a este respeito? - perguntou Gilray a
Highsmith.
- Durante o exercício da minha profissão, que já data de algumas décadas,
nunca vi, nem soube de uma causa, principalmente uma que tenha
demorado tanto tempo como esta, em que a Corte tenha permitido uma
emenda que modifique toda a estrutura do processo.
- O senhor poderia elucidar o tribunal sobre este assunto, Sr. Bannister?
- perguntou Gilray.
- Eu, certamente, não posso concordar que se considere que esteja a
haver uma mudança na natureza do processo.
- Certamente que está - exclamou Highsmith. - Se este documento tivesse
sido apresentado no princípio do processo, o querelante teria preparado
uma causa totalmente diferente. Aqui estamos nós, há mais de um mês em
julgamento, a chegar à etapa final. As testemunhas de defesa, na sua maioria,
já voltaram para outros países da Europa, Ásia ou América. A nossa tês-
333
temunha principal, depois do Dr. Kelno, está presa em qualquer parte da
Polónia. Já pedimos o regresso do Dr. Lotaki, mas ele não pode sair do país.
Isto tudo é muito injusto para com o querelante.
- O que diz a isto Sr. Bannister? - perguntou o juiz.
- A minha intenção é limitar as perguntas somente ao registo, e
nenhuma das testemunhas de defesa poderá elucidar-nos a este respeito;
portanto, não vão ser necessárias. Quanto ao Dr. Lotaki, concordamos em
pagar-lhe a passagem para poder regressar a Londres mas, como o seu país
não lhe concede um passaporte, não podemos fazer nada. Acreditamos
realmente que, se Sir Robert concordar que o Dr. Kelno volte ao banco das
testemunhas, poderemos descobrir o que queremos saber numa hora, e eu
terei todo o prazer em permitir que o meu nobre colega estude, com antecedência,
a série de perguntas que pretendo fazer ao seu cliente.
Era numa situação destas que se via o treino de um grande advogado. Pela
capacidade extraordinária e instantânea de pensar e discursar, usando um
processo mental rápido e conciso, e apoiado por uma equipa de auxiliares de
alto gabarito.
- Sir Robert, no caso do registo médico ser considerado como prova, o
senhor permitirá que o Dr. Kelno volte ao banco das testemunhas? - perguntou
o juiz Gilray.
- Ainda não posso revelar qual será a minha táctica de acção.
- Está bem. O senhor tem mais alguma coisa a declarar, Sr. Bannister?
- Sim, Meritíssimo. Não vejo nada de insólito ou de raro na introdução
de um registo médico como prova. Este registo esteve presente, na imaginação
de todos, desde o princípio desta causa. Sugiro, Meritíssimo, que nunca
houve na história de Inglaterra uma prova que necessitasse, tão clamorosamente,
de ser mostrada. Aqui encontram-se as respostas que temos
procurado por toda a parte do mundo. Aqui, nestes registos, está o cerne de
toda a questão. Como poderá ser considerado inadmissível? Se tentarmos abafar
a voz que se ergue deste registo, então a sombra do que fizermos nesta
Corte de justiça irá afectar todo o nosso sistema jurídico, já que, em última
análise, isto não se poderá encobrir mais. Se não falarmos a respeito disto
aqui, significará que não queremos saber o que se passou em Jadwiga ou na
era nazi. Foi tudo uma fantasia! E não teremos nós a obrigação de tomar em
consideração o sacrifício de todas essas mulheres corajosas e de todos esses
homens que perderam as suas vidas para que tais documentos nos chegassem
às mãos, dando-nos conhecimento do que realmente aconteceu?
- Com toda a justiça - interrompeu Highsmith -, devo protestar contra
o meu nobre colega pelas palavras escolhidas, que se assemelham mais à
parte final de um discurso. Isso poderá aguardar.
- Sim, Sr. Bannister. Que outros motivos apresenta o senhor para
orientar o tribunal?
- Os mais fortes possíveis. O testemunho do querelante, Dr. Adam
Kelno, quando inquirido pelo seu próprio advogado. Sir Robert pergun-
334
tou-lhe: ”Foram guardados alguns relatórios das suas operações e dos seus
tratamentos?”, e a isto o Dr. Kelno respondeu: “Sempre insisti para que se
fizessem relatórios minuciosos. Achei que seria muito importante não restarem
dúvidas quanto às minhas actuações.” E alguns momentos depois o
Dr. Kelno disse, neste banco de testemunhas: “Eu pediria a Deus que esses
relatórios aparecessem para poder mostrá-los, pois provariam a minha
inocência.” E depois, mais tarde, quando respondia a um interrogatório
directo, disse: “Insisti sempre para que todos os casos fossem decisivamente
registados num relatório médico.” Meritíssimo, nada pode ser mais claro. Se
o Dr. Kelno prestou tal testemunho, isso não significa que, se possuísse esses
tais relatórios, tê-los-ia apresentado como prova?
- Tem alguma coisa a dizer sobre isto, Sir Robert? - perguntou o juiz.
- O Dr. Kelno é um médico e não um advogado. Ele ter-me-ia entregue o
documento para estudar e resolver se devia, ou não, ser apresentado como
evidência.
- Protesto - respondeu Bannister instantaneamente -, pois enquanto
estes relatórios não foram encontrados, enquanto o Dr. Kelno pensou que
estavam perdidos para sempre, achou por bem usá-los como supostas provas a
seu favor. Bem, mas agora que um desses livros apareceu aqui no tribunal,
mudou de ideias.
- Obrigado, senhores - disse Gilray.
Estudou o pedido de Bannister. Legalmente parecia muito bem redigido, e
qualquer juiz inglês poderia dar o seu parecer sem muita hesitação.
Mas, por alguma razão, continuou a contemplá-lo, sem realmente prestar
muita atenção à leitura. O que via era aquele desfile sem fim.
Este julgamento ia marcá-lo para o resto da sua vida. Tinha-os visto...
seres humanos... mutilados. Já não se tratava da culpa ou da inocência de
Kelno que começava a tornar-se importante, mas sim o que um homem podia
sofrer nas mãos de um outro. Por um momento conseguiu atravessar a
fronteira e entender aquela estranha lealdade de um judeu para com outro. Os
judeus que viviam livremente, em Inglaterra, sabiam que estavam livres graças
a um acaso do destino, que não os tinha conduzido para Jadwiga. Todos os
judeus sabiam que isto poderia ter sucedido não só com eles mas com toda a
sua família, e que apenas haviam sido poupados por esse acaso do destino.
Gilray tinha simpatizado muito com os dois bonitos jovens, o filho e a filha de
Cady. Afinal de contas, eram meio ingleses.
No entanto, enquanto o tempo se mantinha estático, Gilray também
pensava como um inglês, e sabia que nunca conseguiria entender, completamente,
um judeu. Poderia ser seu amigo, trabalhar com eles, mas nunca
os conseguiria entender. Ele era como os brancos que também nunca podem
entender completamente os negros. Como todos os homens normais que podem
ser amigos e tolerar os homossexuais, mas nunca podem entendê-los.
Existe em todos nós esta espécie de resistência ao entendimento do que é diferente
de nós.
335
Olhou para o tribunal que estava à espera.
- O pedido de defesa está aprovado. O registo médico do campo de
concentração de Jadwiga é, neste instante, introduzido como prova, e será
marcado como a prova W dos acusados. Para ser justo para com o querelante,
pedirei um intervalo de duas horas, a fim deste documento ser estudado e poder
ser preparada uma defesa adequada.
E, dito isto, deixou a sala.
A bomba tinha explodido. Highsmith parecia petrificado. Gilray tinha
dito: ”Para poder ser preparada uma defesa adequada.” O Dr. Kelno, de
queixoso, tinha passado a acusado, até mesmo perante o juiz.
Capítulo trigésimo quinto
Sir Adam Kelno foi conduzido à sala de consultas, onde Robert Highsmith,
Chester Dicks e Richard Smiddy, juntamente com meia dúzia de
auxiliares, estudavam as fotocópias do registo e as cópias das perguntas que
Bannister se propunha fazer. Foi cumprimentado friamente.
- Aconteceu há muitos anos... - murmurou. - Alguma coisa deve
ter-me perturbado... Durante anos fiquei num estado de semi-amnésia. Esqueci
tanta coisa. Sobotnik guardou os registos. Pode ter falsificado coisas a
meu respeito. Nem sempre olhava para o que estava a assinar.
- Sir Adam, o senhor terá que subir ao banco das testemunhas.
- Não posso.
- O senhor não tem outra alternativa... - respondeu, duramente,
Highsmith.
Adam Kelno não podia disfarçar o estado de letargia em que se encontrava.
Parecia muito longe de tudo, quando se sentou no banco das testemunhas
e Anthony Gilray o advertiu de que estava ainda sob juramento.
Fotocópias de certas passagens do relatório foram-lhe levadas, assim como aos
jurados e ao juiz. Bannister pediu que fosse entregue ao Dr. Kelno o livro dos
registos. Contemplou-o com ar aparvalhado.
- Esse livro que se encontra à sua frente é o Registo Médico do campo de
concentração de Jadwiga, referente aos últimos cinco meses do ano de 1943?
- Penso que sim.
- O senhor deverá ser mais preciso, Sir Adam - disse o juiz.
- Sim... sim... é, sim.
- O meu nobre colega concorda comigo que as fotocópias que se encontram
nas suas mãos, nas mãos do juiz e dos jurados sejam uma reprodução
exacta das várias páginas do registo?
336
- Concordo - disse Highsmith.
- Para podermos cooperar com os jurados, vamos abrir o caderno numa
página-padrão, a fim de se estabelecer o formulário geral deste registo.
Peço-lhes que o abram na página dupla, 50 e 51. Da esquerda para a direita
podem ver-se onze colunas diferentes. A primeira coluna apenas inclui
o número de operações. Nesta página podemos ver que há mais de 1800
casos de cirurgia. A segunda coluna indica as datas. Bem, e agora o que
contém a terceira coluna?
- É o número da tatuagem do paciente.
- Sim, e em seguida está o nome do paciente e o diagnóstico do seu mal.
Não é assim?
- Sim.
- Chegamos agora à primeira metade da página dupla e vamos prosseguir
com a página 51. O que é que figura na coluna à esquerda desta página?
- Uma descrição breve da operação.
- E na outra coluna mais pequena?
Kelno não respondeu. Bannister repetiu a pergunta e obteve, como
resposta, um resmungo inaudível.
- Não é a coluna que diz o nome do cirurgião e a outra coluna o nome do
assistente?
- Sim, é.
- E a próxima coluna... Diga ao Meritíssimo e aos jurados o que significa.
-É...
-Sim?
- É o nome do anestesista.
- O anestesista - repetiu Bannister, numa das raras vezes em que levantou
a voz. - Poderia dar uma vista de olhos, rapidamente, nas fotocópias,
ou mesmo no registo, na coluna que especifica o anestesista?
Sir Adam virou as páginas, desanimado; depois levantou os olhos.
- Não era obrigatória a presença de um anestesista?
- Mas não de um adequadamente treinado.
- No seu testemunho, porém, o senhor não disse que, como na maioria
dos casos, não dispunha de um anestesista e era portanto mesmo a si que cabia
fazer este serviço? O senhor escolhia a raquidiana?
- Sim, eu disse... mas...
- O senhor aceita o que afirma o registo, isto é, que, na maioria dos
casos, o senhor ou tinha um assistente ou um médico para fazer a anestesia?
- Parece que era assim.
- Portanto, o senhor não estava a dizer a verdade quando afirmou que
não podia contar com a ajuda de um anestesista competente?
- A minha memória pode ter-me traído.
”Meu Deus”, pensou Abe, ”eu não deveria alegrar-me com tudo isto.
337
Thomas Bannister está a praticar agora uma cirurgia legal ao Dr. Kelno, e eu
não deveria estar a sentir prazer ou vingança.”
- Vamos continuar a ler a outra coluna... Estou a ver a palavra
“ neurocrina ”. É este o nome da droga usada nas raquidianas ?
- Sim.
- E a última coluna tem por título ”Observações”?
- Sim.
- As páginas 50 e 51 estão escritas com a sua letra, e é a sua assinatura
que se encontra na coluna onde está o título ”Operador” ?
- Sim.
- Agora, ao estudar novamente este registo, o senhor vê o nome do
Dr. Mark Tesslar nalguma parte, quer como cirurgião, quer como
assistente?
- Ele, certamente, deixou de assinar.
- Como? O senhor era o seu superior. Tinha acesso a Voss e a Flensberg,
os quais o senhor descreveu como sendo seus associados. Como poderia o
Dr. Tesslar ter deixado de assinar?
- Não sei. Era muito esperto.
- Sugiro que ele não praticou qualquer espécie de cirurgia em Jadwiga.
- Era o que se dizia - murmurou Adam, suando profusamente.
- Por favor, passe até à página 65. Esta letra parece ser bem diferente,
excepto a assinatura do operador. O senhor pode explicar isto?
- Muitas vezes o funcionário preenchia todos os formulários com excepção
da assinatura do médico. Poderia ter sido uma falsificação de Sobotnik,
para o Movimento Comunista Clandestino.
- Está a sugerir que não assinou ou que a sua assinatura foi falsificada? Se
o tivesse apanhado a falsificar a sua assinatura, com certeza que teria feito
algo, punindo-o tal como fez com Menno Donker.
- Discordo - disse Highsmith.
- O registo conta o que fizeram a Menno Donker - disse Bannister,
mostrando-se, pela primeira vez, encolerizado. - E depois, Dr. Kelno?
- Ao fim do dia, já estava muito cansado e, às vezes, nem lia o que
assinava.
- Entendo. Temos as fotocópias de 20 páginas duplas do livro de registos
e cada uma dessas páginas tem uma lista de 40 operações. Nas operações em
que estão assinaladas as palavras ”amputação de test. dir.” ou ”esq.”, estas
abreviaturas referem-se ao testículo esquerdo ou direito, é assim ou não é?
- Sim.
- Bem, e qual é a diferença entre esta operação e a outra chamada castração?
- É que uma delas significa a remoção de uma glândula morta ou que
sofreu efeitos de radiação, como já expliquei. E a outra é... é...
- Sim?
338
-A remoção dos dois testículos?
- Sim.
- Obrigado. Agora vou pedir para que lhe seja entregue um documento
que é o seu depoimento sob juramento, prestado no Ministério do Interior
durante o processo de extradição, em 1947. Foi escrito pelo senhor, na prisão
de Brixton.
Highsmith levantou-se como que impulsionado por uma mola.
- Isto não faz parte do assunto. Muito especificamente não faz mesmo
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